São Paulo, domingo, 17 de fevereiro de 2008

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+ cultura

Berlim em campo aberto

Antiga capital do 3º Reich, cidade acolhe judeus da ex-União Soviética e Europa Oriental e começa a apagar seu passado de intolerância

Divulgação
Noitada na "Russendisco", liderada pelo judeu de origem ucraniana Yuri Gurzhy


OLIVIER GUEZ

Ao telefone que não pára de tocar, e com seus muitos visitantes, Yitzhak Ehrenberg se alterna a todo momento entre o alemão, o hebraico e o inglês. Por mais que a secretária se esforce, o grande rabino ortodoxo de Berlim está sobrecarregado de trabalho. Mas ele não se queixa -pelo contrário: "Minha missão é exaltante, e eu a vejo como dádiva da Providência. O sr. percebe? Berlim voltou a existir no planisfério dos lugares mais importantes do judaísmo contemporâneo!".
Ehrenberg vela pelo bem-estar de uma comunidade de 12 mil pessoas -ou duas vezes mais se forem incluídos todos os judeus que não se cadastraram oficialmente. Eles dispõem hoje de dez sinagogas, de escolas, restaurantes e mercearias kosher, bibliotecas, uma livraria etc. Nos últimos anos, inaugurações de locais de culto e cerimônias festivas se sucederam às margens do Spree: um centro cultural do movimento ortodoxo Chabad Lubavitch, uma sinagoga para os judeus orientais (da Ásia Central e do Cáucaso) e a ordenação, em 2006, de três rabinos -a primeira vez em que isso aconteceu na Alemanha desde a era nazista.

Renovação
A capital alemã passa por uma renovação judaica impressionante. Ela não se limita à valorização do riquíssimo passado judaico da cidade, narrado pelo Museu Judaico do bairro de Kreuzberg, uma realização notável do arquiteto americano Daniel Libeskind, nem ao reconhecimento dos crimes passados, simbolizados pelos impressionantes vãos de cimento cinza do vasto labirinto de sepulturas anônimas do memorial do Holocausto, onde turistas e curiosos se acotovelam a poucos metros do portão de Brandenburgo.
Numa manhã de sábado em Prenzlauer Berg, o bairro "cool" deste início de século, em meio à multidão colorida que lota as ruas, às famílias vindas para degustar um "brunch" e aos notívagos cansados voltando para casa após uma noite agitada, é comum cruzar com judeus ortodoxos.
Uma yeshiva (centro de estudos) financiada pela Fundação Lauder, norte-americana, foi erguida no bairro, e a maior sinagoga da Alemanha, situada na Rykestrasse, foi reaberta em agosto do ano passado. "Durante décadas, os judeus da Alemanha foram homens e almas feridos, atingidos por tormentos terríveis. Foi a chegada dos [judeus] russos que mudou tudo."
Na primavera de 1990, a Alemanha Oriental (RDA), agonizante, reconheceu pela primeira vez em sua história a responsabilidade de toda a Alemanha pelo Holocausto. Seu último governo eleito nas eleições livres decidiu pagar reparações aos judeus e ao Estado de Israel, como a Alemanha Ocidental fizera desde os anos 1950. Mas, por falta de recursos, a Alemanha Oriental decidiu pela abertura irrestrita de suas fronteiras a todos os judeus da União Soviética que quisessem emigrar. Após algumas hesitações, Helmut Kohl resolveu levar adiante a política iniciada pela extinta RDA.
Seguiu-se então um dos fenômenos mais surpreendentes da Alemanha contemporânea, embora também um dos menos conhecidos: a chegada, em apenas 15 anos, de mais de 200 mil judeus, muitos se fixando em Berlim, cidade mítica no imaginário dos judeus soviéticos e onde vivia uma grande minoria de idioma russo.
Yuri Gurzhy, homem de 30 e poucos anos e cabeça raspada, originário de Kharkov (Ucrânia) e que faz parte das noitadas "Russendisco", não chegou a se aproximar da comunidade religiosa. Mas reivindica sua condição judaica, que se expressou plenamente em Berlim e que ele exprime em sua música. No álbum "Funky Jewish Sounds", Yuri e seus acólitos do grupo Shtetl Superstars entram no clima festivo original da música "klezmer".
"Meu avô tinha uma coleção fabulosa de discos de música iídiche, e aquele foi o som que acompanhou toda minha juventude. Os alemães a escutam religiosamente, como se fosse o som do Holocausto, dentro da representação trágica que se costuma fazer do povo judeu. Acontece que, na Europa Oriental do início do século, os músicos "klezmer" eram rebeldes, músicos errantes freqüentemente bêbados -mais ou menos o equivalente aos roqueiros dos anos 1950."
Como os Shtetl Superstars, Rimon -ou DJ Sugar Ray- eletriza as pistas de dança de Berlim. Mas seu público é bem diferente: ele é o grande animador das noitadas da comunidade judaica berlinense, depois de ter sido presidente do grêmio de estudantes judeus da Alemanha.
Ele chegou da Lituânia em 1990, quando tinha 13 anos. Instalado na "Nazilândia" sem saber uma palavra de alemão, seu início profissional foi difícil. Isolado na escola, encontrou sua salvação na comunidade judaica. "As atividades para os jovens foram essenciais para minha integração", contou. Com o passar do tempo, Rimon acabou enxergando a sociedade alemã com menos preconceitos e apaixonou-se por Berlim.
Jan Ofmanis já não tem idade para curtir os inúmeros clubes da cidade. Ex-professor de economia na Universidade de Riga, ele hoje desfruta de uma aposentadoria tranqüila às margens do Spree, recebendo dez vezes mais do que ganharia na Letônia. Antes de migrar para Berlim, dez anos atrás, esse veterano do Exército Vermelho já não se sentia à vontade em seu país natal.
"Depois da queda da União Soviética, a Letônia recuperou sua independência, mas a situação econômica e social era difícil. O clima político era tão xenófobo e sombrio que eu sentia medo." Ele, que teve 28 membros de sua família exterminados pelos nazistas durante a guerra, teria podido emigrar para Israel, onde vivem seu irmão e sua irmã. Mas não falava hebraico, e a mentalidade israelense lhe era estranha. "O alemão e a cultura germânica marcaram minha infância.
Aprendi a língua ainda pequeno, na escola judaica, e a falava com meus avós, cujas famílias eram originárias da Alemanha. Na Letônia, os judeus falavam o iídiche e o alemão, o idioma da alta cultura."
Entretanto a integração dos judeus da antiga União Soviética à comunidade berlinense não acontece sem alguns percalços. Jan Ofmanis é uma exceção. Os mais velhos, que falam mal o alemão, com freqüência se sentem muito isolados e se refugiam no seio da comunidade para encontrar um pouco de calor humano. As gerações intermediárias, frustradas e vítimas do desemprego terrível, devido ao não-reconhecimento de seus diplomas soviéticos, sofrem com sua desclassificação social.
Engenheiros, técnicos e economistas com freqüência têm de se resignarem a abrir pequenos comércios ou então se tornarem motoristas de táxi. Já os mais jovens, que chegaram a Berlim ainda crianças, costumam estar bem integrados, tanto na comunidade judaica quanto na sociedade alemã. Mas o pequeno mundo dos judeus berlinenses não é composto unicamente de pessoas vindas da ex-União Soviética.

