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Édipo, o retorno
O psicanalista Juan David Nasio fala de seu novo livro, que sai no Brasil em 2007,
e diz que o principal complexo apontado por Freud está sendo mal interpretado
Howard Greenberg Gallery/Associated Press
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"Crianças com Boneca", trabalho de 1942 do fotojornalista americano Gordon Parks |
FLÁVIA MARREIRO
DE BUENOS AIRES
Depois de quase 40
anos de clínica, o
argentino Juan David Nasio, um dos
mais respeitados
psicanalistas do mundo, resolveu revisitar um conceito fundador da teoria: o complexo de
Édipo.
Para Nasio, era preciso salvá-lo da banalização e reapresentá-lo como uma crise de crescimento da criança, um complexo do prazer sexual -e não como "um complexo de sentimentos" envolvendo o pai e a
mãe. "Trata-se de uma chama
de erotismo que invade a criança e alcança os adultos que a rodeiam", diz o psicanalista, ao
falar de "Sobre Édipo", lançado
no final do ano passado na
França e que deve sair em fevereiro de 2007 no Brasil pela
editora Jorge Zahar.
Fiel ao objetivo de ampliar o
público de seus livros, o psicanalista fala simples para expor
conceitos e descrever cenas-padrão do Édipo: o prazer da
menina ao brincar de cavalinho
com o pai ou voyeurismo do
menino com a mãe.
Ex-aluno e colaborador de
Jacques Lacan, ele não foge às
perguntas impostas à psicanálise pela contemporaneidade.
Rechaça a idéia de que a infância passa por uma crise, supostamente atacada pela demasiada exposição a conteúdos de
todo tipo, inclusive eróticos.
"Penso que cada época tem a
precocidade que corresponde.
Imagino que no século 19, durante a Revolução Industrial,
quando as crianças começaram
a estudar em escolas obrigatórias, deviam dizer que a infância era mais precoce. A infância
hoje é muito mais protegida."
Sobre a educação de crianças
por casais homossexuais, diz
que é muito cedo para bancar
conclusões, mas aponta: "Efetivamente vai haver um problema, que a criança saberá superar, que é a falta de modelos".
Nasio não vê "inconvenientes" para a prática e tem aconselhado casais gays no consultório a evitarem o isolamento
da criança, a promoverem o
contato com outros modelos de
família e não a tratarem como
um "ser extraordinário", centro da relação, diz.
De Paris, onde vive desde
1969 e onde a psicanálise é alvo
de vários questionamentos,
Nasio disse à Folha que a teoria não é mais "dominante",
mas é ainda a mais "profunda e
justa". Leia, a seguir, trechos da
entrevista.
FOLHA - Por que o sr. resolveu revisitar o complexo de Édipo?
JUAN DAVID NASIO - O Édipo me
pareceu um tema tão conhecido que se transformou numa
palavra banal e, por conseguinte, mal conhecida. Hegel diz
que o bem conhecido é mal conhecido. Efetivamente, um
grande erro do Édipo é pensá-lo como um complexo de sentimentos, de amor e de ódio. Do
amor do menino pela mãe e do
ódio pelo pai. E, da menina, o
amor pelo pai e o ódio pela mãe.
É uma idéia falsa.
Na verdade, o Édipo é um
complexo de desejo, de sexualidade. É o complexo de sentir o
prazer e a dor do corpo da mãe,
o prazer ou o rechaço ao corpo
do pai. O mais importante do
complexo é que ele é uma crise
de crescimento da criança. Trata-se de uma chama de erotismo que invade a criança e alcança os adultos que a rodeiam,
que podem ser os pais, os irmãos, as irmãs, às vezes as pessoas que estão ao redor, a babá.
O que eu quis com o livro foi
mostrar que essa chama de erotismo que acontece em uma
criança entre três e seis anos de
idade está dentro da própria relação com os pais. E essa chama
ocorre em todas as crianças do
mundo, em qualquer cultura,
em qualquer civilização.
