São Paulo, domingo, 16 de junho de 2002

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Para os candidatos de governo, "protestar", isto é, não se identificar com os partidos consensuais, é uma doença

O medo do eleitor diante da esquerda oficial

Jacques Rancière

Entre o fim de abril e o início de maio as ruas de Paris e de várias outras cidades da França se encheram com marchas de manifestantes e principalmente de multidões de jovens como não se viam desde maio de 1968. Mas uma diferença separava essas duas primaveras: em 1968 os manifestantes opuseram ruidosamente a realidade do poder político e social que eles representavam aos jogos eleitorais dos partidos. "Eleições, armadilha para idiotas" foi a palavra de ordem que exprimiu seu desinteresse pelas eleições então organizadas pelo general De Gaulle. "Abstenção, armadilha para idiotas" foi, por sua vez, a palavra de ordem sob a qual desfilaram em 2002 os velhos que não tinham mais descido à rua desde aquela época e os jovens que desciam pela primeira vez. Como se o movimento de rua tivesse por principal tarefa expiar, de uma vez por todas, 30 anos de pecado.
Esse talvez tenha sido o sentido mais profundo dos acontecimentos que cercaram a eleição presidencial francesa. De tudo o que se disse, o aspecto mais importante não foi o resultado alcançado pela extrema direita. Este foi sem dúvida ligeiramente superior à média que ela obteve nos últimos 15 anos, mas não teve de forma nenhuma o caráter de um maremoto. E a força que ele traduziu era muito mais a de um movimento de opinião difuso que a de um partido fascista prestes a tomar o poder. O que transformou esse ligeiro crescimento em trauma é que o mecanismo do sistema majoritário, feito para garantir o monopólio da luta pelo poder a dois grandes partidos de governo, marginalizando todas as outras forças, começou a funcionar ao contrário. O Partido Socialista se beneficiou por muito tempo do peso eleitoral da extrema direita e da subtração que ela efetuava sobre os votos da direita. Desta vez o mecanismo se voltou contra ele.
Mas o representante socialista pôde ser eliminado do segundo turno pela extrema direita por outro motivo, evidentemente: faltaram-lhe os votos da esquerda com os quais contava. Aqui mais uma vez o mecanismo majoritário funcionou ao contrário.
Se a esquerda oficial conseguiu chegar ao poder, nele se manter ou se reencontrar durante 20 anos, foi graças aos votos da outra esquerda: aquela que reclama a herança de 68, que lutou nos movimentos sociais de 1995, se mobilizou nos anos seguintes contra leis racistas, pela regularização dos trabalhadores sem documentos ou ainda contra a globalização capitalista. A esquerda oficial de modo geral aproveitou os votos dessa esquerda militante, mais interessada no desenvolvimento dos movimentos políticos de luta do que nos processos eleitorais. Como ela estimava que esses votos estavam garantidos de qualquer modo, nunca se esforçou para conquistá-los.
Em particular, nada fez para dar uma solução política aos problemas da integração dos trabalhadores de origem estrangeira e seus filhos. Em 20 anos ela não deixou de adiar a implementação de uma promessa eleitoral bastante simples: a participação dos estrangeiros nas eleições locais. Os franceses não estavam maduros para essa medida, diziam. Como se o eleitor médio estivesse realmente muito atrasado para admitir a idéia absolutamente incrível segundo a qual é normal que aqueles que vivem e trabalham num lugar participem das discussões e das decisões sobre a vida desse lugar. Esses franceses "ainda não maduros" eram simplesmente os eleitores do partido em frente, que os governantes socialistas pretendiam seduzir mostrando seu espírito de responsabilidade.
Essa é na verdade a lógica do sistema majoritário: que os partidos de poder se encarreguem não de cumprir os compromissos assumidos com os eleitores, que na opinião dos partidos serão de todo modo obrigados a votar neles, mas de recolher entre os eleitores do partido adversário o pequeno suplemento que garanta sua vitória.
O verdadeiro acontecimento das eleições presidenciais é que essa lógica se imobilizou. Pela primeira vez desde 1968 a esquerda militante recusou-se maciçamente a votar na esquerda oficial. E é claro que foi ela a que mais se chocou com o resultado dessa ruptura e a primeira a descer à rua, com os jovens colegiais, para exprimir sua rejeição absoluta às idéias e aos valores dessa extrema direita xenófoba e racista, que o fracasso da esquerda oficial qualificou para o segundo turno eleitoral. Mas foi aí que se produziu uma estranha inversão das coisas.
A esquerda oficial, sua imprensa e seus intelectuais realmente apresentaram aos manifestantes este simples discurso: por que vocês estão na rua hoje, se não devido a uma situação pela qual são os principais responsáveis? Se tivessem votado como eleitores responsáveis no candidato socialista, nada disso teria acontecido. Mas vocês preferiram se refugiar na abstenção ou dispersar seus votos em candidatos de protesto.
