São Paulo, domingo, 16 de dezembro de 2007

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+ (t)réplica

Com textos de Maria Lúcia Pallares-Burke e Peter Burke, de um lado, e Enrique Larreta e Guillermo

Fontes e dívidas

MARIA LÚCIA PALLARES-BURKE
PETER BURKE

ESPECIAL PARA A FOLHA

É pesaroso verificar que Larreta e Giucci, em sua réplica no Mais! de 9/12, escolheram se evadir a nossas críticas, oferecendo autocongratulações e acusações em vez de sólidas respostas às questões de princípio que levantamos. O que está em debate aqui não é a interpretação de Freyre, mas a ética da "scholarship".
Os dois pontos que consideramos nosso dever apontar na resenha são o tratamento que deram a suas fontes e dívidas intelectuais. No primeiro caso, pareceu-nos questionável o uso acrítico que os autores fizeram dos escritos autobiográficos de Freyre. É verdade que dedicaram algumas palavras às "distorções da memória", mas, como se isso fosse suficiente para eximi-los de maiores cuidados, incorporaram textos de Freyre em seu próprio texto, parafraseando ou citando suas palavras, muitas vezes não deixando isso claro e não usando aspas, como requer a boa prática acadêmica.
Como um exemplo dentre muitos, os autores se referem a um frustrado encontro de Freyre com Joyce, afirmando que um amigo de A. Lowell se encontrou com ele em Paris e "levou-lhe cartas de apresentação para Ezra Pound e James Joyce" (pág. 162). Não revelam que extraíram essa informação da autobiografia "Tempo Morto" (pág. 83), em que Freyre, ciente das "ficções da memória", diz com cautela que seu amigo "S. trouxe de Miss L. cartas de apresentação para vários amigos dela de Paris e de Londres. Creio que cartas para Ezra Pound e até para Joyce".
Quanto aos muitos estudos anteriores sobre Freyre, nós não esperávamos uma discussão dessas várias interpretações numa simples biografia.
O que certamente esperávamos -e o que altos padrões de trabalho intelectual exigem- é que, quando os autores usem material descoberto por outros ou adotem ou desenvolvam suas interpretações (como os autores freqüentemente fazem), reconheçam o fato no texto ou em notas (o que freqüentemente deixam de fazer).
Dentre as muitas inovações que reivindicam, citam suas interpretações sobre a questão da modernidade, da sexualidade, a relação de Freyre com Hearn e Boas -temas esses tratados antes e inovadoramente por outros estudiosos.
Provavelmente, a fim de enfatizar uma originalidade ilusória, os autores não mencionam esses estudiosos, perdendo assim a oportunidade de explicitar a novidade que reivindicam sem argumentar. Discorrer sobre modernidade e sexualidade em Freyre sem se referir, por exemplo, ao seminal artigo de Needell ou sobre a centralidade da noção de "equilíbrio de antagonismos" sem fazer referência à clássica interpretação de Benzaquem não é modo de contribuir para o avanço do conhecimento.

Predecessores
Quanto às acusações que os autores nos fazem -de que recorremos a "argumentos sectários"-, mesmo se fosse nosso estilo, não haveria motivo para sermos sectários a propósito de um livro que não tem uma tese com a qual se pode concordar ou discordar.
Quanto à acusação do "arbitrário método" utilizado por um dos autores da resenha em "Gilberto Freyre - Um Vitoriano dos Trópicos" [ed. Unesp], só podemos dizer que é difícil acreditar que um leitor inteligente possa interpretar esse trabalho como argumentando que "os predecessores são mais importantes que o autor", pois o que aí se insiste é que, para compreender Freyre, a atenção ao diálogo que ele travou com seus predecessores é crucial.
Enfim, só nos resta lamentar que os autores, recorrendo a tais subterfúgios, se furtem a confrontar as sérias questões de princípio que seu trabalho suscita. Com tal atitude, nenhum debate intelectual sadio é possível.


MARIA LÚCIA PALLARES-BURKE é professora aposentada da USP e pesquisadora associada do Centro de Estudos Latino-Americanos da Universidade de Cambridge.
PETER BURKE é professor de história cultural em Cambridge. Escreve na seção "Autores".

NA INTERNET - Leia texto dos autores, publicado no Mais! de 2/12, em www.folha.com.br/073473


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