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QUEM É WALNICE NOGUEIRA GALVÃO
Mario Sergio Conti
da Sucursal do Rio
Walnice Nogueira Galvão é uma intelectual rara num país em que raros intelectuais enfrentam o presente e sua vulgaridade: ela confronta a arte contemporânea, busca a sua raiz
social, estabelece juízos estéticos informados pela política e
não faz média com a indústria cultural.
Em termos de erudição, pesquisa e disposição para escrever, Walnice, como todos a chamam, vale uns 20 acadêmicos. Ela é responsável pela edição crítica de dois monumentos, inclusive pelo tamanho, da literatura nacional:
"Os Sertões" e "Grande Sertão: Veredas".
Para fazer a edição definitiva de "Os Sertões" ela se propôs a ler tudo o que Euclides da Cunha leu (livros, jornais,
revistas, manuais, panfletos) durante a vida inteira. Deve
ter conseguido. Não há referência, nome, logradouro, alusão, fonte escrita ou oral e variante de texto do livro que
Walnice não tenha remexido. Passou 20 anos estudando
"Os Sertões". Sabe tudo o que é possível saber a respeito de
Euclides.
A edição crítica de "Grande Sertão: Veredas" será publicada na França pela prestigiosa coleção Archives. Seguindo o modelo da coleção, ela encomendou e editou ensaios
específicos sobre o romance. Walnice tem cinco livros publicados sobre Guimarães Rosa, tema de sua tese de doutoramento na USP. Sobre Euclides são sete livros.
Walnice não parece uma pesquisadora que passa a vida
enfurnada em arquivos e bibliotecas e só fala das minudências de seu objeto de estudo. Extrovertida, conta casos
variados, pontuando-os com gestos amplos, pilhérias, ironias, risadas. É com sorrisos, no entanto, que impõe limites. Senta-se a cinco metros do entrevistador. Oferece-lhe
bebida, insta-o várias vezes a tomar mais um copo, mas ela
mesmo não bebe. Antecipa-se às perguntas indesejadas e
as formula de maneira marota. "Você não vai perguntar a
minha idade, não é?", por exemplo. E: "Você não vai perguntar quantos maridos eu tive, não é?". Quando as questões são feitas ela as responde na lata, rindo alto: "Não vou
dizer minha idade nem morta" (parece ter uns 50 e poucos) e "Escreva que eu tive alguns maridos" (seus amigos
dizem que foram dois).
Walnice adora viajar, principalmente a Paris, onde morou, lecionou e vivem seu filho, pesquisador da área de matemática, e os dois netos. Já esteve em cinco continentes,
em congressos e debates universitários. "Os estudos literários também se globalizaram", diz.
Ela tem uma faceta espartana: entremeia dias de ginástica, numa academia ao lado do prédio onde mora nos Jardins, em São Paulo, com dias de caminhadas no parque
Ibirapuera.
Tem também seu lado ateniense: bom garfo e bom copo,
é capaz de organizar sozinha jantares para 20 pessoas. Gosta de conversar em torno de uma mesa inteligente, de assistir óperas (de preferência Mozart ou Wagner), de ir ao
cinema (Buñuel ou Godard).
No trabalho, é uma ateniense espartana. Para ela, nenhuma pesquisa é excessiva. Ela não vê exagero na última edição crítica de "Em Busca do Tempo Perdido", que resultou
em 7.000 páginas de texto, sendo que quase 5.000 são de
notas, variantes, rascunhos e esboços. "Daqui a um ou dois
séculos, sem o aparato crítico, boa parte das referências de
Proust estariam perdidas."
Pelos séculos afora, pois, enquanto houver interesse na
sociedade burguesa, mesmo que num arrabalde do sistema capitalista, lá estarão "Os Sertões" e "Grande Sertão"
-devidamente escorados nas pesquisas de Walnice.
Sua crítica visa o presente, busca uma dimensão social e
política. Em "As Formas do Falso" (ed. Perspectiva), ela argumenta que as ambiguidades de "Grande Sertão" expõem a ambiguidade do intelectual brasileiro, que, "preso
a seus privilégios (...), convive no mundo dos valores, mas
é tradicionalmente servidor do Estado; aqui existe e aqui
produz, mas de olho na última moda das agências centrais
da cultura".
Walnice voltou recentemente ao teatro Oficina, onde,
em 1968, ajudava a proteger os atores de "Roda Viva" dos
terroristas de extrema-direita ("fazia segurança", conforme o jargão da época). Voltou para falar de terrorismo,
chamada pelo líder do Oficina, José Celso Martinez Corrêa, que pretende encenar "Os Sertões", para um debate
sobre a guerra de Canudos e a do Afeganistão.
Ela discorreu sobre o fundamentalismo religioso de Antonio Conselheiro, a miséria do sertão, o mundo à parte
em que Canudos vivia, a satanização dos jagunços e a guerra de extermínio que a república moveu contra a Tróia de
Taipa. Falou também de "fundamentalismo do mercado",
da "satanização do islamismo" e da "guerra de extermínio" no Afeganistão.
"Sou uma criatura dos anos 60", diz Walnice. Nascida
em São Paulo, numa família de classe média que prezava a
cultura, fez o curso secundário no Mackenzie, passou no
vestibular da USP e um determinado dia atravessou a rua
Maria Antonia para estudar letras e ciências sociais. "Foi
como se eu entrasse num mundo novo, de estudo, discussões intelectuais e ativismo político", conta. "E eu lembro
que pensei: é essa vida que eu quero."
Esse mundo foi moldado pela geração da revista "Clima". Walnice teve aulas com Ruy Coelho, Décio de Almeida Prado, Gilda de Mello e Souza e Antonio Candido. Foi
aluna e assistente de Candido e o substituiu na cadeira de
teoria literária e literatura comparada.
Walnice tem empatia com o pop. É uma frequentadora
de locadoras de vídeo e shows de jazz. Assiste boa parte do
lixo produzido por Hollywood e acompanha a música popular brasileira. A empatia não a impede de criticar com
brio a indústria cultural.
Nessa área, ela tem um ensaio que marcou época. Foi escrito em 1973, seu título é "Amado: Respeitoso, Respeitável" e está no livro "Saco de Gatos" (ed. Duas Cidades). É
uma análise do romance "Tereza Batista Cansada de Guerra", lançado na época por Jorge Amado. Walnice fez picadinho do livro, o que não era pouca coisa: o escritor baiano
estava no auge do sucesso de público e boa parte da crítica
o respeitava. Ela demonstra como Jorge Amado, comandado pelo gosto do público, se comprazia na pornografia.
Com boas maneiras e boa lógica, chamava-o de sádico, voyeur, pedófilo e exibicionista.
Com o passar dos anos, o escritor afundou cada vez mais
no populismo pornográfico. E foi justamente esse o Jorge
Amado adotado pela televisão e o cinema, pontas-de-lança
da indústria cultural. Passaram-se quase 30 anos e o ensaio
de Walnice continua pertinente. Ela tem crescido como
crítica e Jorge Amado diminuído como romancista.
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