São Paulo, domingo, 16 de setembro de 2007

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Ponto de Fuga

Asas do traço

Os quadrinhos formam o antídoto à gosma escura e malcheirosa do noticiário político ou policial: são brilhantes, vivos, luminosos de inteligência

JORGE COLI
COLUNISTA DA FOLHA

Não há página melhor na Folha do que a penúltima da Ilustrada: é lá que estão os quadrinhos.
Ao lado deles fica o horóscopo, que conhece as piruetas de nunca deixar o leitor para baixo, nem se o futuro é negro. Isso não ocorre com o noticiário político ou policial. Eles se confundem tanto que se juntam numa bolha assassina entrando pela fresta da porta mesmo quando o leitor se refugia no banheiro.
Os quadrinhos formam o antídoto a essa gosma escura e malcheirosa. São brilhantes, vivos, luminosos de inteligência.
Há os dois internacionais, "Garfield" e "Hagar", que existem há tanto tempo e não se esgotam nunca. Há, sobretudo, os nacionais, que são estupendos.
Iturrusgarai criou "Aline" e "Rocky e Hudson". Eles praticam a alegria sexual mais anárquica e libertária: um júbilo subversivo. Inventou ainda uma contabilidade da culpa debochada, que arrasa com as misérias da alma.
Existe muito sexo também nas tirinhas de Glauco, mas é o sexo enleado nas frustrações da classe média, como se uma espécie de Nelson Rodrigues com pernas de centopéia baixasse nelas, leve, sem tragédias, hilariante.
A arte formidável de Angeli, capaz de criar ambientes diversos em cada quadrinho, se debruça sobre angústias. Ele, o pai da Rê Bordosa, dos Skrotinhos, do Bibelô, anda fazendo tiras cada vez mais niilistas, soturnas, agoniadas.
A tribo de ratos meio nojentos de Fernando Gonsales deve ter nascido nos porões da casa do Groucho Marx: Níquel Náusea avacalha qualquer bom sentimento.

Chispas
Caco Galhardo também avacalha, mas no seu caso o alvo são os comportamentos pesados de afetação, de preconceitos, de imobilismo. Fizeram-lhe censuras politicamente corretas a respeito de umas recentes caricaturas de homossexuais que ele publicou na "Revista da Folha". Críticas que parecem ter saído da cachola de seus pescoçudos.
Caco Galhardo rebate essas tolices no seu blog com a inteligência de quem sabe os poderes subversivos e inconformistas do desrespeito.

Solaz
Há, ainda, Laerte, um ser feito com a matéria dos anjos. É fácil descobrir isso: basta ler suas memórias visuais de infância e de adolescência. Elas acabam de sair pela ed. Conrad: "Laertevisão - Coisas que Eu Não Esqueci". Laerte pode voltar-se para sua história pessoal, cavar lembranças, impressionadas pela televisão dos anos de 1950 e 1960, sem deixar que paire a menor sombra de vaidade narcisista.
No livro vêm reproduzidas fotografias de álbuns familiares, desenhos e escritos de quando ele era criança, maravilhosos. O "código de guerra" que redigiu e fez sua irmã assinar é uma delícia. O fio condutor dessas memórias são quadrinhos recentes. O traço de Laerte também é de anjo: cada risquinho seu é percorrido por uma felicidade, um pouco melancólica, mas além das dores.

Abordagem
São dois livros mágicos, na verdade. Um outro álbum de Laerte acaba de sair: o volume 1 de "Piratas do Tietê - A Saga Completa" (Devir Livraria). O nonsense desses flibusteiros bagunçados não tem limites, é completamente surrealista e muito divertido.
Um regalo quando eles invadem o quadro "Independência ou Morte", de Pedro Américo; um deslumbramento quando o carro de Apolo irrompe no meio da página; uma estranha poesia nos jacarés que freqüentam o Fasano. A mágica maior de Laerte é essa: ele enxerta beleza na piada e na caricatura, sem que nada, de uma ou de outra, se perca.

jorgecoli@uol.com.br

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