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Louro alto, bonito e sensual
SITUADA PERTO DE COPENHAGUE, A CRYOS VENDE ESPERMA
PARA MAIS DE 50 PAÍSES; TUBOS DE ENSAIO DE RÓTULO "EXTRA"
PODEM CUSTAR ATÉ R$ 570
SOPHIE DES DESERTS
Da parede da sala de
espera, a atriz Béatrice Dalle os observa com olhar
abrasador. Os rapazes não parecem perturbados;
o mítico cartaz de "Betty Blue"
[1986, filme de Jean-Jacques
Beineix] não lhes diz nada.
Eles têm 20 e poucos anos,
usam jeans apertados e cabelos
arrepiados.
Sorrindo educadamente,
mas sem vontade de conversar,
eles vieram depois de seus cursos de literatura ou mecânica,
mas têm pouco tempo. Daqui,
vão para a quadra de squash ou
para a piscina. Suas bicicletas
estão lá fora, e alguns ainda estão de capacete; eles engolem
uma barra de cereais e trocam
algumas palavras sobre os jogos de futebol do dia anterior.
Ao vê-los tão comportados,
sentados em fila, poderíamos
imaginar que eles aguardam
uma consulta com um orientador educacional. Hans, Peter,
Lars, Adam, Gorm etc. ainda
não têm uma idéia clara sobre
sua vida futura, mas já têm um
trabalho de grande responsabilidade a cumprir: doar sêmen.
Genitores para o planeta inteiro. Eles estão matriculados
no maior banco de esperma da
Europa, Cryos.
Trata-se de uma empresa dinamarquesa de porte médio
que inunda com o líquido precioso cerca de 50 países: seus
vizinhos Suécia, Noruega, Bélgica, Alemanha, Reino Unido e
às vezes até mesmo, de maneira ilegal, a França e ainda, às
vezes, a Austrália, a Coréia do
Sul, o Kuait... Cerca de 15 mil
bebês já nasceram do esperma
desses jovens estudantes dinamarqueses.
Filhos pelo mundo
Os viquingues estão de volta:
"Como o esperma dinamarquês está conquistando o mundo", inquietou-se o "Times" em
novembro de 2006. O artigo
acompanha a trajetória das cubas fumegantes onde, congelados em nitrogênio, dormem 25
mil tubos de ensaio prontos para serem exportados.
"Vamos espalhar nossos genes pelo mundo mais uma vez",
brinca Lars, 23, futuro professor de biologia. "Somos conquistadores", ri outro gigante
loiro recoberto de sardas, fazendo um gesto com o punho
erguido.
O ambiente na Cryos é comportado. A sede da empresa fica
no terceiro andar de um velho
imóvel reformado de Aarhus, a
grande cidade universitária da
Dinamarca.
Vigas em madeira clara, spotlights, tapetes macios, funcionários belos e simpáticos usando jeans -poderíamos nos
imaginar no set de "Friends"
[seriado norte-americano].
Nas paredes se espalham fotos de bebês loiros e algumas
telas de fundos marinhos atravessados por espermatozóides
cor-de-laranja. "Veja como é
belo", se extasia Ole Schou.
"Foi um de nossos doadores
que pintou esses quadros." O
fundador da Cryos tem 53 anos
e também tem ar de estudante.
Jeans, camisa xadrez azul como seus olhos, pernas longas
que escalam montanhas regularmente e o aperto de mão de
um homem que não tem medo
de nada. "Veja bem", ele insiste.
"Esse quadro representa o sonho que transformou minha vida 20 anos atrás. Era tudo azul,
e eu nadava debaixo do gelo,
entre milhões de espermatozóides." Ole, que na época era
estudante de economia, acordou estarrecido.
"Compreendi que era possível congelar a vida!" O jovem
correu para a biblioteca do
campus e devorou várias obras
sobre técnicas de reprodução
medicamente assistida.
Ele congelava seu esperma e
o de seus colegas e, observado
com preocupação por sua família, passava horas examinando-o com a ajuda de um velho microscópio.
