São Paulo, domingo, 16 de julho de 2006

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A palavra turbulenta

Em "As Vozes da Liberdade", o historiador Michel Winock recria a batalha pela livre expressão no século 19

FRANCISCO ALAMBERT
ESPECIAL PARA A FOLHA

Tanto quanto o gosto pelo debate de idéias, a tradição moderna francesa guarda o gosto por manuais eruditos. Neste "As Vozes da Liberdade", o historiador Michel Winock compõe uma obra mural a partir dos escritores do "partido da liberdade" (romancistas, publicistas, livre-pensadores) e de suas acaloradas idéias de intervenção bem como de suas desavenças entre si, no caudaloso século 19 francês. História em que não falta aquilo que se convencionou chamar de vida privada, escrita em linguagem deliciosamente fluente e bastante literária, quase uma mimese dos textos apoteóticos dos escritores abordados. Estes foram escolhidos por seu engajamento público ou por suas posições políticas, e não por "talento" literário. Eles podem ser escritores "menores" ou então apanhados em momentos "menores" de suas trajetórias, mas, no plano de Winock -construir a cartografia política dos escritores do século das revoluções-, adquirem especial relevância, como é o caso do interessante capítulo sobre a "Revue Parisienne", fundada pelo reacionarismo militante de Balzac.

Idéias socialistas
Já na introdução -e sobretudo ao longo dos capítulos (que podem ser lidos separadamente)-, somos apresentados ao histórico do problema. Se a Restauração de Luís 18 não pôde retroagir diante das liberdades civis conquistadas pela Revolução de 1789, o regime irá endurecer na época de Carlos 10º, momento em que se firmam as novas "vozes da liberdade". E essas vozes se encaminharão, contra ou a favor, para a Revolução de 1830, a de 1848, até as conseqüências da Comuna de Paris, já no final do século 19.
Esse processo teve como uma de suas conseqüências o surgimento forte das idéias socialistas. Desde então, na opinião do historiador, acumularam-se os "dilemas" entre liberdade versus autoridade ou entre a "autoridade reacionária" e a "autoridade utopista" -obstáculos que a "liberdade" deverá enfrentar. Winock situa esses "dilemas" em um campo formal, ou puramente "de idéias". Pois, para ele, quase não existe nada além da política, das relações internas e da sociabilidade intelectual e sentimental diante das turbulências fabulosas do século francês.
Ele mal nos oferece a compreensão do capitalismo, das tramas das classes e da forma do capital para entender as idéias de seus escritores. Sendo assim, a questão central que unificaria as diferentes visões da liberdade estaria no combate à religião (como em Proudhon ou Marx) ou na sua estranha aceitação (como em Comte, George Sand ou Lamartine).
Nesse mundo que perde ou quer reinventar Deus, um santo é deificado: Victor Hugo, chave do século e figura central deste livro, que nos é apresentado em seu "deslizamento" para a esquerda, até chegar a ser a incorporação do espírito da justiça. Sua morte e seu gigantesco funeral público perfazem o verdadeiro evento simbólico que fecha todo o universo das idéias lançadas pela Revolução de 1789.

Bravas mulheres
Antes disso -e essa é uma das facetas mais interessantes deste livro- as mulheres do século 19 terão papel fundamental: Olympe de Gouges, Madame de Staël, George Sand, Louise Michel. E sobretudo Flora Tristan, que vemos em sua trajetória romanesca, desenrolada junto do movimento operário de tal forma que Winock não hesita em dar a ela o crédito pela criação da organização operária e do conceito de luta de classes -que Marx irá se utilizar apenas depois que chega a essa França convulsionada. Pois, além das mulheres, há os estrangeiros: Heine, Bakunin, o poeta polonês Mickiewicz. Todos habitam a Paris "da liberdade" e das revoluções e todos constam deste livro.
Tudo é fascinante, mas algo sempre falta. Como não há uma concepção clara da formação do capitalismo junto da formação da política de sua época, Winock não nos deixa descobrir as melhores relações entre a vida intelectual e a sociedade francesa (e mundial), como podemos ver nos inacabados ensaios de Walter Benjamin sobre Baudelaire e Paris, por exemplo.

Manual erudito
Creio que é por isso que o capítulo dedicado justamente a Baudelaire e Flaubert seja tão insuficiente. Aqui Winock nos conta as histórias paralelas das censuras que sofreram os autores de "As Flores do Mal" e "Madame Bovary". Nada da gigantesca fortuna crítica sobre esses escritores geniais parece ter tocado o historiador.
Nada disso é mobilizado para entender não apenas a razão da censura a Baudelaire, em 1857, mas também as razões pelas quais essa interdição durou até 1949 -justamente nessa sociedade que nos é apresentada como a "pátria da liberdade".
Não há vestígio de compreensão do papel fundamental, para a literatura de Flaubert (e seu desprezo pela vida comezinha do "francês profundo") e Baudelaire, dos fracassos revolucionários, como ensina outro historiador já publicado no Brasil, Dolf Oehler. Pode-se defender Winock lembrando que, afinal, esse é um enorme manual erudito que estabelece relações sincrônicas e horizontais, e não analíticas e verticais.
É verdade, e a opção tem muitos méritos. Mas também é verdade que há algo de superficial nessa inteligente, bem informada e enciclopédica coleção de resenhas cultas.


FRANCISCO ALAMBERT é professor de história social da arte e história contemporânea na Universidade de São Paulo.

AS VOZES DA LIBERDADE
Autor:
Michel Winock
Tradução: Eloá Jacobina
Editora: Bertrand Brasil (tel. 0/xx/ 21/ 2585-2070)
Quanto: R$ 99 (906 págs.)


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