|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
+ teatro
Montagem de "Vassah", em São Paulo, reaproxima o dramaturgo russo do público brasileiro
Cena da peça "Vassah, a Dama de Ferro"
por Boris Schnaiderman
Górki está de volta e, felizmente,
num dos seus grandes momentos: a peça "Vassah Geleznova"
("Vassah, a Dama de Ferro",
apresentada sob a direção de Alexandre
de Mello no teatro Sérgio Cardoso, em
São Paulo).
Causa emoção, certamente, ver de novo os grandes intérpretes de Górki no
Brasil, José Celso, Ítala Nandi, Renato
Borghi e Fernando Peixoto, que nos lembram montagens de sucesso, a partir de
"Os Pequenos Burgueses", nos idos de 60
e em meio às turbulências da época,
quando a problemática suscitada no palco fazia eco às preocupações da platéia.
Tudo isso não embotaria o espírito crítico? Sem dúvida, mas, não sendo crítico
de teatro, posso permitir-me uma visada
mais impressionista, menos distanciada.
Identifiquei-me inteiramente com as
liberdades tomadas pelo diretor, as quais
certamente contribuem para tornar a peça mais próxima e mais vital para nós.
Ademais, a tradução, realizada a partir
do original russo, por Fernando Peixoto
e pelo inesquecível Eugênio Kusnet, nos
dá uma fluência de linguagem bem brasileira, bem sedutora. E a própria adaptação do título contribui para isso. Lemos
nos cartazes:
"Vassah
(Geleznova)
A Dama de Ferro",
numa disposição gráfica muito feliz e
que aproveita o fato de "gelezo" significar "ferro" em russo. Esse "h" do nome
não aparece na tradução da peça publicada pela Hucitec em 1983, mas certamente acrescenta um toque de estranheza que tem seu encanto. E isso ainda é sublinhado pela grafia "Ittala Nandi" nos
cartazes, como que a destacar a transfiguração implícita em toda ação teatral.
O espetáculo foi conduzido com uma
liberdade em relação ao texto que é realmente magistral e que permite superar o
afastamento do espectador em relação
ao lugar e tempo em que a ação decorre.
Agora Sierguéi Pietróvitch, o marido
de Vassah, surge em vídeo, na figura impressionante de José Celso, certamente
num dos momentos mais fortes de toda
a sua carreira. O velho estuprador, tão
violento em sua devassidão e decadência, é ao mesmo tempo a vítima daquela
mulher prepotente e avassaladora (vivida com tanta veemência por Ítala Nandi!), que o convence a suicidar-se em lugar de esperar sua prisão e julgamento.
Outros momentos da peça foram também captados com extrema criatividade,
sem aquela fidelidade servil que estraga
muitas realizações no cinema e no teatro.
Na parte final da peça, aparece a nora de
Vassah, Raquel, revolucionária que entrou clandestinamente na Rússia e que
pretende levar para o estrangeiro seu filho, criado então no interior, sob a supervisão da avó. Pois bem, no original, o autor dá uma série de índices que tornavam
perfeitamente claro para o público russo,
desde o aparecimento da recém-chegada, de que se tratava de uma militante
política. Ora, o público brasileiro, que
em sua maioria não passou por algo semelhante, certamente não compreenderia aquelas alusões.
Por isso, nesta encenação, a personagem surge cantando a "Internacional". O
efeito é, com certeza, mais direto, mais
explícito que no texto russo. Mas seria
uma traição? Penso que se pode afirmar,
com toda convicção, que se trata de algo
absolutamente no espírito da peça, e que
o afastamento do texto original, em casos como esse, permite maior aproximação. Temos aí, com certeza, um dos grandes paradoxos da tradução e, sem dúvida, toda encenação é na realidade um ato
tradutório.
Ação concentrada
Depois disso, o
texto brasileiro e o de Górki avançam
juntos, passo a passo, de tal modo que a
entrega da nora à polícia, arquitetada por
Vassah, aparece como a decorrência lógica, inevitável, daquela situação. É o paroxismo, aquele ato de entrega, é uma
verdadeira metonímia: ele representa a
culminação de uma série de absurdos sucessivos, ligados àquela empresa de navegação dirigida por Vassah e àquela família em desmoronamento.
Foi muito bom a encenação basear-se
na segunda versão da peça, concluída em
dezembro de 1935, pouco antes da morte
de Górki, e não na primeira, que é de
1910. Esta é principalmente um quadro
da decomposição de uma família burguesa, mas esse quadro, na segunda versão, serve de embasamento a uma ação
dramática muito mais concentrada e dirigida mais diretamente para a expressão
de um momento da luta revolucionária
na Rússia.
Portanto, no caso, estamos diante de
outro paradoxo. Esta segunda versão se
desenvolve muito mais no espírito do
"realismo socialista". Mas, se este deu
margem a todos os exageros e absurdos
que estamos cansados de conhecer, era
na realidade um modo de expressão tão
válido quanto outros, desde que não fosse imposto como norma obrigatória.
Enfim, saudemos esta volta de Górki
aos nossos palcos. Agora estamos muito
mais curtidos pelos embates da história,
e isso nos permite assimilá-lo em seus
bons momentos com muito mais intensidade e compreensão.
Boris Schnaiderman é crítico e tradutor, autor
de, entre outros, "Turbilhão e Semente" (Duas Cidades) e "Os Escombros e o Mito" (Cia. das Letras).
Texto Anterior: Denis Rosenfield: Entre o intelectual e o profeta Próximo Texto: + cultura - Augusto de Campos: Música, mulheres! Índice
|