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Saudades do Sena
Criada por Mário de Andrade, expressão "moléstia de Nabuco" designou o mal-estar da elite em relação ao país
Nabuco preferia o "espírito humano" à paisagem sem história do trópico
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MARCOS AUGUSTO GONÇALVES
DA REPORTAGEM LOCAL
No prefácio ao "Esboço Biográfico de
Joaquim Nabuco",
de Henrique Coelho, publicado pela
Monteiro Lobato Editora, em
1922, Paulo Prado chamava a
atenção do leitor para "essa
cousa que era, há uns 30 anos,
rara na vida de um brasileiro
-uma viagem à Europa".
Desembarcar no Velho Continente "marcava uma data no
espírito do viajante, se fosse inteligente; ou nas suas aventuras galantes, se pendia para essas preocupações".
O escritor e rico cafeicultor
paulista assinalava que as viagens à Europa representavam
para muitos "o início de uma
grande descoberta e o começo
de uma grande paixão, a descoberta de seu próprio país e a
paixão pelas coisas brasileiras".
Essa espécie de "revanche da
terra", que surpreendia compatriotas em visita à civilização
era tema conhecido e caro a
Paulo Prado.
Não por acaso, dois anos depois, em prefácio mais famoso,
agora ao "Poesia Pau-Brasil",
de Oswald de Andrade, ele voltaria ao assunto, anunciando
que o poeta "numa viagem a
Paris, do alto de um ateliê da
Place Clichy -umbigo do mundo- descobriu, deslumbrado,
sua própria terra". O ateliê era
de Tarsila do Amaral, que então vivia com Oswald. O casal e
outros modernistas brasileiros
estavam em Paris naquele período que se seguiu à Semana
de Arte Moderna de 1922.
Embora tivesse travado contato pessoal com Nabuco em
apenas duas ocasiões, uma em
Londres e outra em São Paulo,
Paulo Prado declarou-se "orgulhoso por ter vivido longos
anos na intimidade intelectual
de seu espírito".
Ele e Graça Aranha, que tinham a mesma idade (Graça,
nascido em 1868, tinha na verdade um ano a menos), eram os
caçulas de um círculo de intelectuais que se encontrava com
frequência no apartamento parisiense de Eduardo Prado
-tio de Paulo. O autor de "Canaã", apadrinhado por Nabuco,
e o de "Retrato do Brasil", por
seu tio aristocrata, viriam a ser
uma espécie de ponte entre a
geração de 1870 e a de 1922 -
ambos personagens importantes na realização da Semana.
Não deixa de ser curioso que,
em contraste com as loas ao patriotismo do abolicionista, Mário de Andrade tenha cunhado,
numa boa "boutade", a expressão "moléstia de Nabuco". Referia-se a uma passagem de
"Minha Formação", na qual o
grande pernambucano afirma
que as paisagens todas do Novo
Mundo não valeriam para ele
um trecho da via Appia ou "um
pedaço do cais do Sena à sombra do velho Louvre".
Em sua rica e ambígua experiência de alteridade, Nabuco
preferia o "espírito humano",
que a seu ver só existia do outro
lado do oceano, à paisagem desistoricizada do trópico -embora daqui também sentisse
saudades.
O próprio Graça discordava
dessa maneira de ver as coisas
-e seria natural que Mário, um
brasileirista, viesse a debochar
da reverência à Europa cultivada pelo apolíneo Nabuco.
A "boutade" do autor de
"Macunaíma" vem no contexto
de uma troca de cartas com
Carlos Drummond de Andrade, na qual o mineiro é repreendido por suas inclinações
afrancesadas.
Além da admiração manifestada por Anatole France,
Drummond, na correspondência, pondera que todos sofremos dessa mesma "tragédia"
de Nabuco -e numa passagem
mais forte, chega a considerar o
Brasil "infecto". São sentimentos, aliás, que de alguma forma
ainda transparecem em manifestações de nossas elites intelectuais, mesmo entre acadêmicos de esquerda.
Mário retruca, afirmando
que a tragédia na verdade é
uma doença. Como a moléstia
de Chagas, também teríamos a
"moléstia de Nabuco", que consistiria em brasileiros, como
Drummond, "andarem sentindo saudade do cais do Sena em
plena Quinta da Boa Vista" e
em "falar de um jeito e escrever
covardemente colocando o
pronome carolinamichaelismente" (referência à filóloga da
língua portuguesa Carolina Michaëlis).
Para sanar o mal, Mário receita: "Estilize a sua fala, sinta a
Quinta da Boa Vista pelo que é
e foi, e estará curado da moléstia de Nabuco".
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