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House em Havana
O diretor cubano Tomás Piard fala de seu filme "o viajante imóvel", sobre o romance "Paradiso", de Lezama Lima, e diz que a juventude "revolucionária" do país assiste aos enlatados norte-americanos
Cuba não tem uma economia sólida; nos acostumamos
a ter o Estado nos provendo
e perdemos
o espírito do que é trabalho
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MALU DELGADO
DE LONDRES
A transição em Cuba
-ou a ausência dela- sob o olhar do
cineasta cubano
Tomás Piard, 60, é
elucidativa. Piard lançou em
Cuba seu novo filme, "El Viajero Inmóvil" (O Viajante Imóvel), sobre a vida de José Lezama Lima, autor de "Paradiso"
(1966), um dos principais romances do século 20.
O filme, como Piard esclarece, não é nenhuma pretensa
adaptação do romance de Lezama, mas sim uma homenagem a ele -a quem o cineasta
chama de "pai espiritual".
Amigos? Não. Tomás Piard
se encontrou com Lezama uma
única vez, numa exibição de cinema em Havana, quando era
estudante. Ambos iriam assistir a "As Noites de Cabíria"
(1957), de Federico Fellini.
Talvez a duradoura identificação de Piard com a história
de Lezama -que nunca deixou
a ilha- seja reflexo de uma certa simbiose com a história da
Cuba que "transcende", "e não
a Cuba que vendem aos turistas", explica o diretor cubano.
Após uma espécie de "exílio"
cultural na Galícia por três
anos, negociado pelo governo
cubano após ter feito um filme
considerado "imoral", Piard
considera que lançar seu último filme em Londres, patrocinado pelo Instituto Cubano de
Arte e Indústria Cinematográfica (Icaic), é um claro sinal dos
tão esperados novos tempos
em Cuba.
O país que os turistas não
vêem tem uma péssima qualidade educacional e um sistema
de saúde flagrantemente falido
-os dois pilares da Revolução
de 1959. Vive entre a divergência praticamente diária e explícita entre Fidel e Raúl Castro.
Alimenta uma geração de jovens com seriados norte-americanos como "Lost", "House" e
"CSI Miami". É o país com uma
massa de revolucionários ressentidos, mas ao mesmo tempo
incapazes de criticar abertamente Fidel Castro.
Para Piard, um revolucionário, Fidel cometeu "erros", mas
com as melhores intenções.
Um marciano, diz ter absoluta
certeza de que "a Aids é uma
doença fabricada em laboratório pelos EUA".
Um transcendente, que se
emociona com a eleição de Barack Obama e, sobretudo, por
tê-la assistido longe do controle midiático de Cuba. Um artista assustado com a globalização e que quase decreta o fim
do cinema.
FOLHA - "O Viajante Imóvel" começa com uma frase de Lao Tsé [sábio taoísta]: "Quando mais distante
se vai, menos se aprende". O sr. pensa da mesma forma?
TOMÁS PIARD - Do ponto de vista
de Lezama Lima, sim. Porque
Lezama viajava por intermédio
das suas leituras, da cultura da
humanidade. E, assim, difundia
valores extraordinários da cultura humana à cultura cubana.
Nelson Pereira dos Santos,
por exemplo, quando fez "Vidas
Secas", fez algo de valor universal. Ou seja, quanto mais se
apegar à sua terra, honestamente, artisticamente, mais essa obra terá transcendência
universal. Foi o que aconteceu
com "Paradiso".
FOLHA - É essa transcendência que
busca em suas obras?
PIARD - Sim, sou ambicioso.
Por quê? Porque é muito provável que eu não o alcance, mas
se sou ambicioso terei a oportunidade de chegar ao mais alto
ponto possível.
Nunca entenderei os diretores de cinema que dizem: estou
fazendo um filme que "não é
nada de outro mundo". Não
consigo fazer isso. Cada filme,
para mim, é uma obra de grande transcendência artística, sobretudo após a morte do meu
filho. A dor parte.
O ponto de partida de grandes obras humanas é a dor, não
a alegria, a felicidade. A perda
do meu filho foi a coisa de mais
importante que vivi e me deu
coragem e impulso para fazer
obras que transcenderam as
outras que fizera.
FOLHA - Quando a arte transcende,
não é preciso ir tão longe?
PIARD - É que tudo o que é necessário está dentro de mim.
Você é que precisa ser capaz de
descobrir. E precisamos lutar
para que a globalização não
destrua isso.
FOLHA - Em Cuba não se pode ver
cinema latino-americano?
PIARD - Cuba não tem dinheiro
para comprar filmes. Em Cuba,
todos os filmes são em DVD.
Com os países com os quais
temos relações diplomáticas e
comerciais podemos tentar o
direito de exibição.
Na TV, às quartas-feiras, passam-se filmes latino-americanos. Mas não se estréiam filmes
estrangeiros normalmente em
Cuba porque temos que pagar
os direitos e, quase sempre, os
direitos são norte-americanos.
A televisão de Cuba é norte-americana, porque o resto da
programação da TV é norte-americana.
É um paradoxo, mas fazemos
isso porque não temos produção nacional suficiente para
preencher todo o espaço da
programação.
É contraditório, porque os
jovens "revolucionários", por
exemplo, estão assistindo aos
filmes norte-americanos. E
eles também assistem a "Lost",
"House", "CSI", todos os seriados norte-americanos recentes. As produções norte-americanas são todas DVDs piratas.
FOLHA - Como imagina usar sua arte para mostrar o que se passa hoje
em Cuba para o resto do mundo?
