|
Texto Anterior | Índice
+ciência
A um passo da vida sintética
Avanços na tecnologia de manipulação genética permitirão, nos próximos meses, fabricar DNA em laboratório e torná-lo "autônomo" do ponto de vista evolutivo
CLIVE COOKSON
A
biologia está se
aproximando de
sua "hora Frankenstein" -a criação da vida a partir
do zero. Em algum momento
dos próximos meses, é provável que cientistas anunciem ter
criado uma célula viva com ingredientes que podem ser adquiridos no varejo.
Pesquisadores liderados por
Craig Venter, a mais destacada
figura na biologia molecular,
sintetizaram no ano passado
um genoma bacteriano completo -todas as instruções genéticas de que uma célula precisa para viver e se reproduzir- partindo de produtos químicos de laboratório.
Também converteram uma
espécie de bactéria em outra
por meio de um "transplante
de genoma". O próximo passo é
inserir o genoma artificial em
uma célula vazia e "carregar" a
mensagem genética, criando o
primeiro micróbio completamente sintético do mundo.
Isso "se provou um problema muito mais complicado do
que imaginávamos -mas sabemos como resolvê-lo", disse
Venter.
Enquanto os cientistas que
ele comanda no J. Craig Venter
Institute, nos subúrbios de
Washington [EUA], planejam
construir do zero uma cópia de
um organismo existente, outros fazem experimentos com
uma biologia artificial, diferente de tudo o que a natureza tem
a oferecer.
Pesquisadores da Fundação
para a Evolução Molecular
Aplicada, na Flórida, criaram
um código genético alternativo
com DNA sintético formado
por seis letras químicas, em lugar das quatro do DNA natural.
"Trata-se do primeiro exemplo de um sistema químico artificial capaz de produzir evolução darwiniana", diz Steven
Benner, o diretor do projeto.
No momento, os estudantes
precisam alimentar o sistema
com produtos químicos para
mantê-lo operacional, mas
Benner espera que, dentro de
dois anos, ele seja capaz de evoluir e se sustentar sem ajuda
-uma forma primitiva de vida
sintética.
O micróbio de Venter e o
DNA artificial de Benner são
projetos especialmente vistosos na empreitada científica
ampla e de rápido crescimento
que atende pelo nome de biologia sintética.
Os biólogos moleculares vêm
transferindo genes entre diferentes espécies, um a um, desde os anos 1970; o trabalho deles nos deu as safras agrícolas
geneticamente modificadas e
os medicamentos biotecnológicos. A biologia sintética está
fazendo da simples engenharia
genética algo muito mais ambicioso ao manipular sistemas vivos inteiros a fim de transformar organismos existentes ou
criar organismos novos.
Aplicações práticas
Embora o campo deva oferecer percepções básicas sobre a
natureza da vida, por exemplo
aos "exobiólogos" que procuram por organismos em outros
planetas, a maioria dos biólogos sintéticos está interessada
em aplicações práticas, especialmente nos setores de saúde,
energia e ambiente.
Além de diversas aplicações
médicas, há muito entusiasmo
quanto às perspectivas de produzir novos biocombustíveis
por meio da biologia sintética.
Uma prova de sério interesse
no potencial comercial dessa
tecnologia surgiu no mês passado, com o anúncio de que a gigante do petróleo norte-americana Exxon e a Synthetic Genomics, empresa criada por Venter, estavam estabelecendo
uma parceria de US$ 600 milhões [R$ 1,1 bilhão] a fim de
produzir biocombustíveis com
base em algas geneticamente
modificadas. A biologia sintética será essencial ao sucesso do
projeto em longo prazo, diz
Venter.
A Synthetic Genomics (uma
empresa que opera em separado do Venter Institute, de
orientação mais acadêmica e
responsável pelo desenvolvimento do micróbio artificial) já
conseguiu produzir variantes
de algas que secretam óleo de
suas células. Isso deve permitir
a produção de combustível em
um biorreator -o que é mais
eficiente do que o processo tradicional de colher algas nas
águas e depois extrair o óleo.
Os próximos passos envolvem selecionar ainda mais as
algas naturais a fim de encontrar variantes que são particularmente eficientes no uso de
energia solar e a conversão do
dióxido de carbono em óleos.
Depois, os pesquisadores alterarão extensamente o seu
DNA a fim de ampliar o rendimento e alterar a composição
dos óleos, de modo a torná-los
tão semelhantes quanto possível a combustíveis refinados.
