São Paulo, domingo, 16 de agosto de 1998

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ELEIÇÕES

Clinton na China e a sucessão brasileira

WALDER DE GÓES
especial para a Folha

Desde Richard Nixon, as visitas dos presidentes norte-americanos à China constituem matéria de reflexão sobre os destinos do Ocidente. Não há como negar que a visita de Nixon representou um ponto de inflexão da Guerra Fria, cujo fim há pouco celebramos. Sob esta perspectiva, a visita de Clinton não teve o mesmo caráter dramático, mas sua significação certamente não será muito menor.
É na fixação da agenda comercial que a visita de Bill Clinton à China adquire um significado mais direto para a política brasileira em tempos de globalização. A visita prestou reconhecimento ao êxito econômico da China, mas Clinton deixou claro que, caso a China queira manter sua posição na economia mundial, deve se submeter às regras da Organização Mundial do Comércio e abrir seus mercados à competição estrangeira. O tamanho da economia chinesa e seu impacto global não permitem mais uma postura de outsider. Ou, pelo menos, os Estados Unidos não estão mais dispostos a tolerá-la. O preço inicial do fim dos subsídios ao setor estatal e das reformas econômicas é conhecido: desemprego. Naturalmente, cabe ainda à China decidir se aceita os termos desta negociação e meditar sobre seus custos internos, mas o pronunciamento de Clinton nunca foi tão claro sobre o compromisso de Washington em enfrentar os desafios da globalização econômica. Também nunca foi tão enfática a resposta de Jiang Zemin quanto aos compromissos chineses com o princípio da autodeterminação dos povos, como a dizer que o Estado-Nação não morreu.
Vista de Pequim, a eleição no Brasil examina os mesmos temas. Vitimada pela globalizada crise asiática, a economia brasileira vai sobrevivendo aos juros altos e ao baixo crescimento. Submetido ao transe da reeleição, o presidente Cardoso terá de responder ao problema do desemprego, sem o que não conseguirá força política para prosseguir com as reformas. No campo da oposição, a questão é saber se o combate aos efeitos da globalização pode ser transformado em alternativa econômica concreta. Viverá os meses de campanha prometendo evitar os males e garantir as vantagens do mundo globalizado no qual o Brasil já entrou.
A abertura comercial e econômica iniciada pelo presidente Collor, em 1990, se tornou, com o lançamento do Plano Real, em 1994, peça fundamental do programa de estabilização e símbolo da modernização do país. O roteiro traçado ficou, porém, incompleto em vários trechos. As reformas internas não caminharam com a rapidez necessária e a situação externa experimentou rápida piora. A disponibilidade dos capitais externos foi duramente atingida pela crise econômica na Ásia. No momento mais grave da crise, em novembro de 1997, não restou ao governo senão o duro remédio da alta dos juros internos. A redução do ritmo do crescimento econômico, no início de 1998, se transformou em taxas recordes de desemprego.
O desgaste gerado pelas medidas econômicas foi respondido pelo governo em várias dimensões. Primeiro, tratar-se com remédio amargo, mas temporário, para uma hora de crise internacional. Depois, com o prolongamento das dificuldades, procurou-se mostrar que as taxas brasileiras de desemprego eram até inferiores a de outros países, também atingidos pelas dores do parto da nova ordem internacional. Tudo mudou, contudo, após a queda da candidatura de Cardoso nas pesquisas de intenção de voto, verificada em meados de maio.
Em pouco tempo, a geração de empregos passou ao centro das iniciativas do governo. Os recursos para a agricultura familiar foram aumentados, lançou-se um programa habitacional voltado para populações de baixa renda e anunciou-se a criação de um fundo de aval para facilitar a vida das pequenas e médias empresas, grandes geradoras de empregos no país. O governo insiste em que as medidas têm estado na linha de continuidade da administração, mas seu impacto quase imediato sobre as pesquisas de opinião, que mostraram a recuperação de Cardoso, revelam claramente o objetivo pretendido.