PIARD - "O Viajante Imóvel" é
uma mensagem apenas para os
cubanos. Meu objetivo era
mostrar aos cubanos o romance de Lezama Lima, que é conhecido em qualquer lugar do
mundo, menos pelos cubanos.
FOLHA - O sr. disse, em uma palestra para estudantes, que, quando
começou a trabalhar com cinema
em Cuba, rechaçava os filmes americanos e procurava refúgio nos russos. Agora, diante do que se passa
em Cuba e com a nova realidade do
mundo, qual é sua definição de cinema e como sua mente processa os
filmes no resto do mundo, especialmente com a globalização?
PIARD - Infelizmente, o cinema
americano tem monopolizado
todas as salas de cinema do
mundo, inclusive as cubanas.
Ou seja, praticamente nós não
assistimos a produções de outros lugares. Somado a isso, os
grandes autores do cinema estão morrendo.
E creio que não há nenhum
diretor de cinema de relevo
mundial que esteja hoje à altura de Antonioni, Fellini, Bergman e Bertolucci -ainda que
ele não seja o que foi no início
da sua carreira.
Há Wim Wenders, Theo Angelopoulos na Grécia e outros,
mas não o que existiu antes.
FOLHA - O momento é novo em
Cuba e agora há várias expectativas
em relação à política externa norte-americana, com a eleição de Barack
Obama. O sr. vê alguma conexão
entre esse momento cubano e a
eleição norte-americana?
PIARD - Não creio que possa ser
feita uma conexão. Em Cuba
são feitos esforços; esse filme,
por exemplo, é um esforço [de
transição], mas a vida política,
econômica e social cubana está
toda paralisada.
Fidel Castro não é o presidente, mas está presidente. Há
coisas que Raúl Castro tenta fazer para mudar a situação de
Cuba, mas Fidel, que publica
diariamente suas reflexões, às
vezes o contradiz.
O país foi vítima de dois furacões enormes. O país está arrasado, destruído. Casas, indústrias e escolas foram destruídas. E Cuba não tem uma economia sólida. Não há produção.
Nós nos acostumamos a ter o
Estado nos provendo e, por isso, perdemos o espírito do que
é o trabalho. E só o trabalho pode criar riquezas e dar estabilidade econômica.
FOLHA - Há em Cuba um visível
confronto de idéias entre a sociedade que participou da revolução e os
jovens, que querem outro regime?
PIARD - Há sim um confronto.
Parte quer que se mantenha o
espírito da revolução, mas as
novas gerações não têm nenhum compromisso com a realidade histórica que se passou
há 50 anos. Os jovens pensam
de outra maneira.
No entanto, ao longo de todos esses anos, Cuba criou um
espírito de "não opinião".
Ninguém quer pensar, porque isso pode prejudicá-lo. Fidel pensa por todos nós. Creio
que Fidel pense com a melhor
intenção para com o povo, mas
que cometeu muitos erros econômicos e destruiu a economia
de Cuba gradualmente.
FOLHA - Como a sua geração se
sente em relação ao atual momento
de Cuba, já que esses ideais da revolução provavelmente nortearam
sua vida e sua carreira?
PIARD - Sinto muita dor. Eu me
recordo dos meus pais, que, como toda uma geração, deram o
melhor da sua vida pelo triunfo
da revolução e para que a vida
do povo cubano melhorasse.
E o que aconteceu depois?
Vivemos hoje na maior miséria
que se pode imaginar. Criou-se
uma idéia de que vivemos o melhor dos mundos em Cuba.
Não é assim. E as melhores
coisas que tivemos na revolução, que são a educação e a saúde, também estão destruídas.
Esses eram os dois pilares da
revolução. Hoje em dia, além de
todos os desastres, isso também está arrasado.
FOLHA - Por quê?
PIARD - No caso da educação,
os professores não ganham
quase nenhum dinheiro, não se
sentem estimulados.
FOLHA - E com a saúde?
PIARD - Os médicos estão deixando Cuba. Também ganham
muito mal e percebem que podem trabalhar na Venezuela ou
em qualquer outro lugar, e a vida deles melhora. Em Cuba, então, não temos mais médicos.
FOLHA - Como o sr. aspira a ter liberdade de criação e produção num
país que não é livre?
PIARD - Pelas metáforas. A diferença é que eu, agora, não toco
na realidade diretamente. Por
exemplo, um dos temas que
mais me interessam é o da família, da desintegração da família enquanto um núcleo essencial da sociedade.
Em Cuba, todas as famílias
estão desgarradas. Há pessoas
que foram para outros países
ou, mesmo na ilha, muitos
membros vivem em outras
Províncias.
Neste meu último filme, por
exemplo, há um símbolo muito
importante do que é a agregação da família: a comida, o jantar, a mesa.
Ou seja, a família se senta
junta para comer. Quando isso
acontece, existe a família.
FOLHA - O sr. conhece algo do cinema brasileiro?
PIARD - Creio que uma proposta da magnitude de Nelson Pereira dos Santos, de Glauber
Rocha e de Rui Guerra não
existe no momento. "Memórias do Cárcere" [de Nelson Pereira dos Santos] é algo excepcional que não se verá todo dia.
Vi recentemente "Central do
Brasil", de Walter Salles, que é
muito bom. E gosto muito também de "Diários de Motocicleta", apesar de achar que idealiza muito Che Guevara.
O personagem que não é o
protagonista é muito mais sólido. Mas Salles é um bom diretor. Ah, e tem também aquele
dos meninos, como se chama?
"Cidade de Deus"!
FOLHA - O que achou da vitória de
Barack Obama nos Estados Unidos?
PIARD - Me emocionei muito. E
me emocionei sobretudo por
poder tê-la visto fora de Cuba,
porque lá os meios de comunicação manipulam tudo.
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