São Paulo, domingo, 16 de julho de 2006

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Ponto de fuga

A máscara e o rosto

São personagens em busca de um rosto; na cidade do Carnaval e das máscaras, tudo é máscara, até que a máscara se torne rosto

JORGE COLI
COLUNISTA DA FOLHA

A água em Veneza não é água, é cem coisas ao mesmo tempo, é um bicho pustuloso, uma superfície de vidro sobre um negro imundo, é pus, é a desordem pura encerrada em meio à ordem, é o suave escorregar do nada entre as falésias do Ser." Sartre em delírios sobre a linfa mágica dos canais: Veneza se presta às sensações de deliqüescência, de morte. De volúpia também: veneziano, Casanova serve como emblema à cidade. Seus prazeres incansáveis podem parecer hoje desgaste compulsivo, crepuscular, suicida. Como se a energia de Goldoni ou de Vivaldi não tivessem brotado ali também, em Veneza.

Sexos
No oposto de Florença, tão viril, tão áspera, tão mental, tão severa, Veneza é uterina. Florença é a terra de Donatello, de Michelangelo, de Cellini, ou seja, dos nus másculos e heróicos. Veneza é a cidade de Ticiano, de Giorgione, de Tiepolo, ou seja, das doces epidermes, de fêmeas expostas ao olhar. Veneza aconchega e protege. Em Veneza, alegria e tranqüilidade se misturam.

Harmonia
Quando enfim a crítica fará justiça a Lasse Hallström? Em seu filme "Casanova" todos são carnais sem perderem a leveza.
Sua Veneza é meio verdadeira, meio sonhada. Impossível e fantástico, seu Casanova não é o das "Memórias", mas uma ficção tocante. Há contínuas trocas de identidade; esse chavão de comédias, porém, cede o passo a uma busca.
A ciranda incessante não termina quando se volta ao que se era, mas quando cada um se encaixa na identidade que lhe corresponde. São personagens em busca de um rosto. Na cidade do Carnaval e das máscaras, tudo é máscara, até que a máscara se torne rosto. Imersos na graça das situações, na beleza das imagens e na verve dos atores, esses jogos complicados fluem com elegância natural.
Outros Casanova do cinema puderam ser obras-primas. Diante daquele que Lasse Hallström inventou, porém, parecem bem pesadões, sobrecarregados por ensinamentos e densidades sublinhadas.

Abismo
Da "História de Minha Vida", escrita por Casanova: "Cultivar o prazer de meus sentidos foi, em toda minha vida, minha principal ocupação; nunca tive outra mais importante. Sentindo-me nascido para o sexo diferente do meu, eu o amei sempre, e me fiz amar tanto quanto pude. Amei também a boa mesa, com transporte".


JORGE COLI é historiador da arte.
e-mail: jorgecoli@uol.com.br


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