São Paulo, domingo, 16 de setembro de 2007

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Em Busca do Eldorado

"O Gabinete de Curiosidades de Domenico Vandelli", que sai no final no ano, reúne documentos do iluminista italiano que jamais pisou no Brasil, mas que foi decisivo para a exploração científica do país

LUIZ FERNANDO VIANNA
DA SUCURSAL DO RIO

No final do século 18, Portugal iniciou sua segunda descoberta do Brasil. O mentor das expedições chamava-se Domingos para os portugueses, mas nascera Domenico Vandelli, em Pádua (Itália), em 1730.
Mais comentado por cientistas do que pelos estudiosos da história brasileira, ele está por trás de patrimônios nacionais como o Banco do Brasil e o Jardim Botânico do Rio e orientou naturalistas em incursões exploratórias a lugares pouco conhecidos da então colônia.
Fez tudo isso sem nunca pôr os pés aqui.
Vandelli foi um grande personagem iluminista. No espírito da "Encyclopédie", publicada a partir de 1751 por Diderot e D'Alembert, ele queria sistematizar o conhecimento, classificar e catalogar o que não se sabia, apreender o universo com a razão.
Nessa busca, o Brasil desempenhava o papel fundamental de eldorado, do lugar de flora e fauna tão abundantes quanto misteriosas.
O fato de ter recusado uma cadeira de professor da Universidade de São Petersburgo em 1762 e, dois anos depois, aceitado o convite do primeiro-ministro português Sebastião José de Carvalho e Melo, futuro marquês de Pombal, para lecionar no Colégio dos Nobres, em Lisboa, tem muito a ver com o Brasil.
O sueco Carl von Linnaeus (Lineu), criador do "Sistema Natural" -que estabeleceu as bases para a classificação das espécies- e maior influência de Vandelli, o estimulou a ir para Portugal para se aproximar do tesouro brasileiro.
"Tomara que tu possas mesmo ir ao Brasil, terra que ninguém calcou (...). Tu estarás apto antes que os outros, tu que estás bastante firme no que diz respeito à natureza", escreveu Lineu em carta de 1765.
Ambos acreditavam que o futuro do conhecimento e da economia passava por estes alegres trópicos.
A história de Vandelli fascinou Anna Paula Martins, dona da editora e do sebo Dantes, em 1999, quando ela esteve na Academia das Ciências de Lisboa.
Aliou-se à historiadora Isadora Travassos já pensando em outro livro, pois estavam lançando naquele ano "Hans Staden", nova e caprichada edição dos relatos do arcabuzeiro alemão sobre o Brasil do século 16.
O aprofundamento da pesquisa iluminou tantos desdobramentos que, no fim deste ano, as duas começarão a lançar uma série de publicações que inclui uma caixa com nove títulos e um livro chamado "O Gabinete de Curiosidades de Domenico Vandelli".
Contendo ilustrações e textos inéditos, o pacote patrocinado pela estatal Finep (Financiadora de Estudos e Projetos) é o maior já feito no país sobre Vandelli e a época em que suas idéias foram aplicadas aqui.
Envolveu uma equipe multidisciplinar formada por, entre outros, uma arqueóloga (Fernanda de Camargo-Moro), uma paleógrafa, um físico, dois botânicos e uma tradutora de latim.