Em 1991, Ole ofereceu seus
serviços a pacientes que tiveram câncer. Cinco anos mais
tarde, fundou seu próprio banco de esperma: o Cryos. Na época, ele próprio saía para colar
cartazes nos campi e bares de
Aarhus, incentivando estudantes a ajudar casais que tinham
dificuldades para ter filhos. "Eu
não queria apenas ganhar dinheiro", assegura. "Queria
prestar um serviço às pessoas."
E, como todos sonham em
ter pequenos arianos loiros de
olhos azuis, Ole Schou vem satisfazer esse desejo.
O catálogo da Cryos -até
agora acessível apenas a médicos, mas que dentro em breve
estará aberto a particulares-
detalha o peso, a altura, a cor
dos cabelos e dos olhos dos doadores, além de seus estudos,
sua profissão e sua raça.
O líquido branco
já se tornou quase tão precioso quanto o ouro negro
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Seleção artificial
O benfeitor rebate as acusações de desvios eugênicos: "Toda a nossa sociedade é fundamentada na seleção natural", declara. "É normal que os pais
possam escolher um genitor
segundo seus critérios próprios. Isso é feito nos EUA."
A Cryos construiu sua fama
sobre a qualidade de seus reprodutores, puros "caucasianos/escandinavos" dotados,
em sua maioria, de um "néctar"
excepcional. No início, apenas
10% passavam pelos critérios
de seleção. "Hoje somos obrigados a aceitar cerca de 25%,
incluindo obrigatoriamente esperma de qualidade não tão
boa", lamenta Ole Schou. "Se
não fosse assim, não conseguiríamos satisfazer a demanda."
A cada semana o banco recebe uma centena de pedidos novos. O Velho Continente sofre
de uma escassez aguda de esperma. Os países que revogaram o anonimato dos doadores
-Suécia, Reino Unido, Finlândia, Noruega- não encontram
mais homens dispostos a oferecer seu sêmen de bom grado.
O mesmo se dá na Alemanha
e na Suíça, onde o direito de cada pessoa de conhecer suas origens está inscrito na Constituição. O líquido branco já se tornou quase tão precioso quanto
o ouro negro. Todo mundo o
procura -casais cada vez mais
numerosos confrontados com
problemas de esterilidade, mas
também lésbicas e, cada vez
mais, mulheres solteiras.
O desejo de ter um filho ultrapassa as leis e as fronteiras;
pacientes que não têm o direito
de se fazer inseminar em seus
próprios países vão ao exterior
para isso, para a Bélgica, por
exemplo. Aquelas que não têm
coragem de aguardar os prazos
impostos em seus próprios países se dispõem a encomendar o
produto on-line.
Ole Schou gaba-se de poder
entregar esperma em qualquer
parte do mundo em 48 horas.
Mas seu exército de 250 doadores não está dando conta da demanda. Por isso Schou vem publicando anúncios no Google, nos fóruns estudantis, nas faculdades de Odense, Aarhus e
Copenhague. Jan viu um desses anúncios no ônibus. Nesta
manhã ele abre a porta da
Cryos "só para ver".
Jan tem cachos castanhos e
um piercing na orelha. Seus
pais são agricultores, e ele estuda numa escola de engenharia.
"Doar esperma é uma maneira
de ganhar dinheiro facilmente", ele explica. "A gente brinca
sobre isso entre amigos."
O funcionário da Cryos pede
para escanear suas impressões
digitais e o orienta a preencher
um questionário sobre seus antecedentes médicos, antes de
lhe mostrar uma salinha reservada para a masturbação.
Paredes à prova de som, uma
cama, um lavabo, um pôster de
uma bela morena nua, algumas
revistas pornográficas. Jan se
tranca na sala e emerge 15 minutos depois com sua pequena
colheita: três mililitros. É o suficiente, mas existem doadores
que, de uma só vez, chegam a
produzir até 18 mililitros.
