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A palavra turbulenta
Em "As Vozes da Liberdade",
o historiador Michel Winock recria a batalha pela livre expressão no século 19
FRANCISCO ALAMBERT
ESPECIAL PARA A FOLHA
Tanto quanto o gosto
pelo debate de idéias,
a tradição moderna
francesa guarda o gosto por manuais eruditos. Neste "As Vozes da Liberdade", o historiador Michel
Winock compõe uma obra mural a partir dos escritores do
"partido da liberdade" (romancistas, publicistas, livre-pensadores) e de suas acaloradas
idéias de intervenção bem como de suas desavenças entre si,
no caudaloso século 19 francês.
História em que não falta
aquilo que se convencionou
chamar de vida privada, escrita
em linguagem deliciosamente
fluente e bastante literária,
quase uma mimese dos textos
apoteóticos dos escritores
abordados. Estes foram escolhidos por seu engajamento
público ou por suas posições
políticas, e não por "talento" literário. Eles podem ser escritores "menores" ou então apanhados em momentos "menores" de suas trajetórias, mas, no
plano de Winock -construir a
cartografia política dos escritores do século das revoluções-,
adquirem especial relevância,
como é o caso do interessante
capítulo sobre a "Revue Parisienne", fundada pelo reacionarismo militante de Balzac.
Idéias socialistas
Já na introdução -e sobretudo ao longo dos capítulos (que
podem ser lidos separadamente)-, somos apresentados ao
histórico do problema.
Se a Restauração de Luís 18
não pôde retroagir diante das
liberdades civis conquistadas
pela Revolução de 1789, o regime irá endurecer na época de
Carlos 10º, momento em que se
firmam as novas "vozes da liberdade". E essas vozes se encaminharão, contra ou a favor,
para a Revolução de 1830, a de
1848, até as conseqüências da
Comuna de Paris, já no final do
século 19.
Esse processo teve como
uma de suas conseqüências o
surgimento forte das idéias socialistas. Desde então, na opinião do historiador, acumularam-se os "dilemas" entre liberdade versus autoridade ou
entre a "autoridade reacionária" e a "autoridade utopista"
-obstáculos que a "liberdade"
deverá enfrentar.
Winock situa esses "dilemas"
em um campo formal, ou puramente "de idéias". Pois, para
ele, quase não existe nada além
da política, das relações internas e da sociabilidade intelectual e sentimental diante das
turbulências fabulosas do século francês.
Ele mal nos oferece a compreensão do capitalismo, das
tramas das classes e da forma
do capital para entender as
idéias de seus escritores. Sendo
assim, a questão central que
unificaria as diferentes visões
da liberdade estaria no combate à religião (como em Proudhon ou Marx) ou na sua estranha aceitação (como em Comte, George Sand ou Lamartine).
Nesse mundo que perde ou
quer reinventar Deus, um santo é deificado: Victor Hugo,
chave do século e figura central
deste livro, que nos é apresentado em seu "deslizamento"
para a esquerda, até chegar a
ser a incorporação do espírito
da justiça. Sua morte e seu gigantesco funeral público perfazem o verdadeiro evento simbólico que fecha todo o universo das idéias lançadas pela Revolução de 1789.
Bravas mulheres
Antes disso -e essa é uma
das facetas mais interessantes
deste livro- as mulheres do século 19 terão papel fundamental: Olympe de Gouges, Madame de Staël, George Sand, Louise Michel. E sobretudo Flora
Tristan, que vemos em sua trajetória romanesca, desenrolada
junto do movimento operário
de tal forma que Winock não
hesita em dar a ela o crédito pela criação da organização operária e do conceito de luta de
classes -que Marx irá se utilizar apenas depois que chega a
essa França convulsionada.
Pois, além das mulheres, há
os estrangeiros: Heine, Bakunin, o poeta polonês Mickiewicz. Todos habitam a Paris "da
liberdade" e das revoluções e
todos constam deste livro.
Tudo é fascinante, mas algo
sempre falta. Como não há uma
concepção clara da formação
do capitalismo junto da formação da política de sua época,
Winock não nos deixa descobrir as melhores relações entre
a vida intelectual e a sociedade
francesa (e mundial), como podemos ver nos inacabados ensaios de Walter Benjamin sobre Baudelaire e Paris, por
exemplo.
Manual erudito
Creio que é por isso que o capítulo dedicado justamente a
Baudelaire e Flaubert seja tão
insuficiente. Aqui Winock nos
conta as histórias paralelas das
censuras que sofreram os autores de "As Flores do Mal" e
"Madame Bovary". Nada da gigantesca fortuna crítica sobre
esses escritores geniais parece
ter tocado o historiador.
Nada disso é mobilizado para
entender não apenas a razão da
censura a Baudelaire, em 1857,
mas também as razões pelas
quais essa interdição durou até
1949 -justamente nessa sociedade que nos é apresentada como a "pátria da liberdade".
Não há vestígio de compreensão do papel fundamental, para a literatura de Flaubert (e seu desprezo pela vida
comezinha do "francês profundo") e Baudelaire, dos fracassos
revolucionários, como ensina
outro historiador já publicado
no Brasil, Dolf Oehler.
Pode-se defender Winock
lembrando que, afinal, esse é
um enorme manual erudito
que estabelece relações sincrônicas e horizontais, e não analíticas e verticais.
É verdade, e a
opção tem muitos méritos. Mas
também é verdade que há algo
de superficial nessa inteligente,
bem informada e enciclopédica
coleção de resenhas cultas.
FRANCISCO ALAMBERT é professor de história social da arte e história contemporânea na
Universidade de São Paulo.
AS VOZES DA LIBERDADE
Autor: Michel Winock
Tradução: Eloá Jacobina
Editora: Bertrand Brasil (tel. 0/xx/
21/ 2585-2070)
Quanto: R$ 99 (906 págs.)
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