São Paulo, domingo, 16 de dezembro de 2007

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Apocalypse Now


A obra de arte pode ser abalada por especulações financeiras, vaidades mundanas, esnobismos de todo tipo -são falsos semblantes: o cerne mais verdadeiro permanece, mesmo ocultado
JORGE COLI
COLUNISTA DA FOLHA

Ao ser interrogado sobre qual seria o futuro da arte, um crítico respondeu: "Não sei. Se soubesse, estaria comprando". Entre a provocação e o cinismo, a tirada assinala o quanto as artes dependem do mercado.
Nenhum artista, seja ele poeta ou cineasta, inventor de instalações ou navegador no ciberespaço, consegue viver de sua arte se não vendê-la. A mistura na qual a invenção criadora, feita de intuições fulgurantes, capaz de abrir percepções vertiginosas para o comum dos mortais, se funde com interesses vis termina por provocar quase sempre um odor meio nauseante. Tende-se a separar as duas coisas para afastar o sentimento de repugnância.
Mas a associação é inevitável. As artes dependem desses processos de compra e venda, no qual se infiltram também os mais diversos tipos de oportunismo publicitário que transformam a obra em produto.
Contudo é legítima uma visada otimista. O mercado deixaria de existir, e com ele as artes, se tanta gente não se dispusesse a pagar tanto. Essas pessoas, para o mal ou para o bem, indicam que há um crucial interesse (na variada gama de sentidos que essa palavra possui) consagrado à arte. A obra de arte pode ser abalada em suas significações mais profundas por especulações financeiras, vaidades mundanas, esnobismos de todo tipo, sociais ou intelectuais. São falsos semblantes. O cerne mais verdadeiro permanece, mesmo quando ocultado.

A rede
Hoje, grandes receios levam a sentir o futuro como apocalíptico, no qual uma estabilidade, por precária que seja, esteja se perdendo definitivamente.
Porém ganha-se, em troca, uma rede de comunicações imediatas, com prodigiosas facilidades de deslocamento sobre todo o planeta. Isso deveria provocar fecundações nos processos de criação, já que as artes são feitas de diálogos, trocas, contaminações. Nada impossível que ocorram.

Armageddon
As últimas décadas mostraram, em todos os campos, que a humanidade vem sendo atingida por comportamentos coletivos de profunda regressão. Comportamentos cuja intensidade irracional é propriamente espantosa. O domínio das artes não escapa deles.
Obras são agredidas de várias formas: são destruídas fisicamente por razões religiosas ou morais; são acossadas pela censura, que muitas vezes cerceia a dúvida, a crítica, a irreverência; são neutralizadas, dissolvidas em suas almas, pelo marketing. Diante desses ataques, e muitas vezes justamente por eles, a arte mostra seu papel inconformista, manifestando-se ali onde não se espera, perturbando os acomodamentos.

O dia depois de amanhã
O destino de nosso pequeno mundo assusta. Nele proliferamos, cada vez mais numerosos. Sentimo-nos parasitas destruidores sobre um globo que, graças às nossas atividades, ou apenas às nossas presenças, caminha para o apocalipse ecológico. Julgamo-nos impotentes para aliviar as mazelas de uma humanidade marcada pelas piores injustiças, em sua maioria condenada a uma vida de miséria.
Tudo isso é verdadeiro, e a arte, nessa perspectiva, pode parecer frívola. Seu campo infinito de sugestões, ao contrário, conduz à percepção complexa, por vezes contraditória, deste mesmo mundo, único, tão ameaçado.
Talvez chegue mesmo o apocalipse. Talvez os oceanos invadam as terras, talvez o planeta morra, talvez nós consigamos exterminar a nós mesmos. É só quando isso acontecer, e só então, que a arte não terá mais sentido.


jorgecoli@uol.com.br


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