São Paulo, domingo, 16 de agosto de 2009

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Marcha forçada para o Oriente


Escravidão negra residual continuou a se disseminar pelo Oriente Médio no século 20, com cativos levados do nordeste da África; prática ainda resiste


MANOLO FLORENTINO
COLUNISTA DA FOLHA

Tudo começou em 1928, quando da visita ao emir da então chamada Transjordânia [atual Jordânia]. Uma bem armada guarda de homens negros, em nada assemelhados a beduínos, vigiava a residência em Amã. Como Joseph Kessel indagasse a que tribo pertenciam esses soldados, ouviu do príncipe: "São meus escravos, vindos do outro lado do mar".
O fato não despertou maior interesse até que, 15 meses depois, vagando pelo deserto sírio, Kessel foi ter à tenda de outro potentado islâmico. A um canto, via-se uma dezena de negros armados até os dentes, de quem o intérprete que o acompanhava informou tratar-se de escravos, "sobre os quais o dono tem direito de vida e morte". Soube igualmente que qualquer chefe, pequeno ou grande, tinha escravos, destinados a serviços domésticos ou à proteção dos seus senhores, todos eles provenientes do litoral africano do mar Vermelho.
De regresso à Europa, leu o que pôde sobre o assunto.
Aprendeu que, embora residual, a escravidão negra disseminava-se pelo Oriente Médio, sendo o Sudão e a Abissínia [atual Etiópia] as suas principais fontes. Apresados no interior, os africanos eram embarcados em pontos secretos da costa e desembarcados também sigilosamente no litoral asiático, de onde eram levados para diversos mercados. Desvendar "in loco" os mecanismos do tráfico desses infelizes tornou-se a sua obsessão -queria documentar a captura, atravessar o mar Vermelho com os escravos e segui-los até a revenda final nos mercados islâmicos.

Aventura jornalística
O jornal parisiense "Le Matin" resolveu bancar o projeto. Afinal, aos 30 anos de idade, Joseph Kessel gozava de grande prestígio. Nascido na Argentina em 1898, vivera nos Urais [montes que separam a Europa da Ásia] entre 1905 e 1908 e logo se instalou na França. Flertara com o teatro, mas acabou por se engajar no Exército em fins de 1916. Artilheiro e aviador, recebera a Cruz de Guerra.
Com o término do conflito mundial, voltou-se para o jornalismo e para a literatura, sempre focado em trajetórias limites e em contextos excepcionais: a Revolução Russa, o submundo urbano, os desamparados. Em 1928, publicou "Belle de Jour" [Bela da Tarde] pela [editora francesa] Gallimard, livro no qual se basearia Luis Buñuel para realizar, 40 anos depois, um dos seus melhores filmes.
Quis o destino que travasse contato em Paris com Henry de Monfreid (1879-1974), misantropo que havia décadas vivia no Chifre da África [no nordeste do continente], contrabandeando armas, pérolas e haxixe.
Monfreid o acolheu em sua casa na Abissínia, e a amizade entre ambos converteu-se em verdadeiro salvo-conduto para Kessel. Por meio dele, conheceu um velho muçulmano enriquecido com o tráfico, o qual lhe apresentou Said (nome fictício), traficante ainda na ativa.
Na província de Harare, a 500 quilômetros de Adis Abeba [capital etíope], descobriu que o cativeiro encontrava-se entranhado na gente, que negros escravizados de todas as idades provinham da fronteira com o Sudão, que a fome e o medo os unia. Vê-los devorar um boi cru, rápidos como abutres, o fascinou. Entrevistou-os e ouviu sempre a mesma triste história: recordações de florestas, raptos em massa ou isolados, caminhadas intermináveis e, por fim, o cativeiro.

Comboio de escravos
Said, o mercador de escravos, confidenciou-lhe que duas caravanas anuais de 15 escravos para a Arábia bastavam-lhe para se manter -se não perecessem no caminho. Pagava os impostos das aldeias miseráveis para, em troca, obtê-los. Outro meio era dispor de caçadores corajosos.
Joseph Kessel teve a oportunidade de observar um dos comboieiros de Said em ação.
Seu nome era Sélim, especialista no rapto de crianças. Viu-o arrastar-se pela relva como um felino para, sem ruídos, capturar uma pequena pastora, enrolá-la em uma manta e com ela regressar à aldeia. Said perguntou-lhe se estava satisfeito com o espetáculo. Kessel anuiu, oferecendo-se para comprar a menina e libertá-la. Fecharam o negócio por 30 libras. Pouco depois, a pastorinha regressava às origens, pelas mãos dos mesmos que a haviam transformado em um pequeno embrulho.
Arriscando a própria vida, acompanhou o pequeno rebanho humano de Said -sete mulheres e quatro homens- rumo ao litoral. Com eles atravessou o mar Vermelho e atracou no Iêmen. Disseram-lhe que os escravos haviam sido remetidos em caravana para Meca [na Arábia Saudita], onde seriam vendidos em leilões. Seguiu a pista, e foi esta a sua última grande descoberta: os africanos desembarcavam no litoral arábico segundo todas as regras prescritas para os peregrinos, mas nunca regressavam.
A reportagem de Kessel foi publicada em 20 capítulos pelo "Le Matin", cujas vendas aumentaram em 150 mil exemplares. Em 1933, seus artigos transformaram-se no livro "Marchés d'Esclaves" [Marchas de Escravos], editado pela Éditions de France. Quanto ao autor, continuou sucumbindo ao seu destino: lutou na Guerra Civil Espanhola [1936-39], aderiu à Resistência francesa durante a Segunda Guerra Mundial -obtendo mais uma Cruz de Guerra-, militou pela criação do Estado de Israel [1948], sempre a escrever.
Joseph Kessel morreu há 30 anos, na condição de membro da Academia Francesa. O cativeiro que descreveu ainda viceja, sobretudo em países muçulmanos. Quando menos por isso, seu relato continua a ser uma fonte ímpar para os estudiosos da escravidão no mundo contemporâneo.


MANOLO FLORENTINO é professor de história na Universidade Federal do Rio de Janeiro, é autor de "Tráfico, Cativeiro e Liberdade" (ed. Civilização Brasileira) e escreve regularmente na seção "Autores", do Mais! .




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