São Paulo, domingo, 16 de julho de 2006

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Édipo, o retorno

O psicanalista Juan David Nasio fala de seu novo livro, que sai no Brasil em 2007, e diz que o principal complexo apontado por Freud está sendo mal interpretado

Howard Greenberg Gallery/Associated Press
"Crianças com Boneca", trabalho de 1942 do fotojornalista americano Gordon Parks


FLÁVIA MARREIRO
DE BUENOS AIRES

Depois de quase 40 anos de clínica, o argentino Juan David Nasio, um dos mais respeitados psicanalistas do mundo, resolveu revisitar um conceito fundador da teoria: o complexo de Édipo.
Para Nasio, era preciso salvá-lo da banalização e reapresentá-lo como uma crise de crescimento da criança, um complexo do prazer sexual -e não como "um complexo de sentimentos" envolvendo o pai e a mãe. "Trata-se de uma chama de erotismo que invade a criança e alcança os adultos que a rodeiam", diz o psicanalista, ao falar de "Sobre Édipo", lançado no final do ano passado na França e que deve sair em fevereiro de 2007 no Brasil pela editora Jorge Zahar.
Fiel ao objetivo de ampliar o público de seus livros, o psicanalista fala simples para expor conceitos e descrever cenas-padrão do Édipo: o prazer da menina ao brincar de cavalinho com o pai ou voyeurismo do menino com a mãe.
Ex-aluno e colaborador de Jacques Lacan, ele não foge às perguntas impostas à psicanálise pela contemporaneidade. Rechaça a idéia de que a infância passa por uma crise, supostamente atacada pela demasiada exposição a conteúdos de todo tipo, inclusive eróticos. "Penso que cada época tem a precocidade que corresponde.
Imagino que no século 19, durante a Revolução Industrial, quando as crianças começaram a estudar em escolas obrigatórias, deviam dizer que a infância era mais precoce. A infância hoje é muito mais protegida."
Sobre a educação de crianças por casais homossexuais, diz que é muito cedo para bancar conclusões, mas aponta: "Efetivamente vai haver um problema, que a criança saberá superar, que é a falta de modelos". Nasio não vê "inconvenientes" para a prática e tem aconselhado casais gays no consultório a evitarem o isolamento da criança, a promoverem o contato com outros modelos de família e não a tratarem como um "ser extraordinário", centro da relação, diz. De Paris, onde vive desde 1969 e onde a psicanálise é alvo de vários questionamentos, Nasio disse à Folha que a teoria não é mais "dominante", mas é ainda a mais "profunda e justa". Leia, a seguir, trechos da entrevista.
 

FOLHA - Por que o sr. resolveu revisitar o complexo de Édipo? JUAN DAVID NASIO - O Édipo me pareceu um tema tão conhecido que se transformou numa palavra banal e, por conseguinte, mal conhecida. Hegel diz que o bem conhecido é mal conhecido. Efetivamente, um grande erro do Édipo é pensá-lo como um complexo de sentimentos, de amor e de ódio. Do amor do menino pela mãe e do ódio pelo pai. E, da menina, o amor pelo pai e o ódio pela mãe. É uma idéia falsa. Na verdade, o Édipo é um complexo de desejo, de sexualidade. É o complexo de sentir o prazer e a dor do corpo da mãe, o prazer ou o rechaço ao corpo do pai. O mais importante do complexo é que ele é uma crise de crescimento da criança. Trata-se de uma chama de erotismo que invade a criança e alcança os adultos que a rodeiam, que podem ser os pais, os irmãos, as irmãs, às vezes as pessoas que estão ao redor, a babá. O que eu quis com o livro foi mostrar que essa chama de erotismo que acontece em uma criança entre três e seis anos de idade está dentro da própria relação com os pais. E essa chama ocorre em todas as crianças do mundo, em qualquer cultura, em qualquer civilização.

FOLHA - O que marca a diferença da fase anterior?
NASIO -
O bebê sente desejo pelo peito da mãe, ele vai gostar de sentir a língua no mamilo da mãe, o cheiro dela. E a mãe também vai sentir prazer sexual amamentando. Quero dizer com isso que as crianças têm prazer antes do Édipo, obviamente. O que acontece é que no Édipo é a primeira vez, na história da criança, que ela vai sentir desejo não pelo peito da mãe ou pela voz, e sim por toda a pessoa da mãe. Pode ocorrer que algumas pessoas sintam mais, outras menos. Há variações.

FOLHA - Quais são os comportamentos comuns da criança no período?
NASIO -
A partir dos seis anos, acontece um coisa nova no ser humano, que é a aparição do pudor. Aparece o sentimento da reserva, da culpa, o sentimento de ter uma vida interior. A partir dessa idade, meninas e meninos começam a ser mais recatados, mais cuidadosos. Durante essa chama erótica que é o Édipo, a criança vai apresentar uma série de comportamentos perversos (no sentido infantil), exibicionismos, sobretudo nos meninos, voyeurismo (como o menino espiar a mãe que sai do banho, a menina também). É a época em que o menino vai meter a mão no decote da irmã mais velha. Isso um menino de três anos faz e é normal. Uma criança de dez não faz... O que aconteceu? A criança descobriu, sente, que não pode fazer tudo. Incorporou as proibições sociais. Bom, toma uma série de atitudes que são de respeito. Aparece o que os psicanalistas chamamos de sentimentos morais.