FOLHA - O que marca a diferença
da fase anterior?
NASIO - O bebê sente desejo pelo peito da mãe, ele vai gostar de
sentir a língua no mamilo da
mãe, o cheiro dela. E a mãe
também vai sentir prazer sexual amamentando. Quero dizer com isso que as crianças
têm prazer antes do Édipo, obviamente.
O que acontece é que no Édipo é a primeira vez, na história
da criança, que ela vai sentir desejo não pelo peito da mãe ou
pela voz, e sim por toda a pessoa da mãe. Pode ocorrer que
algumas pessoas sintam mais,
outras menos. Há variações.
FOLHA - Quais são os comportamentos comuns da criança no período?
NASIO - A partir dos seis anos,
acontece um coisa nova no ser
humano, que é a aparição do
pudor. Aparece o sentimento
da reserva, da culpa, o sentimento de ter uma vida interior.
A partir dessa idade, meninas
e meninos começam a ser mais
recatados, mais cuidadosos.
Durante essa chama erótica
que é o Édipo, a criança vai
apresentar uma série de comportamentos perversos (no
sentido infantil), exibicionismos, sobretudo nos meninos,
voyeurismo (como o menino
espiar a mãe que sai do banho, a
menina também).
É a época em que o menino
vai meter a mão no decote da irmã mais velha. Isso um menino
de três anos faz e é normal.
Uma criança de dez não faz... O
que aconteceu? A criança descobriu, sente, que não pode fazer tudo. Incorporou as proibições sociais. Bom, toma uma
série de atitudes que são de respeito. Aparece o que os psicanalistas chamamos de sentimentos morais.
FOLHA - O sr. diz que o complexo
de Édipo acontece em crianças de
todo o mundo. Leva em conta diferenças culturais?
NASIO - Primeiro, minha teoria
é a freudiana, que visito com
minha própria experiência e
com a teoria de Lacan. Devo dizer que sim, que obviamente
essa concepção do Édipo se
adapta às situações culturais.
Provavelmente em países em
que a relação entre homem e
mulher, da família, está mais
estabelecida em um triângulo,
provavelmente essa evolução
se manifeste de uma maneira
mais característica.
No mundo ocidental, por
exemplo, no caso de uma criança que é educada e criada por
duas mulheres homossexuais, é
provável que haja variações no
que digo. Porque a criança, por
exemplo, um menino, não vai
ter um modelo do pai-homem
diferente da mãe-mulher. Então você tem razão de me perguntar, porque isso é, mais do
que uma teoria, uma interpretação dos fatos.
Mas, obviamente, no caso de
uma criança que cresce no âmbito de duas mulheres homossexuais, é provável que o Édipo
seja mais precoce e seja mais
longo também. Há variações.
FOLHA - O sr. toca num assunto polêmico. Pode chegar a ser um problema para uma criança ser criada
por um casal homossexual?
NASIO - Não podemos dizer
que seja um problema. Hoje em
dia não temos bastante distância, porque esse é um fenômeno relativamente recente. Sabe-se de crianças que têm sido
criadas por casais homossexuais há seis, cinco anos. Precisamos de mais tempo para tomar uma posição.
Mas, como psiquiatra e psicanalista, posso dizer que não
vejo nenhum inconveniente
para que isso aconteça, salvo
três observações.
Primeiro: efetivamente vai
haver um problema, que a
criança saberá superar, que é a
falta de modelos, do que é um
homem que ama uma mulher,
de uma mulher que ama um homem. É muito importante, não
tanto o modelo do homem na
casa, mas o modelo de um casal
heterossexual. Uma criança necessita ver sua mãe que ama seu
pai. Uma criança precisa ver como o pai faz carícias na mãe, como a mãe fala bem do pai.
Então, no caso de uma criança de um casal homossexual,
esse jogo de dois seres tão diferentes não existe, não vai acontecer. Isso é importante, e a
criança vai ter que superar.
