São Paulo, domingo, 16 de dezembro de 2007

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+ Cinema

"Tenho furor de sobra"

Mais antigo diretor em atividade, o português Manoel de Oliveira fala da influência de Carl Dreyer, da relação com o público e de seu último filme, "Cristóvão Colombo"

Andrew Medichini - 6.set.2007/ Associated Press
O cineasta Manoel de Oliveira, que acaba de completar 99 anos,
participa de evento durante o Festival de Veneza deste ano


MARIA BOCHICCHIO
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA

Manoel de Oliveira, que fez 99 anos na última quarta-feira, é o mais antigo diretor em atividade. Premiado nos principais festivais internacionais e com mais de 40 filmes no currículo, sendo "Cristóvão Colombo" o mais recente, Oliveira revisita a vida e a obra, passando pelo Porto da sua infância, os filmes que o marcaram desde o mudo, sem esquecer a relação nem sempre fácil com o público. Mas parar está fora de questão, e o português que praticamente viu nascer o cinema deseja apenas filmar até ao fim, como diz na entrevista a seguir, concedida à Folha em sua casa, na cidade do Porto.  

FOLHA - Como começou essa longa aventura de diretor?
MANOEL DE OLIVEIRA
- Comecei em 1929 com uma Kinamo, uma máquina pequenina, que levava 30 metros de película, comprada pelo meu pai. Cada cena não podia ter mais que 8 metros de película. Muito influenciado pela técnica de Walther Ruttman [1887-1941], pensei em dirigir um filme sobre a Ribeira [zona histórica da cidade do Porto]. Mas faltava-me tudo, não tinha fotógrafo, depois felizmente lá encontrei um amigo para a fotografia que mais tarde desistiu. Aí, passei eu a fazer tudo, depois de passar por uma escola alemã: fotografia, produção, argumento, direção. E os atores eram locais, por causa do dinheiro que faltava.

FOLHA - Se começou em 1929, ainda com o cinema mudo, então é o mais antigo diretor em atividade.
OLIVEIRA
- Em atividade, talvez, mas o mais antigo são Lumière, e depois Méliès e por aí afora.

FOLHA - Que relação tem com o seu passado?
OLIVEIRA
- Não contemplo o passado com ironia, mas olho para ele como algo de carnal. Penso nas coisas que me foram muito familiares. E penso na juventude, claro, a juventude perdida que não volta. Mas sou feliz, embora a felicidade seja sempre algo de que nos apercebemos a posteriori.

FOLHA - Durante seus 99 anos, o cinema foi sempre a primeira paixão?
OLIVEIRA
- Eu pratiquei outras atividades, fui atleta, corredor de automóveis, mas o cinema esteve sempre em primeiro lugar, e a minha primeira aspiração era ser ator cômico.

FOLHA - Como Buster Keaton?
OLIVEIRA
- Sim, Buster Keaton, Charlie Chaplin e todos esses cômicos que eu me lembro de ver com seis anos, quando o meu pai me levava a um cinema ainda incipiente, uma barraca, não mais. Lembro-me de Georges Méliès, dos irmãos Marx... Enfim, é um tempo que passou.

FOLHA - Alguns críticos dizem que os seus filmes abusam dos planos fixos. Concorda com eles?
OLIVEIRA
- Engraçado que me faça essa pergunta, porque eu cheguei a freqüentar um dia só uma escola de cinema, em Portugal, com Rino Lupo, um dos pioneiros do cinema clássico italiano, e aquilo que mais me incomodava nele era esse abuso de planos fixos.
Eu e meu irmão, que lá andávamos juntos porque tínhamos entrado como figurantes em "Fátima Milagrosa", que Lupo dirigira, ainda lhe dizíamos que o cinema era montagem, o Eisenstein [1898-1948] já estava a fazer os seus filmes, e tudo aquilo me parecia ainda um pouco parado. Por isso considero-me um autodidata, um apaixonado pelos filmes, onde aprendi tudo, assistindo a eles.

FOLHA - Como o sr. se define como diretor?
OLIVEIRA
- Certamente não como um criador. Toda criação é uma recriação, não há nada que não exista antes: nenhuma forma, nenhum desenho; já está tudo na natureza. Por isso serei um recriador porque o único verdadeiro criador é Deus, porque é andrógino, isto é, não precisa de um duplo para criar.

