São Paulo, domingo, 16 de novembro de 2008

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House em Havana

O diretor cubano Tomás Piard fala de seu filme "o viajante imóvel", sobre o romance "Paradiso", de Lezama Lima, e diz que a juventude "revolucionária" do país assiste aos enlatados norte-americanos


Cuba não tem uma economia sólida; nos acostumamos a ter o Estado nos provendo e perdemos o espírito do que é trabalho


MALU DELGADO
DE LONDRES

A transição em Cuba -ou a ausência dela- sob o olhar do cineasta cubano Tomás Piard, 60, é elucidativa. Piard lançou em Cuba seu novo filme, "El Viajero Inmóvil" (O Viajante Imóvel), sobre a vida de José Lezama Lima, autor de "Paradiso" (1966), um dos principais romances do século 20. O filme, como Piard esclarece, não é nenhuma pretensa adaptação do romance de Lezama, mas sim uma homenagem a ele -a quem o cineasta chama de "pai espiritual".
Amigos? Não. Tomás Piard se encontrou com Lezama uma única vez, numa exibição de cinema em Havana, quando era estudante. Ambos iriam assistir a "As Noites de Cabíria" (1957), de Federico Fellini. Talvez a duradoura identificação de Piard com a história de Lezama -que nunca deixou a ilha- seja reflexo de uma certa simbiose com a história da Cuba que "transcende", "e não a Cuba que vendem aos turistas", explica o diretor cubano.
Após uma espécie de "exílio" cultural na Galícia por três anos, negociado pelo governo cubano após ter feito um filme considerado "imoral", Piard considera que lançar seu último filme em Londres, patrocinado pelo Instituto Cubano de Arte e Indústria Cinematográfica (Icaic), é um claro sinal dos tão esperados novos tempos em Cuba.
O país que os turistas não vêem tem uma péssima qualidade educacional e um sistema de saúde flagrantemente falido -os dois pilares da Revolução de 1959. Vive entre a divergência praticamente diária e explícita entre Fidel e Raúl Castro. Alimenta uma geração de jovens com seriados norte-americanos como "Lost", "House" e "CSI Miami". É o país com uma massa de revolucionários ressentidos, mas ao mesmo tempo incapazes de criticar abertamente Fidel Castro. Para Piard, um revolucionário, Fidel cometeu "erros", mas com as melhores intenções.
Um marciano, diz ter absoluta certeza de que "a Aids é uma doença fabricada em laboratório pelos EUA". Um transcendente, que se emociona com a eleição de Barack Obama e, sobretudo, por tê-la assistido longe do controle midiático de Cuba. Um artista assustado com a globalização e que quase decreta o fim do cinema.
 

FOLHA - "O Viajante Imóvel" começa com uma frase de Lao Tsé [sábio taoísta]: "Quando mais distante se vai, menos se aprende". O sr. pensa da mesma forma?
TOMÁS PIARD
- Do ponto de vista de Lezama Lima, sim. Porque Lezama viajava por intermédio das suas leituras, da cultura da humanidade. E, assim, difundia valores extraordinários da cultura humana à cultura cubana. Nelson Pereira dos Santos, por exemplo, quando fez "Vidas Secas", fez algo de valor universal. Ou seja, quanto mais se apegar à sua terra, honestamente, artisticamente, mais essa obra terá transcendência universal. Foi o que aconteceu com "Paradiso".

FOLHA - É essa transcendência que busca em suas obras?
PIARD
- Sim, sou ambicioso. Por quê? Porque é muito provável que eu não o alcance, mas se sou ambicioso terei a oportunidade de chegar ao mais alto ponto possível. Nunca entenderei os diretores de cinema que dizem: estou fazendo um filme que "não é nada de outro mundo". Não consigo fazer isso. Cada filme, para mim, é uma obra de grande transcendência artística, sobretudo após a morte do meu filho. A dor parte. O ponto de partida de grandes obras humanas é a dor, não a alegria, a felicidade. A perda do meu filho foi a coisa de mais importante que vivi e me deu coragem e impulso para fazer obras que transcenderam as outras que fizera.

FOLHA - Quando a arte transcende, não é preciso ir tão longe?
PIARD
- É que tudo o que é necessário está dentro de mim. Você é que precisa ser capaz de descobrir. E precisamos lutar para que a globalização não destrua isso.

FOLHA - Em Cuba não se pode ver cinema latino-americano?
PIARD
- Cuba não tem dinheiro para comprar filmes. Em Cuba, todos os filmes são em DVD. Com os países com os quais temos relações diplomáticas e comerciais podemos tentar o direito de exibição. Na TV, às quartas-feiras, passam-se filmes latino-americanos. Mas não se estréiam filmes estrangeiros normalmente em Cuba porque temos que pagar os direitos e, quase sempre, os direitos são norte-americanos. A televisão de Cuba é norte-americana, porque o resto da programação da TV é norte-americana. É um paradoxo, mas fazemos isso porque não temos produção nacional suficiente para preencher todo o espaço da programação. É contraditório, porque os jovens "revolucionários", por exemplo, estão assistindo aos filmes norte-americanos. E eles também assistem a "Lost", "House", "CSI", todos os seriados norte-americanos recentes. As produções norte-americanas são todas DVDs piratas.

FOLHA - Como imagina usar sua arte para mostrar o que se passa hoje em Cuba para o resto do mundo?
PIARD
- "O Viajante Imóvel" é uma mensagem apenas para os cubanos. Meu objetivo era mostrar aos cubanos o romance de Lezama Lima, que é conhecido em qualquer lugar do mundo, menos pelos cubanos.