O segundo problema: o risco
de uma criança educada por um
casal homossexual -isso é um
risco, não uma certeza- crescer em um ambiente muito fechado. É indispensável para essa criança que veja outras famílias funcionarem, que possa ir à
casa das famílias dos amiguinhos. Às vezes, por conta de serem homossexuais, a família
pode ser isolada das famílias de
outras crianças.
O terceiro problema a considerar -e já está sendo considerado, porque tenho recebido
casais de homossexuais que
vêm me pedir conselhos sobre
a melhor forma de educá-los-
é o mais importante dos três:
que a criança não seja tratada
como o "rei" da casa.
Num casal homossexual é
muito provável que sintam a
criança como o centro de toda a
casa, e isso não é bom.
FOLHA - Mas por que seria um risco
maior tratá-la como "um reizinho",
se comparado ao casal homem e
mulher?
NASIO - Porque uma criança de
casal homossexual se converteu em algo excepcional, em
um fenômeno único, demasiado único, uma espécie de bem
inestimável, o centro do casal.
E isso é uma malíssima condição para educar um filho. O
conselho que tenho dado é evitar isso de todos os modos, de
ter um filho mimado. Isso também acontece, devo dizer, com
filho de casais mais maduros.
Quando uma mulher de 42
anos, que nunca foi mãe, vai ter
um filho com um pai de 52.
FOLHA - Hoje se fala que as crianças são cada mais precoces, que há
grande exposição à TV, a computadores e, muito cedo, a conteúdos
eróticos. A infância está em crise?
NASIO - Não tenho essa impressão. A infância recebe muitos elementos, muitas referências sociais. Hoje as crianças
conhecem perfeitamente os
computadores aos três anos,
dois anos. Mas não creio que isso tenha uma influência decisiva no que é a educação ou a precocidade da infância.
Penso que cada época tem a
precocidade correspondente.
Imagino que, por exemplo, no
século 19, quando apareceu a
grande Revolução Industrial,
quando as crianças começaram
a estudar obrigatoriamente,
creio também que neste momento deviam dizer que a infância era mais precoce.
Penso o contrário: as crianças de hoje, em certo sentido,
são muito mais protegidas do
que antes. Antes, as crianças
trabalhavam cedo, ajudavam as
famílias. Lembro também que
as meninas, aos 12 anos, já tinham filhos.
FOLHA - Em março passado, o golpe de Estado na Argentina, que instalou o governo militar hoje acusado de matar 30 mil opositores, completou 30 anos. Qual o efeito desse
terror ainda hoje?
NASIO - Hoje a Argentina está
num processo de reconstrução,
mas é verdade que não se poderão esquecer os desaparecidos.
É um luto interminável, que
não se cumpriu. Podemos generalizar isso socialmente e dizer que a Argentina está crescendo como pode, um crescimento a golpes, e o luto dos desaparecidos, no nível social,
não se cumpriu.
O luto se cumpre quando se
deixa atuar o tempo, quando o
tempo trabalha. O luto não se
cumpre quando parece que o
tempo não passou. No caso da
Argentina, é como se o tempo,
ao longo de 30 anos, não tivesse
passado.
FOLHA - O sr. foi aluno e colaborador do Lacan e de outros teóricos famosos. O que aprendeu com ele?
NASIO - Também tive como
mestre François Dolto e Winnicot, que me ensinou muito
-a saber, que o limite entre o
enfermo e o normal é muito
ambíguo, pouco nítido. Cada
um, em seu estilo, me ensinou
coisas que são únicas. Hoje o
professor sou eu. Porque, claro,
tenho muitos alunos e já devo
ter formado três, quatro gerações de psicanalistas.
Mas, obviamente, meu grande mestre do pensamento psicanalítico foi Lacan. Lacan foi
um revolucionário porque formalizou, revolucionou a teoria
psicanalítica de Freud; ela a codificou. Isso Freud não tinha
feito -ou não completamente.
Lacan codificou a psicanálise, e
isso a fez avançar muito.
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