Essa idéia de protesto merece uma reflexão. Todos os analistas autorizados nos explicaram extensamente que havia nessa eleição duas espécies de candidato: candidatos de governo e candidatos de protesto. Mas o que distingue um candidato de governo de um candidato de protesto? É simplesmente o fato de que um já tem o hábito de governar, e o outro não. O argumento se resume a dizer que o poder deve voltar ao poder, isto é, aos dois grandes partidos consensuais que o dividem em alternância. Infelizmente essa bela lógica é perturbada pelo fato dos "protestativos". O que é um protestativo? Poderíamos sugerir que os protestativos são simplesmente aqueles que não se satisfazem com uma política reduzida à arte de obter e manter o poder, e que até os sucessos da extrema direita estão relacionados ao que esta chama de decisões coletivas claras sobre os grandes desafios nacionais e internacionais.
Compreendemos que essa explicação não seduz os "candidatos de governo" mais que aos jornalistas, politólogos, sociólogos e outros intelectuais encarregados de explicar o pequeno sucesso dos primeiros. Para eles, "protestar", isto é, não se identificar com os partidos consensuais, é uma doença.
E, para os que representam a ciência adulta do governo, há duas grandes doenças: a velhice e a juventude. Eles dividem assim os protestativos: de um lado as "vítimas da modernidade", os que não conseguem se adaptar às novas condições econômicas, tecnologias ou maneiras de viver e portanto votam nos valores anacrônicos da extrema direita; do outro, as eternas crianças que sonham com mudanças políticas e sociais radicais e se recusam a apoiar o socialismo moderno, liberal e responsável.
As doenças são assunto dos médicos. Para os que sofrem da doença senil, se propõem medidas para ajudá-los a viver melhor sua situação, esperando que a marcha da modernidade os leve suavemente até o túmulo. Para os que sofrem da doença juvenil, por outro lado, há necessidade de um tratamento de choque. É preciso fazê-los compreender de uma vez por todas o que é política. Eles imaginam que esta consiste em lutar por uma certa idéia de comunidade, em confiar no poder da inteligência e da ação da maioria. É preciso finalmente curá-los dessa loucura, ensiná-los a duvidar radicalmente da capacidade coletiva e de sua própria capacidade de julgar e de agir conforme suas opiniões. É preciso lhes ensinar que a política, para eles, deve consistir apenas em votar, mas sobretudo votar contra sua opção.
Aquele que vota tende sempre a fazê-lo segundo as idéias que considera justas e nos candidatos que lhe parecem mais próximos delas. Isso também é irresponsabilidade. É preciso fazer os irresponsáveis compreenderem que o princípio do voto não deve ser a opção, mas a submissão, não a confiança, mas o temor.
É em suma o que Hobbes disse ao fazer do temor o princípio de uma comunidade baseada na submissão incondicional ao poder soberano. Os tenores da esquerda oficial transformaram a teoria hobbesiana em exercício prático de mortificação: você não quis votar no candidato da esquerda oficial e responsável. Deve expiar. E como expiar senão votando maciçamente no segundo turno no homem que representa o atual sistema de governo no que ele tem de mais medíocre e mais corrupto, votando em suma na pura e simples submissão ao soberano -submissão tanto mais exemplar quanto mais desprezível for a pessoa que encarna o soberano.
Como pôr em ação o mecanismo da submissão? Jogando com a dupla mola da culpa e do medo. Produzindo medo por meio da culpa e culpa por meio do medo. A coisa estava complicada porque as pesquisas realizadas na noite do primeiro turno já deixavam prever uma vitória esmagadora de Chirac no segundo. Vimos assim nos dias seguintes se desenvolver na imprensa e nos meios intelectuais e artísticos de esquerda uma intensa campanha alarmista, alegando pseudopesquisas dos serviços de informação que atribuíam porcentagens fantásticas a Le Pen. Vimos se desenvolverem campanhas de pregação, muitas vezes conduzidas por figuras mais ou menos emblemáticas dos anos 1968, para convencer cada um de que, se não colocasse na urna um voto com o nome de Chirac, se tornaria cúmplice consciente de uma próxima abertura dos campos de concentração na França.
E foi assim que vimos centenas de milhares de manifestantes voltarem seu poder contra si mesmos. Eles desceram à rua para exprimir seu desacordo e sua recusa diante da extraordinária publicidade que o fracasso da esquerda oficial acabava de oferecer ao candidato de uma França racista. Eles tiveram de desfilar sob as bandeiras da contrição e do medo, levando cartazes que diziam "vote no ladrão, não no fascista" ou ainda "mais vale uma República de Bananas que uma França hitlerista".
Como ninguém acreditava seriamente na ameaça de uma França hitlerista, a palavra de ordem queria dizer na verdade: mais vale uma República de Bananas que a república que nós todos aqui reunidos poderíamos imaginar construir por nossas próprias forças. "Mais vale uma República de Bananas" quer dizer: mais vale a submissão, em geral.
Sabemos o sucesso imediato que teve essa campanha. Ela garantiu a vitória eleitoral daquele que encarnava a submissão pelo medo. Da mesma forma, forneceu uma verificação irrefutável ao argumento que fez a fortuna da extrema direita: o argumento segundo o qual ela é a única força que se opõe ao consenso, em suma, a única força que faz política. Quanto aos efeitos a longo prazo dessa dupla demonstração, não parece que os promotores dessa campanha tenham se preocupado muito.


Jacques Rancière é professor da Universidade de Paris 8 e autor de "O Dissenso" e "O Desentendimento" (ed. 34), entre outros. Ele escreve regularmente na seção "Autores", do "Mais!".
Tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves.


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