O esperma de Jan será examinado com microscópio antes
de ser congelado a -196ºC e
conservado por no mínimo seis
meses -tempo necessário para
excluir a possibilidade de ele
ser transmissor de alguma
doença. Se for de boa qualidade, o futuro engenheiro receberá até 500 ou mesmo 600 coroas dinamarquesas [de R$ 173
a R$ 208] por fornecimento.
Alguns doadores,
ao que parece, já engendraram mais de cem bebês
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Variação de qualidade
Se seus espermatozóides forem poucos ou tiverem pouca
mobilidade, ele poderá ser reprovado. É o que acaba de ser
informado a Kristian, um moreno alto, de óculos e barba por
fazer. O técnico do laboratório
o aconselha a tentar outra vez.
Às vezes a qualidade do esperma depende de um quase
nada: do estresse, da qualidade
do sono, da alimentação, da atividade sexual. Aliás, as cabines
ostentam um aviso dizendo: "É
aconselhável passar dois ou
três dias sem relações antes de
vir". Kristian parte irritado,
com seu iPod nos ouvidos.
Atrás dele, um aprendiz de
encanador recebe 600 coroas,
depois de passar dois minutos
apenas na cabine.
Seu esperma é de qualidade
excepcional, do "rótulo extra",
como dizem na Cryos, vendido
a 220 [R$ 570] por tubo de
ensaio de 0,4 mililitro.
Com isso o jovem, conhecido
aqui como matrícula 5.854, vai
fazer muitas pessoas felizes.
Alguns doadores, ao que parece, já engendraram mais de
cem bebês. E ele, quantos? Ele
pensa em sua mãe, que sonha
em se tornar avó, e seus olhos
verdes, imensos, se perdem no
céu cinzento de Aarhus: "Esse
esperma é apenas material genético", se tranqüiliza o encanador. "Somos genitores, simples números. Não temos medo de nada, certo?"
Acerto de contas
Talvez um dia, como nos
EUA, crianças venham cobrar
um acerto de contas, querendo
saber quem se esconde atrás da
matrícula 5.845 ou da 9.342. Na
era da medicina genética e da
crescente reivindicação do direito de cada um de conhecer
suas origens, os bancos de esperma correm grandes riscos.
Ole Schou às vezes se sente
tonto quando imagina as 15 mil
crianças concebidas pela Cryos
vindo bater à sua porta. "Eu
acordo à noite", ele confessa.
"Sinto essa responsabilidade
toda sobre meus ombros."
Mas então ele se endurece e
evoca todas as vidas que não
existiriam sem doadores.
Diz que, de acordo com seus
estudos, entre 3% e 8% das
crianças não têm o genitor que
acreditam ter. Ninguém jamais
saberá ao certo de onde vêm
-e, de qualquer jeito, o amor
não tem nada a ver com a genética! É claro.
Mas Ole Schou também sabe
como o silêncio em relação às
origens é pesado de suportar.
Ele já recebeu alguns apelos
de adolescentes atormentados,
de pais preocupados em saber
se seus filhos têm irmãos ou irmãs que são produtos do mesmo doador. O fundador da
Cryos pensa em algum dia
montar um clube para facilitar
os reencontros, como é feito
nos EUA.
Ele também se esforça para
obter mais doadores não-anônimos. Até agora, apenas 30
homens aceitaram a idéia de
revelar sua identidade quando
sua prole chegar aos 18 anos.
Eles têm 30 ou 40 anos e dizem
que querem deixar um vestígio
seu. De alguma forma mais ou
menos consciente, gostariam
de ter filhos, também eles.
"Será que isso é mais sadio?",
se pergunta Ole. Não sabe responder; apenas atende a uma
demanda. Nessa quinta-feira,
mais de dez clínicas fizeram pedidos de esperma dinamarquês, e, graças a Schou, quatro
casais fundaram famílias.
Este texto saiu na "Nouvel Observateur".
Tradução de Clara Allain .
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