Mas Venter afirma que provavelmente vão se passar dez
anos antes que produtos desse
projeto cheguem ao mercado.
Os biocombustíveis podem
ser a porção mais visível da biologia sintética artificial, mas
muitas outras aplicações surgirão. Uma das mais importantes
será a produção de medicamentos que não poderiam ser
fabricados por meio de química
e biologia tradicionais.
A principal demonstração do
uso da biologia sintética em
medicina está em curso há cinco anos na Universidade da Califórnia, em Berkeley, sob os
auspícios da OneWorld Health,
uma empresa sem fins lucrativos que desenvolve medicamentos para tratar doenças infecciosas negligenciadas.
Jay Keasling, o comandante
do projeto, conduziu extensa
engenharia genética usando
fermento -com a alteração de
diversos genes e percursos biológicos- a fim de produzir artemisinina, o mais efetivo tratamento contra a malária, em
uma máquina de fermentação
microbiana.
No momento, a artemisinina
é escassa e cara porque sua única fonte é a artemísia doce, uma
planta medicinal chinesa. O
slogan do professor Keasling é:
"Com as ferramentas da biologia sintética, não precisamos
simplesmente aceitar o que a
natureza nos deu".
Precisão eletrônica
"Nós mal arranhamos a superfície daquilo que a biotecnologia será capaz de fazer", disse
Drew Endy, bioengenheiro da
Universidade Stanford, na Califórnia. "Perguntar sobre as
aplicações da biologia sintética
hoje seria como perguntar a
[John] Von Neumann [pioneiro da computação] quais seriam as aplicações do computador, em 1952".
Um dos traços marcantes do
trabalho na biologia sintética é
o papel essencial desempenhado por engenheiros como
Endy. Eles estão introduzindo
uma disciplina e um rigor que
não costumam ser encontrados
na maior parte das biociências.
Paul Freemont, codiretor do
Centro de Biologia Sintética e
Inovação no Imperial College
de Londres, diz que o objetivo
nos próximos 20 anos será dar
à biologia sintética uma precisão semelhante à da eletrônica.
"Nossa compreensão de como as células vivas funcionam
não é tão boa quanto a nossa
compreensão de aparelhos eletrônicos", afirma. "Queremos
chegar ao ponto em que disponhamos de todas as peças necessárias para construir qualquer máquina biológica que desejemos."
Centenas de peças biológicas
padronizadas já estão disponíveis por intermédio da BioBricks Foundation, uma organização sem fins lucrativos estabelecida por Endy e outros
pesquisadores de biologia sintética. A ideia é que um dia a
função de cada peça seja documentada com tanta precisão
quanto a dos componentes de
computadores, usando especificações.
Os usuários poderiam, então,
usar as peças da BioBricks e outras unidades genéticas padronizadas a fim de desenvolver o
que quer que lhes interessasse.
Ainda estamos muito longe
dessa ordem de precisão. Mas
alunos de graduação já vêm fazendo uso extenso de peças
biológicas padronizadas, por
meio do concurso anual International Genetically Engineered Machine [Competição Internacional de Máquina Geneticamente Engendrada], lançado em 2005.
As realizações dos participantes incluem sangue artificial, um sensor biológico que
detecta arsênico e bactérias
que funcionam como "computadores vivos" e resolvem problemas matemáticos em tubos
de ensaio. Este ano, 120 equipes de estudantes de todo o
mundo estão inscritas.
Qualquer tecnologia que tenha o poder que a biologia sintética oferece certamente despertará preocupação -e questões éticas quase religiosas sobre a criação de vida artificial. A
biologia sintética é um claro
exemplo de tecnologia de "duplo uso" -com amplas aplicações positivas, mas também capaz de ser colocada em uso nefando e destrutivo.
A possibilidade de que terroristas criem um superinseto é
perturbadora, ainda que um relatório divulgado no mês passado pelo Serviço de Ciência e
Tecnologia do Parlamento britânico tenha concluído que
"muitos cientistas e especialistas britânicos em controle da
proliferação acreditam que os
riscos de terrorismo associados
às técnicas de vanguarda para
síntese de DNA vêm sendo exagerados nos Estados Unidos".
A íntegra deste texto foi publicada no "Financial Times".
Tradução de Paulo Migliacci.
Texto Anterior: + lançamentos Índice
|