São Paulo, domingo, 16 de dezembro de 2007

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Louro alto, bonito e sensual

SITUADA PERTO DE COPENHAGUE, A CRYOS VENDE ESPERMA PARA MAIS DE 50 PAÍSES; TUBOS DE ENSAIO DE RÓTULO "EXTRA" PODEM CUSTAR ATÉ R$ 570

SOPHIE DES DESERTS

Da parede da sala de espera, a atriz Béatrice Dalle os observa com olhar abrasador. Os rapazes não parecem perturbados; o mítico cartaz de "Betty Blue" [1986, filme de Jean-Jacques Beineix] não lhes diz nada.
Eles têm 20 e poucos anos, usam jeans apertados e cabelos arrepiados.
Sorrindo educadamente, mas sem vontade de conversar, eles vieram depois de seus cursos de literatura ou mecânica, mas têm pouco tempo. Daqui, vão para a quadra de squash ou para a piscina. Suas bicicletas estão lá fora, e alguns ainda estão de capacete; eles engolem uma barra de cereais e trocam algumas palavras sobre os jogos de futebol do dia anterior.
Ao vê-los tão comportados, sentados em fila, poderíamos imaginar que eles aguardam uma consulta com um orientador educacional. Hans, Peter, Lars, Adam, Gorm etc. ainda não têm uma idéia clara sobre sua vida futura, mas já têm um trabalho de grande responsabilidade a cumprir: doar sêmen.
Genitores para o planeta inteiro. Eles estão matriculados no maior banco de esperma da Europa, Cryos.
Trata-se de uma empresa dinamarquesa de porte médio que inunda com o líquido precioso cerca de 50 países: seus vizinhos Suécia, Noruega, Bélgica, Alemanha, Reino Unido e às vezes até mesmo, de maneira ilegal, a França e ainda, às vezes, a Austrália, a Coréia do Sul, o Kuait... Cerca de 15 mil bebês já nasceram do esperma desses jovens estudantes dinamarqueses.

Filhos pelo mundo
Os viquingues estão de volta: "Como o esperma dinamarquês está conquistando o mundo", inquietou-se o "Times" em novembro de 2006. O artigo acompanha a trajetória das cubas fumegantes onde, congelados em nitrogênio, dormem 25 mil tubos de ensaio prontos para serem exportados.
"Vamos espalhar nossos genes pelo mundo mais uma vez", brinca Lars, 23, futuro professor de biologia. "Somos conquistadores", ri outro gigante loiro recoberto de sardas, fazendo um gesto com o punho erguido.
O ambiente na Cryos é comportado. A sede da empresa fica no terceiro andar de um velho imóvel reformado de Aarhus, a grande cidade universitária da Dinamarca.
Vigas em madeira clara, spotlights, tapetes macios, funcionários belos e simpáticos usando jeans -poderíamos nos imaginar no set de "Friends" [seriado norte-americano].
Nas paredes se espalham fotos de bebês loiros e algumas telas de fundos marinhos atravessados por espermatozóides cor-de-laranja. "Veja como é belo", se extasia Ole Schou. "Foi um de nossos doadores que pintou esses quadros." O fundador da Cryos tem 53 anos e também tem ar de estudante.
Jeans, camisa xadrez azul como seus olhos, pernas longas que escalam montanhas regularmente e o aperto de mão de um homem que não tem medo de nada. "Veja bem", ele insiste. "Esse quadro representa o sonho que transformou minha vida 20 anos atrás. Era tudo azul, e eu nadava debaixo do gelo, entre milhões de espermatozóides." Ole, que na época era estudante de economia, acordou estarrecido.
"Compreendi que era possível congelar a vida!" O jovem correu para a biblioteca do campus e devorou várias obras sobre técnicas de reprodução medicamente assistida.
Ele congelava seu esperma e o de seus colegas e, observado com preocupação por sua família, passava horas examinando-o com a ajuda de um velho microscópio.
Em 1991, Ole ofereceu seus serviços a pacientes que tiveram câncer. Cinco anos mais tarde, fundou seu próprio banco de esperma: o Cryos. Na época, ele próprio saía para colar cartazes nos campi e bares de Aarhus, incentivando estudantes a ajudar casais que tinham dificuldades para ter filhos. "Eu não queria apenas ganhar dinheiro", assegura. "Queria prestar um serviço às pessoas."
E, como todos sonham em ter pequenos arianos loiros de olhos azuis, Ole Schou vem satisfazer esse desejo. O catálogo da Cryos -até agora acessível apenas a médicos, mas que dentro em breve estará aberto a particulares- detalha o peso, a altura, a cor dos cabelos e dos olhos dos doadores, além de seus estudos, sua profissão e sua raça.


