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Quincas, o belo
Celebrado em vida, Joaquim Nabuco redefiniu a tensão entre particular
e universal no pensamento social brasileiro, em obras como
"O Abolicionismo", "Um Estadista
do Império" e "Minha Formação"
Acervo da Fundação Joaquim Nabuco
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Joaquim Nabuco em Nice (França), em 1904, quando trabalhava na questão da Guiana Inglesa
JOSÉ MURILO DE CARVALHO
ESPECIAL PARA A FOLHA
A natureza é reconhecidamente injusta na distribuição de seus dons.
Uns os recebem em
abundância, outros escassamente. Joaquim Nabuco estava
entre os primeiros. Tinha um
físico invejável (Quincas, o belo, o chamavam), aguda inteligência, facilidade para aprender línguas e reconhecidos dotes oratórios.
A sociedade juntou-se à natureza proporcionando-lhe,
pelo lado materno, um berço
de açúcar em Pernambuco e,
pelo paterno, uma longa tradição familiar de participação na
política nacional. Sua vida teve
quatro fases bem distintas.
Nascido em 1849, viveu os primeiros 30 anos sem se distinguir muito de outros jovens talentosos da elite do Segundo
Reinado [1840-89].
Formou-se em direito em
São Paulo e Recife, abandonou
cedo a advocacia, tentou o jornalismo, a literatura, a diplomacia. Dessa fase, ficaram-lhe
a grande admiração pelo pai, o
senador Nabuco de Araújo
(1813-78), e um amontoado de
leituras desordenadas.
Em 1878, morreu o senador
deixando preparada a eleição
do filho a deputado geral por
Pernambuco. Eleito sem dificuldade, deu início à fase mais
brilhante de sua vida, que vai
até a queda do Império.
Embora já preocupado antes
com o problema da escravidão,
em boa parte graças ao exemplo do pai na luta pela aprovação da Lei do Ventre Livre
[1871], só então decidiu abraçar
a causa da abolição e o fez com
total dedicação e em várias
frentes.
Uma dessas frentes foi Londres, onde se autoexilou após
uma derrota eleitoral na corte.
Lá escreveu e publicou, pela
Abraham Kingdon, em 1883,
"O Abolicionismo".
Ganha gloriosamente a batalha em 1888, sobreveio no ano
seguinte a grande derrota que
foi a queda da Monarquia.
Os próximos dez anos foram
de isolamento, recolhimento,
reflexão. Voltou à prática religiosa e, sobretudo, dedicou-se à
escrita da biografia do pai, que
foi publicada em três volumes,
entre 1897 e 1899, pela Garnier,
com o título de "Um Estadista
do Império".
Ao mesmo tempo, foi redigindo aos poucos os capítulos
de "Minha Formação", que
saiu pela Garnier em 1900.
Guiana Inglesa
Em 1899, decidiu sair do isolamento e aceitou convite do
governo republicano para defender a causa do Brasil na disputa com a Inglaterra pelos limites da Guiana Inglesa [leia
na pág. 7 trecho de carta de Nabuco sobre a questão].
Perdida a causa, o barão do
Rio Branco o nomeou primeiro
embaixador brasileiro em Washington, cargo em que morreu
em 1910. Dessa fase, não restaram escritos de maior relevância. "O Abolicionismo", "Um
Estadista do Império" e "Minha Formação", no entanto, escritos em tempos de amargura,
formam uma trilogia de clássicos. O primeiro aparece em
qualquer lista de dez livros
mais importantes na área que
se convencionou chamar de interpretações do Brasil.
O segundo entra fácil na lista
das cinco melhores biografias.
O terceiro faz o mesmo na das
cinco melhores autobiografias.
Autor de três clássicos, é talvez caso único no Brasil. Gilberto Freyre pode emplacar
dois, "Casa-Grande e Senzala"
e "Sobrados e Mocambos", mas
não "Ordem e Progresso".
Problema nacional
"O Abolicionismo" é, ao mesmo tempo, um programa de luta e um ensaio de sociologia política dos mais lúcidos já produzidos entre nós.
O programa definia a escravidão como um problema nacional, acima dos partidos políticos, que devia ser resolvido pelos mecanismos do sistema representativo, sob a pressão da
opinião pública. A sociologia
desvendava um país marcado
pela instituição escravista na
economia, na política, na sociedade, nos valores.
A escravidão, segundo Nabuco, perpassava a vida do país,
invadia todas as atividades, todas as classes, todas as mentes.
Suas consequências, afirmava,
estariam conosco por mais de
um século, uma das previsões
de longo prazo mais corretas já
feitas entre nós.
"Um Estadista do Império"
teve como subtítulo "Nabuco
de Araújo, Sua Vida, Suas Opiniões, Sua Época". Tratava-se,
sem dúvida, de homenagem filial e, como tal, o papel do senador é ressaltado. Mas foi muito
mais do que isso. A última palavra do subtítulo, sua época, é o
ponto alto do livro. O senador
foi um homem público em tempo integral, mesmo quando tinha que advogar para complementar o orçamento.
O filho via tudo sob o prisma
do nacional e do universal. "Um
Estadista" é até hoje uma leitura indispensável para entender
o funcionamento do sistema
político do Segundo Reinado.
O autor consegue um equilíbrio raro entre a análise dos
atores, de que desenhava magníficos perfis, e o movimento
amplo da política, com ênfase
no avanço das ideias liberais.
Nesse exercício, não foi até hoje
superado.
"Minha Formação" é um retrato precioso da formação intelectual dos filhos da elite política do Segundo Reinado, antes
da avalanche dos filosofismos
das últimas décadas do século,
uma elite encharcada de leituras de literatos franceses e tratadistas ingleses.
Livrou-o da pura afetação a
aproximação que fez entre o
engenho de Massangana e a rua
Grosvenor Gardens de Londres, graças à qual definiu a incompatibilidade entre a escravidão brasileira e os valores da
civilização ocidental.
Nabuco utilizou plenamente
em benefício do país os dons e
privilégios que recebeu da natureza e da sociedade.
JOSÉ MURILO DE CARVALHO é historiador,
professor aposentado da Universidade Federal
do Rio de Janeiro e membro da Academia Brasileira de Letras.
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