FOLHA - O sr. disse, em uma palestra para estudantes, que, quando começou a trabalhar com cinema em Cuba, rechaçava os filmes americanos e procurava refúgio nos russos. Agora, diante do que se passa em Cuba e com a nova realidade do mundo, qual é sua definição de cinema e como sua mente processa os filmes no resto do mundo, especialmente com a globalização?
PIARD
- Infelizmente, o cinema americano tem monopolizado todas as salas de cinema do mundo, inclusive as cubanas. Ou seja, praticamente nós não assistimos a produções de outros lugares. Somado a isso, os grandes autores do cinema estão morrendo. E creio que não há nenhum diretor de cinema de relevo mundial que esteja hoje à altura de Antonioni, Fellini, Bergman e Bertolucci -ainda que ele não seja o que foi no início da sua carreira. Há Wim Wenders, Theo Angelopoulos na Grécia e outros, mas não o que existiu antes.

FOLHA - O momento é novo em Cuba e agora há várias expectativas em relação à política externa norte-americana, com a eleição de Barack Obama. O sr. vê alguma conexão entre esse momento cubano e a eleição norte-americana?
PIARD
- Não creio que possa ser feita uma conexão. Em Cuba são feitos esforços; esse filme, por exemplo, é um esforço [de transição], mas a vida política, econômica e social cubana está toda paralisada. Fidel Castro não é o presidente, mas está presidente. Há coisas que Raúl Castro tenta fazer para mudar a situação de Cuba, mas Fidel, que publica diariamente suas reflexões, às vezes o contradiz. O país foi vítima de dois furacões enormes. O país está arrasado, destruído. Casas, indústrias e escolas foram destruídas. E Cuba não tem uma economia sólida. Não há produção. Nós nos acostumamos a ter o Estado nos provendo e, por isso, perdemos o espírito do que é o trabalho. E só o trabalho pode criar riquezas e dar estabilidade econômica.

FOLHA - Há em Cuba um visível confronto de idéias entre a sociedade que participou da revolução e os jovens, que querem outro regime?
PIARD
- Há sim um confronto. Parte quer que se mantenha o espírito da revolução, mas as novas gerações não têm nenhum compromisso com a realidade histórica que se passou há 50 anos. Os jovens pensam de outra maneira. No entanto, ao longo de todos esses anos, Cuba criou um espírito de "não opinião". Ninguém quer pensar, porque isso pode prejudicá-lo. Fidel pensa por todos nós. Creio que Fidel pense com a melhor intenção para com o povo, mas que cometeu muitos erros econômicos e destruiu a economia de Cuba gradualmente.

FOLHA - Como a sua geração se sente em relação ao atual momento de Cuba, já que esses ideais da revolução provavelmente nortearam sua vida e sua carreira?
PIARD
- Sinto muita dor. Eu me recordo dos meus pais, que, como toda uma geração, deram o melhor da sua vida pelo triunfo da revolução e para que a vida do povo cubano melhorasse. E o que aconteceu depois? Vivemos hoje na maior miséria que se pode imaginar. Criou-se uma idéia de que vivemos o melhor dos mundos em Cuba. Não é assim. E as melhores coisas que tivemos na revolução, que são a educação e a saúde, também estão destruídas. Esses eram os dois pilares da revolução. Hoje em dia, além de todos os desastres, isso também está arrasado.

FOLHA - Por quê?
PIARD
- No caso da educação, os professores não ganham quase nenhum dinheiro, não se sentem estimulados.

FOLHA - E com a saúde?
PIARD
- Os médicos estão deixando Cuba. Também ganham muito mal e percebem que podem trabalhar na Venezuela ou em qualquer outro lugar, e a vida deles melhora. Em Cuba, então, não temos mais médicos.

FOLHA - Como o sr. aspira a ter liberdade de criação e produção num país que não é livre?
PIARD
- Pelas metáforas. A diferença é que eu, agora, não toco na realidade diretamente. Por exemplo, um dos temas que mais me interessam é o da família, da desintegração da família enquanto um núcleo essencial da sociedade. Em Cuba, todas as famílias estão desgarradas. Há pessoas que foram para outros países ou, mesmo na ilha, muitos membros vivem em outras Províncias. Neste meu último filme, por exemplo, há um símbolo muito importante do que é a agregação da família: a comida, o jantar, a mesa. Ou seja, a família se senta junta para comer. Quando isso acontece, existe a família.

FOLHA - O sr. conhece algo do cinema brasileiro?
PIARD
- Creio que uma proposta da magnitude de Nelson Pereira dos Santos, de Glauber Rocha e de Rui Guerra não existe no momento. "Memórias do Cárcere" [de Nelson Pereira dos Santos] é algo excepcional que não se verá todo dia. Vi recentemente "Central do Brasil", de Walter Salles, que é muito bom. E gosto muito também de "Diários de Motocicleta", apesar de achar que idealiza muito Che Guevara. O personagem que não é o protagonista é muito mais sólido. Mas Salles é um bom diretor. Ah, e tem também aquele dos meninos, como se chama? "Cidade de Deus"!

FOLHA - O que achou da vitória de Barack Obama nos Estados Unidos?
PIARD
- Me emocionei muito. E me emocionei sobretudo por poder tê-la visto fora de Cuba, porque lá os meios de comunicação manipulam tudo.


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