O líquido branco já se tornou quase tão precioso quanto o ouro negro

Seleção artificial
O benfeitor rebate as acusações de desvios eugênicos: "Toda a nossa sociedade é fundamentada na seleção natural", declara. "É normal que os pais possam escolher um genitor segundo seus critérios próprios. Isso é feito nos EUA."
A Cryos construiu sua fama sobre a qualidade de seus reprodutores, puros "caucasianos/escandinavos" dotados, em sua maioria, de um "néctar" excepcional. No início, apenas 10% passavam pelos critérios de seleção. "Hoje somos obrigados a aceitar cerca de 25%, incluindo obrigatoriamente esperma de qualidade não tão boa", lamenta Ole Schou. "Se não fosse assim, não conseguiríamos satisfazer a demanda."
A cada semana o banco recebe uma centena de pedidos novos. O Velho Continente sofre de uma escassez aguda de esperma. Os países que revogaram o anonimato dos doadores -Suécia, Reino Unido, Finlândia, Noruega- não encontram mais homens dispostos a oferecer seu sêmen de bom grado.
O mesmo se dá na Alemanha e na Suíça, onde o direito de cada pessoa de conhecer suas origens está inscrito na Constituição. O líquido branco já se tornou quase tão precioso quanto o ouro negro. Todo mundo o procura -casais cada vez mais numerosos confrontados com problemas de esterilidade, mas também lésbicas e, cada vez mais, mulheres solteiras.
O desejo de ter um filho ultrapassa as leis e as fronteiras; pacientes que não têm o direito de se fazer inseminar em seus próprios países vão ao exterior para isso, para a Bélgica, por exemplo. Aquelas que não têm coragem de aguardar os prazos impostos em seus próprios países se dispõem a encomendar o produto on-line.
Ole Schou gaba-se de poder entregar esperma em qualquer parte do mundo em 48 horas. Mas seu exército de 250 doadores não está dando conta da demanda. Por isso Schou vem publicando anúncios no Google, nos fóruns estudantis, nas faculdades de Odense, Aarhus e Copenhague. Jan viu um desses anúncios no ônibus. Nesta manhã ele abre a porta da Cryos "só para ver".
Jan tem cachos castanhos e um piercing na orelha. Seus pais são agricultores, e ele estuda numa escola de engenharia. "Doar esperma é uma maneira de ganhar dinheiro facilmente", ele explica. "A gente brinca sobre isso entre amigos."
O funcionário da Cryos pede para escanear suas impressões digitais e o orienta a preencher um questionário sobre seus antecedentes médicos, antes de lhe mostrar uma salinha reservada para a masturbação.
Paredes à prova de som, uma cama, um lavabo, um pôster de uma bela morena nua, algumas revistas pornográficas. Jan se tranca na sala e emerge 15 minutos depois com sua pequena colheita: três mililitros. É o suficiente, mas existem doadores que, de uma só vez, chegam a produzir até 18 mililitros.
O esperma de Jan será examinado com microscópio antes de ser congelado a -196ºC e conservado por no mínimo seis meses -tempo necessário para excluir a possibilidade de ele ser transmissor de alguma doença. Se for de boa qualidade, o futuro engenheiro receberá até 500 ou mesmo 600 coroas dinamarquesas [de R$ 173 a R$ 208] por fornecimento.


Alguns doadores, ao que parece, já engendraram mais de cem bebês

Variação de qualidade
Se seus espermatozóides forem poucos ou tiverem pouca mobilidade, ele poderá ser reprovado. É o que acaba de ser informado a Kristian, um moreno alto, de óculos e barba por fazer. O técnico do laboratório o aconselha a tentar outra vez.
Às vezes a qualidade do esperma depende de um quase nada: do estresse, da qualidade do sono, da alimentação, da atividade sexual. Aliás, as cabines ostentam um aviso dizendo: "É aconselhável passar dois ou três dias sem relações antes de vir". Kristian parte irritado, com seu iPod nos ouvidos. Atrás dele, um aprendiz de encanador recebe 600 coroas, depois de passar dois minutos apenas na cabine.
Seu esperma é de qualidade excepcional, do "rótulo extra", como dizem na Cryos, vendido a 220 [R$ 570] por tubo de ensaio de 0,4 mililitro. Com isso o jovem, conhecido aqui como matrícula 5.854, vai fazer muitas pessoas felizes.
Alguns doadores, ao que parece, já engendraram mais de cem bebês. E ele, quantos? Ele pensa em sua mãe, que sonha em se tornar avó, e seus olhos verdes, imensos, se perdem no céu cinzento de Aarhus: "Esse esperma é apenas material genético", se tranqüiliza o encanador. "Somos genitores, simples números. Não temos medo de nada, certo?"

Acerto de contas
Talvez um dia, como nos EUA, crianças venham cobrar um acerto de contas, querendo saber quem se esconde atrás da matrícula 5.845 ou da 9.342. Na era da medicina genética e da crescente reivindicação do direito de cada um de conhecer suas origens, os bancos de esperma correm grandes riscos.
Ole Schou às vezes se sente tonto quando imagina as 15 mil crianças concebidas pela Cryos vindo bater à sua porta. "Eu acordo à noite", ele confessa. "Sinto essa responsabilidade toda sobre meus ombros." Mas então ele se endurece e evoca todas as vidas que não existiriam sem doadores.
Diz que, de acordo com seus estudos, entre 3% e 8% das crianças não têm o genitor que acreditam ter. Ninguém jamais saberá ao certo de onde vêm -e, de qualquer jeito, o amor não tem nada a ver com a genética! É claro. Mas Ole Schou também sabe como o silêncio em relação às origens é pesado de suportar.
Ele já recebeu alguns apelos de adolescentes atormentados, de pais preocupados em saber se seus filhos têm irmãos ou irmãs que são produtos do mesmo doador. O fundador da Cryos pensa em algum dia montar um clube para facilitar os reencontros, como é feito nos EUA.
Ele também se esforça para obter mais doadores não-anônimos. Até agora, apenas 30 homens aceitaram a idéia de revelar sua identidade quando sua prole chegar aos 18 anos.
Eles têm 30 ou 40 anos e dizem que querem deixar um vestígio seu. De alguma forma mais ou menos consciente, gostariam de ter filhos, também eles.
"Será que isso é mais sadio?", se pergunta Ole. Não sabe responder; apenas atende a uma demanda. Nessa quinta-feira, mais de dez clínicas fizeram pedidos de esperma dinamarquês, e, graças a Schou, quatro casais fundaram famílias.


Este texto saiu na "Nouvel Observateur". Tradução de Clara Allain .


Texto Anterior: Preto básico
Próximo Texto: Os Dez+
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.