São Paulo, domingo, 16 de setembro de 2001

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+ teatro

Montagem de "Vassah", em São Paulo, reaproxima o dramaturgo russo do público brasileiro

Cena da peça "Vassah, a Dama de Ferro"

por Boris Schnaiderman

Górki está de volta e, felizmente, num dos seus grandes momentos: a peça "Vassah Geleznova" ("Vassah, a Dama de Ferro", apresentada sob a direção de Alexandre de Mello no teatro Sérgio Cardoso, em São Paulo). Causa emoção, certamente, ver de novo os grandes intérpretes de Górki no Brasil, José Celso, Ítala Nandi, Renato Borghi e Fernando Peixoto, que nos lembram montagens de sucesso, a partir de "Os Pequenos Burgueses", nos idos de 60 e em meio às turbulências da época, quando a problemática suscitada no palco fazia eco às preocupações da platéia. Tudo isso não embotaria o espírito crítico? Sem dúvida, mas, não sendo crítico de teatro, posso permitir-me uma visada mais impressionista, menos distanciada. Identifiquei-me inteiramente com as liberdades tomadas pelo diretor, as quais certamente contribuem para tornar a peça mais próxima e mais vital para nós. Ademais, a tradução, realizada a partir do original russo, por Fernando Peixoto e pelo inesquecível Eugênio Kusnet, nos dá uma fluência de linguagem bem brasileira, bem sedutora. E a própria adaptação do título contribui para isso. Lemos nos cartazes:
"Vassah
(Geleznova)
A Dama de Ferro", numa disposição gráfica muito feliz e que aproveita o fato de "gelezo" significar "ferro" em russo. Esse "h" do nome não aparece na tradução da peça publicada pela Hucitec em 1983, mas certamente acrescenta um toque de estranheza que tem seu encanto. E isso ainda é sublinhado pela grafia "Ittala Nandi" nos cartazes, como que a destacar a transfiguração implícita em toda ação teatral. O espetáculo foi conduzido com uma liberdade em relação ao texto que é realmente magistral e que permite superar o afastamento do espectador em relação ao lugar e tempo em que a ação decorre. Agora Sierguéi Pietróvitch, o marido de Vassah, surge em vídeo, na figura impressionante de José Celso, certamente num dos momentos mais fortes de toda a sua carreira. O velho estuprador, tão violento em sua devassidão e decadência, é ao mesmo tempo a vítima daquela mulher prepotente e avassaladora (vivida com tanta veemência por Ítala Nandi!), que o convence a suicidar-se em lugar de esperar sua prisão e julgamento. Outros momentos da peça foram também captados com extrema criatividade, sem aquela fidelidade servil que estraga muitas realizações no cinema e no teatro. Na parte final da peça, aparece a nora de Vassah, Raquel, revolucionária que entrou clandestinamente na Rússia e que pretende levar para o estrangeiro seu filho, criado então no interior, sob a supervisão da avó. Pois bem, no original, o autor dá uma série de índices que tornavam perfeitamente claro para o público russo, desde o aparecimento da recém-chegada, de que se tratava de uma militante política. Ora, o público brasileiro, que em sua maioria não passou por algo semelhante, certamente não compreenderia aquelas alusões. Por isso, nesta encenação, a personagem surge cantando a "Internacional". O efeito é, com certeza, mais direto, mais explícito que no texto russo. Mas seria uma traição? Penso que se pode afirmar, com toda convicção, que se trata de algo absolutamente no espírito da peça, e que o afastamento do texto original, em casos como esse, permite maior aproximação. Temos aí, com certeza, um dos grandes paradoxos da tradução e, sem dúvida, toda encenação é na realidade um ato tradutório.

Ação concentrada
Depois disso, o texto brasileiro e o de Górki avançam juntos, passo a passo, de tal modo que a entrega da nora à polícia, arquitetada por Vassah, aparece como a decorrência lógica, inevitável, daquela situação. É o paroxismo, aquele ato de entrega, é uma verdadeira metonímia: ele representa a culminação de uma série de absurdos sucessivos, ligados àquela empresa de navegação dirigida por Vassah e àquela família em desmoronamento.
Foi muito bom a encenação basear-se na segunda versão da peça, concluída em dezembro de 1935, pouco antes da morte de Górki, e não na primeira, que é de 1910. Esta é principalmente um quadro da decomposição de uma família burguesa, mas esse quadro, na segunda versão, serve de embasamento a uma ação dramática muito mais concentrada e dirigida mais diretamente para a expressão de um momento da luta revolucionária na Rússia.
Portanto, no caso, estamos diante de outro paradoxo. Esta segunda versão se desenvolve muito mais no espírito do "realismo socialista". Mas, se este deu margem a todos os exageros e absurdos que estamos cansados de conhecer, era na realidade um modo de expressão tão válido quanto outros, desde que não fosse imposto como norma obrigatória.
Enfim, saudemos esta volta de Górki aos nossos palcos. Agora estamos muito mais curtidos pelos embates da história, e isso nos permite assimilá-lo em seus bons momentos com muito mais intensidade e compreensão.


Boris Schnaiderman é crítico e tradutor, autor de, entre outros, "Turbilhão e Semente" (Duas Cidades) e "Os Escombros e o Mito" (Cia. das Letras).


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