FOLHA - Em 76 anos de atividade, quais foram as principais mudanças na arte cinematográfica?
OLIVEIRA
- No início ninguém apostava seriamente no cinema, era uma atração de feira, nem Lumière acreditava que seria uma arte para durar. Mas depois aconteceu uma evolução profunda que criou um cinema mais rico, mais complexo, mais intelectualizado. E surgiram Chaplin, Buñuel com aquele lado perverso, Welles e o grande John Ford. Mas depois, mais tarde, surgiram também filibusteiros geniais, como Fellini ou Bergman, que gostam de espreitar pela fechadura. Anjos pornográficos, como diria Nelson Rodrigues. Mas aquele que mais admiro é o dinamarquês Carl Theodor Dreyer [1889-1968], com seu último filme.

FOLHA - O "Gertrud"?
OLIVEIRA
- Exatamente, que tende a tocar o absoluto.

FOLHA - O que ainda procura em seus filmes?
OLIVEIRA
- O de sempre: chegar à perfeição e ao absoluto.

FOLHA - Concorda com aqueles que dizem que a sua obra manifesta uma certa preocupação espiritual?
OLIVEIRA
- Espiritual no sentido de conhecer o mundo, o princípio da nossa natureza, o que significa Deus e o que significamos nós, criaturas. Além disso, fui educado católico e não posso escapar à dúvida. Nós, ao ignorarmos a profunda razão do sentido mais concreto da existência do mundo e do criador, ficamos com um mistério.

FOLHA - Mas é um homem de fé?
OLIVEIRA
- Isso é outro mistério, porque eu próprio não sei. O que sei é que existe um sentimento religioso, que não corresponde a nenhuma igreja, é um sentimento nato.

FOLHA - E a vida cotidiana, como se sente nas tarefas do dia-a-dia afastado do seu set cinematográfico?
OLIVEIRA
- Eu tenho uma família numerosa e unida à minha volta: mulher, filhos, netos e bisnetos! E não é fácil equilibrar esse lado familiar com o cinema, que me rouba tempo e energia. Mas gostava de deixar tudo em ordem para eles não terem complicações.

FOLHA - Costuma dizer que a direção lhe dá prazer. Que significa esse "prazer"?
OLIVEIRA
- Eu acho que criamos para contar aquilo que nos impressiona. E por que contamos? Por prazer? Por necessidade de nos libertarmos daquilo que está na nossa consciência? Existe um impulso interior de contar, uma necessidade, não é simplesmente o prazer pelo prazer, é uma necessidade de libertação.

FOLHA - É um diretor muito produtivo, há quase três décadas que faz um filme por ano. Em 2006-2007 foram dois, "Belle Toujours - Sempre Bela" e "Cristóvão Colombo". Como lhe surge a idéia de um filme?
OLIVEIRA
- No caso de "Belle Toujours" não era possível fazer a continuação de "Belle de Jour" [A Bela da Tarde], de Buñuel. A idéia surgiu de uma lágrima no rosto do protagonista e de uma dúvida: será que o segredo foi revelado? Noutros filmes, não posso explicar, acontece, vem por acaso, se é que alguma coisa vem por acaso ou se tudo não está já determinado.

FOLHA - E a sua relação com o público, melhorou?
OLIVEIRA
- Não há público ideal. Nada há de mais consolador para qualquer artista que a compreensão do seu trabalho. Porque o espectador completa o filme. Há muita coisa que é subconsciente no diretor, mas cada espectador interpreta à sua maneira e enriquece o filme.

FOLHA - E com os atores? Que tipo de relação estabelece com eles?
OLIVEIRA
- A única pessoa com quem sou um tirano é comigo mesmo. Com os atores, não. Eu compreendo a complexidade dos atores e valorizo muito a espontaneidade deles. Faço as marcações, mas raramente intervenho porque sei que o que vier deles é o melhor.

FOLHA - O seu novo filme nos traz Cristóvão Colombo. É um enigma fascinante?
OLIVEIRA
- Sem dúvida, porque vários países europeus -a Itália, a Espanha e agora Portugal, embora todos sem comprovação- o reclamam como seu. Mas não estou interessado na alegada identidade portuguesa de Colombo, o filme não é patriótico nem romântico nem preocupado com o heroísmo do personagem, ligado aos descobrimentos peninsulares. Interesso-me pelo lado mais histórico, pela origem das coisas, da globalização corrente como casamento entre sociedades várias.

FOLHA - Tem medo de que sua veia artística se possa esgotar?
OLIVEIRA
- Furor tenho de sobra! Assim me sobrassem os meios para fazer filmes contra a corrente, de resistência, não com sexo pelo sexo, violência pela violência, mas filmes pausados, mais serenos, reflexivos.

FOLHA - O Manoel é o decano dos diretores. Qual é o seu lugar na história do cinema?
OLIVEIRA
- O cinema é uma árvore frondosa, e cada diretor acrescenta apenas uma folha mais. E eu, como as árvores, gostaria de morrer de pé. Gostaria de morrer a filmar.


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