Artistas e escritores
A cidade atrai artistas e escritores judeus de todo o mundo, alguns deles renomados, como Imre Kertész. Prêmio Nobel de Literatura e sobrevivente de Auschwitz, ele decidiu radicar-se em Berlim para buscar a inspiração que não conseguia encontrar em sua Hungria natal.
Nessa cidade que não esconde seu passado e em que a lembrança do Holocausto é onipresente, Kertész, cuja obra é marcada por inteiro pela experiência dos campos de concentração, mergulha fundo para traduzir suas feridas. Nesses últimos anos, no outono de suas vidas, velhos judeus alemães que tinham partido para o exílio décadas atrás também retornaram a Berlim. É como se não tivesse se apagado nunca a esperança de um dia retornar a sua cidade natal e fechar o parêntese doloroso.
Entre eles, Werner Max Finkelstein, octogenário brincalhão e fumante impenitente. Ele voltou a Berlim em 1999, após uma vida palpitante e repleta de aventuras, 60 anos depois de ter deixado a cidade em meio à catástrofe. Por que deixou Buenos Aires e seus filhos? "Nunca deixei de pensar na Alemanha. Durante essas décadas, meus pés estiveram na Argentina, meu coração, em Jerusalém, e minha cabeça, em Berlim. Após a guerra, eu só sentia raiva e decepção. Quando retornei pela primeira vez, nos anos 1980, minha impressão foi mitigada: o país tinha mudado, mas eu ainda me sentia perturbado quando cruzava com pessoas de minha geração ou mais velhas." A cada viagem que foi fazendo à Alemanha, seu apreço pelo país foi crescendo, e sua futura companheira, uma jovem alemã que conheceu na Argentina, foi quem o convenceu a dar o grande passo.
Uma nova geração de judeus alemães está surgindo na capital, a primeira desde a República de Weimar. Ou, mais precisamente, uma nova geração de judeus berlinenses, de tal forma esses jovens estão ligados a sua cidade de adoção, uma metrópole mais aberta e cosmopolita que as outras cidades alemãs. Assim, Oskar Melzer, príncipe da noite berlinense, dirige um dos clubes emblemáticos da cidade, o Week End, na Alexanderplatz. Tendo chegado a Berlim há dez anos, vindo de Munique, ele se sente muito à vontade na cidade e não vê nenhuma contradição entre ser judeu e berlinense.
"Em Berlim, encontrei minha "Heimat", minha pátria, minha casa. Não tenho problema nenhum de consciência em lhe dizer que sou alemão, que amo a língua e a cultura deste país. É essa a grande diferença entre minha geração e a de meus pais, nascidos logo após a guerra."
A jovem jornalista Shelly Kupferberg, nascida em Tel Aviv, também se sente à vontade na televisão alemã. Ela pode expressar livremente sua cultura dupla, judaico-alemã. Mesmo assim, a nova geração de judeus berlinenses não está livre de inquietações. O passado pode ressurgir muito rapidamente em qualquer conversa, expressão ou olhar.
Shelly Kupferberg admite: "Em 2006, a Copa do Mundo aconteceu num ambiente muito bem comportado. Mas ver os alemães reunidos em massa, exibindo sua bandeira com orgulho, me deixou perturbada. Eu imediatamente fiz associações. Acho que dentro de cada um de nós, mais ou menos escondida, ainda perdura a idéia de que Hitler ainda está presente, oculto na sombra. Somos hipersensíveis. É nossa doença judaica alemã".


A íntegra deste texto saiu no "Le Monde 2".
Tradução de Clara Allain.


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