Rumo às colônias
O cientista italiano foi o idealizador, em Portugal, das viagens filosóficas, já empreendidas antes por outros impérios, como Inglaterra e França, com o objetivo de conhecer melhor suas colônias, em especial seu potencial econômico.
Após o Tratado de Madri, de 1750, Portugal fizera as primeiras viagens de demarcação, para delimitar as regiões brasileiras e marcar as fronteiras com as colônias espanholas.
Desenhistas acompanharam as expedições para documentar plantas, animais e geografias, mas o trabalho não tinha um preparo consistente e deu pouco resultado.
Na década de 1770, aproveitando o anúncio de que novas demarcações seriam feitas, Vandelli fez campanha junto a nobres influentes para que naturalistas preparados por ele integrassem as comitivas.
Em 1779, ano em que publicou "Viagens Filosóficas ou Dissertação sobre as Importantes Regras que o Filósofo Naturalista nas suas Peregrinações Deve Principalmente Observar" e ajudou a fundar a Academia Real das Ciências de Lisboa, a rainha Maria 1ª já se convencera a financiar as expedições dos discípulos do cientista.
Parte deles alunos da Universidade de Coimbra, reformada em 1772 de acordo com as novas idéias que sopravam na Europa e onde Vandelli era professor de história natural e química, os discípulos percorreram Portugal descrevendo plantas e animais e preparando-se para uma missão maior: as colônias ultramarinas.
No primeiro grupo de viajantes, que partiram de Lisboa em 1783, estavam os cariocas João da Silva Feijó (para Cabo Verde) e Joaquim José da Silva (Angola), o baiano Manuel Galvão da Silva (Goa e Moçambique) e o também baiano Alexandre Rodrigues Ferreira (Brasil).
Acompanhado dos riscadores (desenhistas) Joaquim Freire e Joaquim Codina e do jardineiro-botânico Agostinho do Cabo, Alexandre Rodrigues Ferreira voltou ao Brasil, após se formar em Coimbra, para uma expedição que durou nove anos (até 1792) e atravessou a Amazônia e o Centro-Oeste.
Seu "Diário da Viagem Filosófica" é o principal documento que se conhece aqui do projeto de Vandelli -mas normalmente sem o crédito dado a este.
"Não é comum se mostrar o que foi produzido em razão das viagens, a não ser a produção de Alexandre Rodrigues Ferreira, que foi mais sistematizada", aponta Anna Paula Martins.
Ela e Isadora Travassos abriram outras gavetas do projeto e reuniram informações até hoje dispersas, algumas que nunca tinham deixado a condição de manuscritos. Em arquivos brasileiros, portugueses e até franceses, encontraram documentos que mostram como os naturalistas em ação aqui se reportavam à Academia Real, em especial a Vandelli -que escreveu "Breves Instruções aos Correspondentes da Academia de Ciências sobre as Remessas de Produtos", de 1781-, e remetiam para Lisboa plantas, informes sobre os usos medicinais delas, desenhos de animais e relatos sobre os costumes das populações.

