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"Tenho furor de sobra"
Mais antigo diretor em atividade, o português Manoel de Oliveira fala da influência de Carl Dreyer,
da relação com o público e de seu último filme, "Cristóvão Colombo"
Andrew Medichini - 6.set.2007/ Associated Press
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O cineasta Manoel de Oliveira, que acaba de completar 99 anos, participa de evento durante o Festival de Veneza deste ano
MARIA BOCHICCHIO
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA
Manoel de Oliveira, que fez 99
anos na última
quarta-feira, é o
mais antigo diretor em atividade.
Premiado nos principais festivais internacionais e com
mais de 40 filmes no currículo,
sendo "Cristóvão Colombo" o
mais recente, Oliveira revisita a
vida e a obra, passando pelo
Porto da sua infância, os filmes
que o marcaram desde o mudo,
sem esquecer a relação nem
sempre fácil com o público.
Mas parar está fora de questão, e o português que praticamente viu nascer o cinema deseja apenas filmar até ao fim, como diz na entrevista a seguir,
concedida à Folha em sua casa,
na cidade do Porto.
FOLHA - Como começou essa longa
aventura de diretor?
MANOEL DE OLIVEIRA - Comecei
em 1929 com uma Kinamo,
uma máquina pequenina, que
levava 30 metros de película,
comprada pelo meu pai. Cada
cena não podia ter mais que 8
metros de película. Muito influenciado pela técnica de Walther Ruttman [1887-1941], pensei em dirigir um filme sobre a Ribeira [zona histórica da cidade do Porto].
Mas faltava-me tudo, não tinha fotógrafo, depois felizmente lá encontrei um amigo para a
fotografia que mais tarde desistiu. Aí, passei eu a fazer tudo,
depois de passar por uma escola alemã: fotografia, produção,
argumento, direção. E os atores
eram locais, por causa do dinheiro que faltava.
FOLHA - Se começou em 1929, ainda com o cinema mudo, então é o
mais antigo diretor em atividade.
OLIVEIRA - Em atividade, talvez,
mas o mais antigo são Lumière,
e depois Méliès e por aí afora.
FOLHA - Que relação tem com o
seu passado?
OLIVEIRA - Não contemplo o
passado com ironia, mas olho
para ele como algo de carnal.
Penso nas coisas que me foram
muito familiares. E penso na
juventude, claro, a juventude
perdida que não volta.
Mas sou feliz, embora a felicidade seja sempre algo de que
nos apercebemos a posteriori.
FOLHA - Durante seus 99 anos, o cinema foi sempre a primeira paixão?
OLIVEIRA - Eu pratiquei outras
atividades, fui atleta, corredor
de automóveis, mas o cinema
esteve sempre em primeiro lugar, e a minha primeira aspiração era ser ator cômico.
FOLHA - Como Buster Keaton?
OLIVEIRA - Sim, Buster Keaton,
Charlie Chaplin e todos esses
cômicos que eu me lembro de
ver com seis anos, quando o
meu pai me levava a um cinema
ainda incipiente, uma barraca,
não mais. Lembro-me de Georges Méliès, dos irmãos Marx...
Enfim, é um tempo que passou.
FOLHA - Alguns críticos dizem que
os seus filmes abusam dos planos fixos. Concorda com eles?
OLIVEIRA - Engraçado que me
faça essa pergunta, porque eu
cheguei a freqüentar um dia só
uma escola de cinema, em Portugal, com Rino Lupo, um dos
pioneiros do cinema clássico
italiano, e aquilo que mais me
incomodava nele era esse abuso de planos fixos.
Eu e meu irmão, que lá andávamos juntos porque tínhamos
entrado como figurantes em
"Fátima Milagrosa", que Lupo
dirigira, ainda lhe dizíamos que
o cinema era montagem, o Eisenstein [1898-1948] já estava a
fazer os seus filmes, e tudo
aquilo me parecia ainda um
pouco parado. Por isso considero-me um autodidata, um apaixonado pelos filmes, onde
aprendi tudo, assistindo a eles.
FOLHA - Como o sr. se define como
diretor?
OLIVEIRA - Certamente não como um criador. Toda criação é
uma recriação, não há nada que
não exista antes: nenhuma forma, nenhum desenho; já está
tudo na natureza. Por isso serei
um recriador porque o único
verdadeiro criador é Deus, porque é andrógino, isto é, não precisa de um duplo para criar.
FOLHA - Em 76 anos de atividade,
quais foram as principais mudanças
na arte cinematográfica?
OLIVEIRA - No início ninguém
apostava seriamente no cinema, era uma atração de feira,
nem Lumière acreditava que
seria uma arte para durar.
Mas depois aconteceu uma
evolução profunda que criou
um cinema mais rico, mais
complexo, mais intelectualizado. E surgiram Chaplin, Buñuel
com aquele lado perverso, Welles e o grande John Ford.