Mesmo ganhando as eleições de outubro, o risco político representado pelas altas taxas de desemprego e pela crise social foi registrado pelas forças que apóiam o presidente. A necessidade de uma política de emprego poderá ser defendida pelos próprios aliados do governo como contrapartida a uma segunda geração de reformas que, acredita-se, serão ainda mais impopulares. A ameaça representada por novos desequilíbrios externos também não deixará de ser incorporada ao horizonte dos riscos políticos do governo. A manutenção de uma postura apenas liberal em matéria comercial ou a demora de uma política industrial mínima perde progressivamente seu sentido.
O governo já elabora um projeto mínimo de política industrial associada à promoção de exportações. Segundo as linhas inicialmente divulgadas, setores considerados estratégicos para a exportação e, também, para a geração de empregos, receberiam tratamento tributário especial, incentivos creditícios consideráveis e eventualmente até proteção tarifária. Colocadas em discussão no Congresso ou, simplesmente, na agenda pública, seria difícil conter o assunto em margens absolutamente técnicas. Com respeito, portanto, aos caminhos da abertura da economia brasileira, a continuidade das privatizações não seria, certamente, colocada em risco em um segundo governo Cardoso. Existem, no entanto, indícios de que imperativos de uma provável política industrial e comercial poderão agregar algo novo à agenda de discussões com os parceiros do Mercosul e, sobretudo, com os parceiros da Alca.
Os sinais de uma campanha globalizada também foram captados de imediato pela chapa de oposição. Com a subida nas pesquisas, registrada em fins de maio último, a candidatura de Luís Inácio Lula da Silva deixou de ser apenas uma hipótese e as idéias econômicas de seus assessores se tornaram imediatamente objeto de maior debate público. A moderação inicial das declarações de assessores econômicos sobre câmbio estavam ainda sendo digeridas pela imprensa quando dois movimentos adicionais se produziram.
Primeiro, Lula e Brizola, tratando da privatização da Telebrás, voltaram a assumir um tom ideológico e radical em declarações sobre o tratamento do capital estrangeiro e o respeito aos direitos de propriedade. Segundo, o presidente argentino, Carlos Menem, reagindo a noticiário local, declarou que a vitória de Lula poderia representar o fim do Mercosul. A repercussão negativa das declarações sobre privatizações foi respondida com um recuo, sob o pretexto de que era necessário ainda promover reuniões para acertar as posições comuns dos partidos aliados na frente de esquerda. Quanto às declarações do presidente argentino, a reação da frente de esquerda foi, naturalmente, protestar contra interferências externas na campanha presidencial brasileira.
Essas primeiras reações, contudo, não mudam a percepção de que a plataforma da esquerda apresenta graus de liberdade cada vez menores no tratamento a ser dado aos dilemas da globalização. Não é razoável supor que possam promover qualquer alteração mais profunda nas relações com os demais parceiros, mesmo porque isso implicaria em quebra de acordos internacionais firmados pelo Brasil. Isso seria inevitável, sobretudo caso as mudanças já sugeridas pelo comando econômico da campanha de Lula venham a implicar, materializada sua eleição, a reativação de vários mecanismos de política econômica experimentados ao longo dos governos militares, como os incentivos fiscais setoriais, a proteção tarifária e o crédito seletivo. Mas são apenas idéias gerais.
O consenso de Pequim, sem dúvida, reforça o sentido do compromisso norte-americano com a globalização. A China será chamada a decidir sobre seus rumos e esse horizonte de opções reduzidas será sentido no Brasil e merece discussão de campanha e reflexão acadêmica. A esquerda brasileira no poder, afastado o cenário de caos descrito por seus adversários, sofrerá o enorme peso das circunstâncias e verá que o caminho percorrido pelo Brasil até agora é, em larga medida, irreversível. Para o conjunto de forças que sustenta o presidente Cardoso, o preço será recuar em algumas linhas e enfrentar corajosamente, para permanecer no poder, o perfil liberal seguido até aqui, ao mesmo tempo em que deverá forçar passagem para políticas sociais mais rápidas e abrangentes. O consenso de Pequim tornará as eleições brasileiras muito mais convergentes do que desejariam os seus atuais contendores. São efeitos da globalização.


Walder de Góes é professor titular de ciência política da Universidade de Brasília e diretor-presidente do Ibep (Instituto Brasileiro de Estudos Políticos). O artigo acima é a versão resumida de um artigo maior sobre o tema.



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