Correspondentes
Entre a penúltima década do século 18 e a primeira do 19, Portugal teve seus naturalistas-correspondentes no Brasil.
O paraibano Manuel Arruda da Câmara (1752-1811) ficou encarregado do sertão, especialmente de Pernambuco, que conhecia bem. Em 1783, professara no município de Goiana a regra dos carmelitas calçados e se tornara frei Manuel do Coração de Jesus.
Nos anos seguintes à conversão, estudou matemática em Coimbra e medicina em Montpellier [França]. Voltou ao Brasil em 1793 e fez pesquisas com diversas plantas que poderiam ser usadas em tintas e tecidos.
Ainda criou uma máquina para separar o algodão a ser usado na indústria têxtil. Dele será publicado "Dissertação sobre as Plantas do Brasil que Podem Dar Linhos Próprios para Muitos Usos da Sociedade e Suprir a Falta do Cânhamo".
"As viagens não eram atrás de conhecimento puro e simples, mas da implementação de indústrias. Arruda encontra até uma incipiente produção têxtil no sertão", diz a editora.
O médico português Francisco António de Sampaio (não há datas precisas de nascimento e morte) veio para a Bahia estudar os reinos vegetal, animal e mineral e nunca mais voltou. Viveu em Vila Cachoeira (atual município de Cachoeira), de onde mandou relatos sobre a geografia e os costumes.
O mineiro João Manso Pereira (1750-1820), celibatário que vivia com uma ex-escrava, tornou-se à distância discípulo de Vandelli, a quem chamava nas cartas de "o grande Vandelli", pois nunca saiu do Brasil. Conhecedor de química, realizou pesquisas sobre cerâmica, sabão e o azeite feito de banana, que seria mais econômico e menos agressivo à natureza.
Em São Paulo, fez expedições mineralógicas. Em Minas e no Rio, onde montou uma fábrica de porcelanas na Ilha do Governador, ainda estudou os alambiques, tendo planejado a construção de um baseando-se apenas numa imagem da "Enciclopédia Britannica", pois não lia em inglês. Seu texto "Memória sobre a Reforma dos Alambiques ou de um Próprio para a Destilação das Aguardentes", de 1797, estará na caixa lançada neste ano.
João da Silva Feijó (Ceará), Baltazar da Silva Lisboa (Bahia), José Vieira Couto (Minas Gerais) e Francisco José de Lacerda e Almeida (Mato Grosso) foram outros correspondentes. Dos pensadores e cientistas brasileiros influenciados por Vandelli, dois têm presença importante na nossa história.
Hipólito da Costa Pereira (1774-1823), que criou em Londres, em 1808, o primeiro jornal brasileiro ("Correio Braziliense"), formou-se em direito e filosofia na Universidade de Coimbra e foi encarregado pelo governo português, entre 1798 e 1800, de estudar a economia e a agricultura dos EUA. Escreveu "Diário da Minha Viagem para a Filadélfia".
José Bonifácio de Andrada e Silva (1763-1838) foi aluno de Vandelli na Universidade de Coimbra e realizou expedições mineralógicas na Europa, nos primeiros anos do século 19, seguindo as orientações do mestre, com quem trocava cartas.
Chegou a secretário-geral da Academia de Ciências de Lisboa e se tornou um cientista muito respeitado no continente. De volta ao Brasil após 30 anos, tornou-se protagonista da Independência e um dos nomes mais importantes da história política do país.
Em 1819, Alexandre Vandelli, filho de Domenico, casou-se com Carlota Emília de Andrada, filha de Bonifácio.

Gabinete de curiosidades
Logo que chegou a Portugal, Vandelli assumiu a direção do "museu" do marquês de Angeja. O que ainda se chamava de museu era um "gabinete de curiosidades", expressão que já era usada havia dois séculos para batizar coleções que reuniam objetos díspares, vindos em grande parte de terras distantes, das colônias.
Cientistas e nobres ilustrados da Europa tinham os seus gabinetes. Inicialmente, eram os lugares das coisas exóticas.
Mas, como ressaltam Anna Paula Martins e Isadora Travassos em um texto, "sob a luz da razão, tornaram-se ambientes associados a museus e universidades e recebiam títulos de acordo com as suas características específicas: gabinete de história natural, gabinete de moedas, gabinete de física experimental".
O fascínio de Vandelli pelo Brasil fica evidente em seus textos, mas ele nunca veio para cá. "Desejava eu não estar tão cansado, nem tão debilitado na minha saúde, para poder ir descobrir ao novo mundo as imensas riquezas que ignoramos e que são invejadas pelos estrangeiros", escreveu ainda na década de 1770, com pouco mais de 40 anos. Morreria em 1816.
Mas deixou suas idéias por aqui de forma direta ou indireta. A criação de um banco público, a fim de que o Estado obtivesse vantagens com operações de crédito, foi algo defendido por ele para Portugal no final do século 18.
Em 1808, quando a família real veio para o Rio, o principal ministro de d. João 6º, Rodrigo de Sousa Coutinho (1755-1812), também aluno de Coimbra e conhecedor das idéias de Vandelli, fundou o Banco do Brasil.
No mesmo ano, d. João criou o Jardim de Aclimação, em seguida batizado de Real Horto e, a partir de 1822, Real Jardim Botânico -perdeu o "Real" em 1890. Foi Vandelli quem projetou o Jardim Botânico da Ajuda, o primeiro de Portugal, fundado em 1768.
D. João, nascido um ano antes, cresceu freqüentando e estudando o jardim, que adorava e onde conviveu com Vandelli e ouviu suas idéias.



NA INTERNET - Leia mais sobre o "O Gabinete de Curiosidades de Domenico Vandelli" no site www.folha.com.br/072563

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