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Ponto de Fuga
Asas do traço
Os quadrinhos formam o antídoto à gosma escura e malcheirosa do noticiário político ou policial: são brilhantes, vivos, luminosos de inteligência
JORGE COLI
COLUNISTA DA FOLHA
Não há página melhor na
Folha do que a penúltima da Ilustrada: é lá
que estão os quadrinhos.
Ao lado deles fica o horóscopo, que conhece as piruetas de
nunca deixar o leitor para baixo, nem se o futuro é negro.
Isso não ocorre com o noticiário político ou policial. Eles
se confundem tanto que se juntam numa bolha assassina entrando pela fresta da porta
mesmo quando o leitor se refugia no banheiro.
Os quadrinhos formam o antídoto a essa gosma escura e
malcheirosa. São brilhantes, vivos, luminosos de inteligência.
Há os dois internacionais, "Garfield" e "Hagar", que existem há tanto tempo e não se esgotam nunca. Há, sobretudo, os nacionais, que são estupendos.
Iturrusgarai criou "Aline" e
"Rocky e Hudson". Eles praticam a alegria sexual mais anárquica e libertária: um júbilo
subversivo. Inventou ainda
uma contabilidade da culpa debochada, que arrasa com as misérias da alma.
Existe muito sexo também
nas tirinhas de Glauco, mas é o
sexo enleado nas frustrações
da classe média, como se uma
espécie de Nelson Rodrigues
com pernas de centopéia baixasse nelas, leve, sem tragédias,
hilariante.
A arte formidável de Angeli,
capaz de criar ambientes diversos em cada quadrinho, se debruça sobre angústias. Ele, o
pai da Rê Bordosa, dos Skrotinhos, do Bibelô, anda fazendo
tiras cada vez mais niilistas, soturnas, agoniadas.
A tribo de ratos meio nojentos de Fernando Gonsales deve
ter nascido nos porões da casa
do Groucho Marx: Níquel Náusea avacalha qualquer bom
sentimento.
Chispas
Caco Galhardo também avacalha, mas no seu caso o alvo
são os comportamentos pesados de afetação, de preconceitos, de imobilismo. Fizeram-lhe censuras politicamente
corretas a respeito de umas recentes caricaturas de homossexuais que ele publicou na "Revista da Folha". Críticas que parecem ter saído da cachola de
seus pescoçudos.
Caco Galhardo rebate essas
tolices no seu blog com a inteligência de quem sabe os poderes
subversivos e inconformistas
do desrespeito.
Solaz
Há, ainda, Laerte, um ser feito com a matéria dos anjos. É
fácil descobrir isso: basta ler
suas memórias visuais de infância e de adolescência. Elas
acabam de sair pela ed. Conrad:
"Laertevisão - Coisas que Eu
Não Esqueci". Laerte pode voltar-se para sua história pessoal,
cavar lembranças, impressionadas pela televisão dos anos
de 1950 e 1960, sem deixar que
paire a menor sombra de vaidade narcisista.
No livro vêm reproduzidas
fotografias de álbuns familiares, desenhos e escritos de
quando ele era criança, maravilhosos. O "código de guerra"
que redigiu e fez sua irmã assinar é uma delícia.
O fio condutor dessas memórias são quadrinhos recentes. O
traço de Laerte também é de
anjo: cada risquinho seu é percorrido por uma felicidade, um
pouco melancólica, mas além
das dores.
Abordagem
São dois livros mágicos, na
verdade. Um outro álbum de
Laerte acaba de sair: o volume 1
de "Piratas do Tietê - A Saga
Completa" (Devir Livraria). O
nonsense desses flibusteiros
bagunçados não tem limites, é
completamente surrealista e
muito divertido.
Um regalo quando eles invadem o quadro "Independência
ou Morte", de Pedro Américo;
um deslumbramento quando o
carro de Apolo irrompe no
meio da página; uma estranha
poesia nos jacarés que freqüentam o Fasano. A mágica maior
de Laerte é essa: ele enxerta beleza na piada e na caricatura,
sem que nada, de uma ou de outra, se perca.
jorgecoli@uol.com.br
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