FOLHA - O sr. diz que o complexo de Édipo acontece em crianças de todo o mundo. Leva em conta diferenças culturais?
NASIO -
Primeiro, minha teoria é a freudiana, que visito com minha própria experiência e com a teoria de Lacan. Devo dizer que sim, que obviamente essa concepção do Édipo se adapta às situações culturais. Provavelmente em países em que a relação entre homem e mulher, da família, está mais estabelecida em um triângulo, provavelmente essa evolução se manifeste de uma maneira mais característica. No mundo ocidental, por exemplo, no caso de uma criança que é educada e criada por duas mulheres homossexuais, é provável que haja variações no que digo. Porque a criança, por exemplo, um menino, não vai ter um modelo do pai-homem diferente da mãe-mulher. Então você tem razão de me perguntar, porque isso é, mais do que uma teoria, uma interpretação dos fatos. Mas, obviamente, no caso de uma criança que cresce no âmbito de duas mulheres homossexuais, é provável que o Édipo seja mais precoce e seja mais longo também. Há variações.

FOLHA - O sr. toca num assunto polêmico. Pode chegar a ser um problema para uma criança ser criada por um casal homossexual?
NASIO -
Não podemos dizer que seja um problema. Hoje em dia não temos bastante distância, porque esse é um fenômeno relativamente recente. Sabe-se de crianças que têm sido criadas por casais homossexuais há seis, cinco anos. Precisamos de mais tempo para tomar uma posição. Mas, como psiquiatra e psicanalista, posso dizer que não vejo nenhum inconveniente para que isso aconteça, salvo três observações. Primeiro: efetivamente vai haver um problema, que a criança saberá superar, que é a falta de modelos, do que é um homem que ama uma mulher, de uma mulher que ama um homem. É muito importante, não tanto o modelo do homem na casa, mas o modelo de um casal heterossexual. Uma criança necessita ver sua mãe que ama seu pai. Uma criança precisa ver como o pai faz carícias na mãe, como a mãe fala bem do pai. Então, no caso de uma criança de um casal homossexual, esse jogo de dois seres tão diferentes não existe, não vai acontecer. Isso é importante, e a criança vai ter que superar. O segundo problema: o risco de uma criança educada por um casal homossexual -isso é um risco, não uma certeza- crescer em um ambiente muito fechado. É indispensável para essa criança que veja outras famílias funcionarem, que possa ir à casa das famílias dos amiguinhos. Às vezes, por conta de serem homossexuais, a família pode ser isolada das famílias de outras crianças. O terceiro problema a considerar -e já está sendo considerado, porque tenho recebido casais de homossexuais que vêm me pedir conselhos sobre a melhor forma de educá-los- é o mais importante dos três: que a criança não seja tratada como o "rei" da casa. Num casal homossexual é muito provável que sintam a criança como o centro de toda a casa, e isso não é bom.

FOLHA - Mas por que seria um risco maior tratá-la como "um reizinho", se comparado ao casal homem e mulher?
NASIO -
Porque uma criança de casal homossexual se converteu em algo excepcional, em um fenômeno único, demasiado único, uma espécie de bem inestimável, o centro do casal. E isso é uma malíssima condição para educar um filho. O conselho que tenho dado é evitar isso de todos os modos, de ter um filho mimado. Isso também acontece, devo dizer, com filho de casais mais maduros. Quando uma mulher de 42 anos, que nunca foi mãe, vai ter um filho com um pai de 52.

FOLHA - Hoje se fala que as crianças são cada mais precoces, que há grande exposição à TV, a computadores e, muito cedo, a conteúdos eróticos. A infância está em crise?
NASIO -
Não tenho essa impressão. A infância recebe muitos elementos, muitas referências sociais. Hoje as crianças conhecem perfeitamente os computadores aos três anos, dois anos. Mas não creio que isso tenha uma influência decisiva no que é a educação ou a precocidade da infância. Penso que cada época tem a precocidade correspondente. Imagino que, por exemplo, no século 19, quando apareceu a grande Revolução Industrial, quando as crianças começaram a estudar obrigatoriamente, creio também que neste momento deviam dizer que a infância era mais precoce. Penso o contrário: as crianças de hoje, em certo sentido, são muito mais protegidas do que antes. Antes, as crianças trabalhavam cedo, ajudavam as famílias. Lembro também que as meninas, aos 12 anos, já tinham filhos.

FOLHA - Em março passado, o golpe de Estado na Argentina, que instalou o governo militar hoje acusado de matar 30 mil opositores, completou 30 anos. Qual o efeito desse terror ainda hoje?
NASIO -
Hoje a Argentina está num processo de reconstrução, mas é verdade que não se poderão esquecer os desaparecidos. É um luto interminável, que não se cumpriu. Podemos generalizar isso socialmente e dizer que a Argentina está crescendo como pode, um crescimento a golpes, e o luto dos desaparecidos, no nível social, não se cumpriu. O luto se cumpre quando se deixa atuar o tempo, quando o tempo trabalha. O luto não se cumpre quando parece que o tempo não passou. No caso da Argentina, é como se o tempo, ao longo de 30 anos, não tivesse passado.

FOLHA - O sr. foi aluno e colaborador do Lacan e de outros teóricos famosos. O que aprendeu com ele?
NASIO -
Também tive como mestre François Dolto e Winnicot, que me ensinou muito -a saber, que o limite entre o enfermo e o normal é muito ambíguo, pouco nítido. Cada um, em seu estilo, me ensinou coisas que são únicas. Hoje o professor sou eu. Porque, claro, tenho muitos alunos e já devo ter formado três, quatro gerações de psicanalistas.
Mas, obviamente, meu grande mestre do pensamento psicanalítico foi Lacan. Lacan foi um revolucionário porque formalizou, revolucionou a teoria psicanalítica de Freud; ela a codificou. Isso Freud não tinha feito -ou não completamente. Lacan codificou a psicanálise, e isso a fez avançar muito.


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