Mas depois, mais tarde, surgiram também filibusteiros geniais, como Fellini ou Bergman, que gostam de espreitar pela fechadura. Anjos pornográficos, como diria Nelson Rodrigues. Mas aquele que mais
admiro é o dinamarquês Carl
Theodor Dreyer [1889-1968],
com seu último filme.
FOLHA - O "Gertrud"?
OLIVEIRA - Exatamente, que
tende a tocar o absoluto.
FOLHA - O que ainda procura em
seus filmes?
OLIVEIRA - O de sempre: chegar
à perfeição e ao absoluto.
FOLHA - Concorda com aqueles
que dizem que a sua obra manifesta
uma certa preocupação espiritual?
OLIVEIRA - Espiritual no sentido
de conhecer o mundo, o princípio da nossa natureza, o que
significa Deus e o que significamos nós, criaturas. Além disso,
fui educado católico e não posso escapar à dúvida. Nós, ao ignorarmos a profunda razão do
sentido mais concreto da existência do mundo e do criador,
ficamos com um mistério.
FOLHA - Mas é um homem de fé?
OLIVEIRA - Isso é outro mistério,
porque eu próprio não sei. O
que sei é que existe um sentimento religioso, que não corresponde a nenhuma igreja, é
um sentimento nato.
FOLHA - E a vida cotidiana, como se
sente nas tarefas do dia-a-dia afastado do seu set cinematográfico?
OLIVEIRA - Eu tenho uma família numerosa e unida à minha
volta: mulher, filhos, netos e
bisnetos! E não é fácil equilibrar esse lado familiar com o cinema, que me rouba tempo e
energia. Mas gostava de deixar
tudo em ordem para eles não
terem complicações.
FOLHA - Costuma dizer que a direção lhe dá prazer. Que significa esse
"prazer"?
OLIVEIRA - Eu acho que criamos
para contar aquilo que nos impressiona. E por que contamos? Por prazer? Por necessidade de nos libertarmos daquilo que está na nossa consciência? Existe um impulso interior
de contar, uma necessidade,
não é simplesmente o prazer
pelo prazer, é uma necessidade
de libertação.
FOLHA - É um diretor muito produtivo, há quase três décadas que faz
um filme por ano. Em 2006-2007 foram dois, "Belle Toujours - Sempre
Bela" e "Cristóvão Colombo". Como
lhe surge a idéia de um filme?
OLIVEIRA - No caso de "Belle
Toujours" não era possível fazer a continuação de "Belle de
Jour" [A Bela da Tarde], de Buñuel. A idéia surgiu de uma lágrima no rosto do protagonista
e de uma dúvida: será que o segredo foi revelado?
Noutros filmes, não posso
explicar, acontece, vem por
acaso, se é que alguma coisa
vem por acaso ou se tudo não
está já determinado.
FOLHA - E a sua relação com o público, melhorou?
OLIVEIRA - Não há público ideal.
Nada há de mais consolador para qualquer artista que a compreensão do seu trabalho. Porque o espectador completa o filme. Há muita coisa que é subconsciente no diretor, mas cada
espectador interpreta à sua
maneira e enriquece o filme.
FOLHA - E com os atores? Que tipo
de relação estabelece com eles?
OLIVEIRA - A única pessoa com
quem sou um tirano é comigo
mesmo. Com os atores, não. Eu
compreendo a complexidade
dos atores e valorizo muito a
espontaneidade deles. Faço as
marcações, mas raramente intervenho porque sei que o que
vier deles é o melhor.
FOLHA - O seu novo filme nos traz
Cristóvão Colombo. É um enigma
fascinante?
OLIVEIRA - Sem dúvida, porque
vários países europeus -a Itália, a Espanha e agora Portugal,
embora todos sem comprovação- o reclamam como seu.
Mas não estou interessado
na alegada identidade portuguesa de Colombo, o filme não
é patriótico nem romântico
nem preocupado com o heroísmo do personagem, ligado aos
descobrimentos peninsulares.
Interesso-me pelo lado mais
histórico, pela origem das coisas, da globalização corrente
como casamento entre sociedades várias.
FOLHA - Tem medo de que sua veia
artística se possa esgotar?
OLIVEIRA - Furor tenho de sobra! Assim me sobrassem os
meios para fazer filmes contra
a corrente, de resistência, não
com sexo pelo sexo, violência
pela violência, mas filmes pausados, mais serenos, reflexivos.
FOLHA - O Manoel é o decano dos
diretores. Qual é o seu lugar na história do cinema?
OLIVEIRA - O cinema é uma árvore frondosa, e cada diretor
acrescenta apenas uma folha
mais. E eu, como as árvores,
gostaria de morrer de pé. Gostaria de morrer a filmar.
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