|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
Ponto de fuga
A máscara e o rosto
São personagens em busca de um rosto; na cidade do Carnaval e das máscaras, tudo é máscara, até que a máscara se torne rosto
JORGE COLI
COLUNISTA DA FOLHA
A
água em Veneza não é
água, é cem coisas ao
mesmo tempo, é um bicho pustuloso, uma superfície
de vidro sobre um negro imundo, é pus, é a desordem pura
encerrada em meio à ordem, é
o suave escorregar do nada entre as falésias do Ser." Sartre
em delírios sobre a linfa mágica
dos canais: Veneza se presta às
sensações de deliqüescência,
de morte. De volúpia também:
veneziano, Casanova serve como emblema à cidade. Seus
prazeres incansáveis podem
parecer hoje desgaste compulsivo, crepuscular, suicida. Como se a energia de Goldoni ou
de Vivaldi não tivessem brotado ali também, em Veneza.
Sexos
No oposto de Florença, tão
viril, tão áspera, tão mental, tão
severa, Veneza é uterina. Florença é a terra de Donatello, de
Michelangelo, de Cellini, ou seja, dos nus másculos e heróicos.
Veneza é a cidade de Ticiano,
de Giorgione, de Tiepolo, ou seja, das doces epidermes, de fêmeas expostas ao olhar. Veneza
aconchega e protege. Em Veneza, alegria e tranqüilidade se
misturam.
Harmonia
Quando enfim a crítica fará
justiça a Lasse Hallström? Em
seu filme "Casanova" todos são
carnais sem perderem a leveza.
Sua Veneza é meio verdadeira, meio sonhada. Impossível e
fantástico, seu Casanova não é
o das "Memórias", mas uma
ficção tocante. Há contínuas
trocas de identidade; esse chavão de comédias, porém, cede o
passo a uma busca.
A ciranda incessante não termina quando se volta ao que se
era, mas quando cada um se
encaixa na identidade que lhe
corresponde. São personagens
em busca de um rosto. Na cidade do Carnaval e das máscaras,
tudo é máscara, até que a máscara se torne rosto. Imersos na
graça das situações, na beleza
das imagens e na verve dos atores, esses jogos complicados
fluem com elegância natural.
Outros Casanova do cinema
puderam ser obras-primas.
Diante daquele que Lasse
Hallström inventou, porém,
parecem bem pesadões, sobrecarregados por ensinamentos e
densidades sublinhadas.
Abismo
Da "História de Minha Vida",
escrita por Casanova: "Cultivar
o prazer de meus sentidos foi,
em toda minha vida, minha
principal ocupação; nunca tive
outra mais importante. Sentindo-me nascido para o sexo diferente do meu, eu o amei sempre, e me fiz amar tanto quanto
pude. Amei também a boa mesa, com transporte".
JORGE COLI é historiador da arte.
e-mail: jorgecoli@uol.com.br
Texto Anterior: Os dez + Próximo Texto: Biblioteca básica: Dom Casmurro Índice
|