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Commodities por sapatos
Presidente Lula inicia amanhã
visita à China tentando reverter
um jogo
comercial
que o Brasil
já perdeu
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LUIZ FELIPE DE ALENCASTRO
COLUNISTA DA FOLHA
O ziguezague desta
viagem de Lula,
que foi primeiro à
Arábia Saudita, em
seguida à China
(amanhã) e depois à Turquia,
sublinha o intento particular
da diplomacia brasileira em cada um desses países.
A visita a Riad deve ser vista
no contexto dos planos sauditas de reconversão da economia do país no longo prazo. Até
2025, a Arábia Saudita pretende mudar sua base econômica,
reduzindo a proporção de gás e
petróleo -de 72% de suas exportações (em 2004) para 37%
(em 2024).
Paralelamente, o país conta
com a produção de energia nuclear para diminuir a dependência de eletricidade gerada
por hidrocarbonetos e ampliar
as usinas de dessalinização de
água.
O objetivo comercial brasileiro visa o plano de desenvolvimento que cria seis novos polos econômicos para reequilibrar o peso de Riad e Jidda, as
duas maiores cidades do país.
Estradas, portos marítimos,
zonas industriais e conglomerados urbanos são construídos
em torno desses novos centros.
Várias empreiteiras brasileiras
estão de olho nestes projetos.
No fim de maio, o presidente
do Saudi Arabia General Investment Authority, o equivalente saudita do BNDES, vem
ao Brasil.
No pano de fundo, há o desejo da Arábia Saudita de se afastar da tutela americana, acentuada desde a queda do xá Reza
Pahlevi, do Irã, em 1979 -até
então, o principal aliado de
Washington na região.
Depois de viajar de Riad para
Pequim, Lula visita a Turquia.
Em 1865, quando o imã Abdurrahman al Baghdádi chegou ao
Rio de Janeiro vindo de Istambul, houve desfiles militares e
salva de canhões para saudar os
dois vapores da Marinha otomana que o traziam.
Vaticano muçulmano
O imã ficou três anos no Brasil e deixou um interessante relato sobre o islamismo oculto
dos negros e escravos brasileiros (Paulo Daniel Farah, "Deleite do Estrangeiro em Tudo o
Que É Espantoso e Maravilhoso - Estudo de um Relato de
Viagem Bagdali", Biaspla,
2007).
Na época, Istambul era o Vaticano dos muçulmanos, e os
otomanos e seus imãs dominavam um conglomerado internacional que impressionava o
império do Brasil. Depois, o império otomano foi esquartejado. Sobrou a Turquia, entalada
na Guerra Fria como aliada privilegiada dos EUA às portas da
União Soviética.
Acabada a União Soviética, as
repúblicas islâmicas do Cáucaso se fizeram independentes, e
a Turquia retomou influência
na região.
A ponto de se falar agora de
um neo-otomanismo, praticado por um governo turco que se
liga ao Azerbaijão, país-chave
do petróleo do mar Cáspio, e
marca presença no espaço do
antigo império otomano.
Ahmed Davutoglu, ativo ministro do exterior turco, se
aproxima da Armênia, do Iraque e do Irã, ao mesmo tempo
em que promove discretos encontros entre diplomatas sírios
e israelenses.
Enjeitada pela União Europeia, a Turquia, porém, guarda
sua posição estratégica entre o
Oriente e o Ocidente. Certa ou
errada, a aspiração do Brasil de
se posicionar como um dos mediadores da crise no Oriente
Médio implica um contato direto com o governo turco.
Em todo este périplo, é obviamente a ida do presidente a
Pequim, de amanhã a quarta,
que terá mais destaque.
Quando estabelecem analogias entre a crise de 1929 e a
atual, os especialistas sublinham três diferenças que fazem as perspectivas presentes
parecerem menos sombrias.
A primeira é no plano social:
os sistemas nacionais de seguridade criados nas últimas décadas amortecem os efeitos
mais nocivos da crise junto da
massa dos trabalhadores.
A segunda é de natureza bancária, e conduz os Bancos Centrais a refinanciar abundantemente o sistema bancário para
amenizar a contração de crédito que transformou a crise financeira de 1929 numa longa
depressão econômica.
A terceira diferença se refere
à geopolítica. Em 1929, a China
pesava pouco na economia
mundial e no concerto das nações. Hoje, o país aparece como
um dos pilares da ordem internacional e é a terceira economia do mundo, atrás dos EUA e
do Japão.
Além disso, ao contrário dos
dois primeiros, ela vem atravessando a crise sem muitos
contratempos.
Dupla dinâmica
Para muitos, a China se
transformou na tábua de salvação do capitalismo. Zbigniew
Brzezinski, ex-conselheiro de
Segurança Nacional do ex-presidente Jimmy Carter e influente conselheiro de Barack
Obama, é mais concreto: para
ele, só a China pode ajudar a
conter o declínio da hegemonia
mundial norte-americana.
Tal é a leitura que pode ser
feita do artigo que ele publicou
no "Financial Times" (em 13/
1/2009).
No texto, resumo de uma
conferência feita em Pequim,
Brzezinski propõe a criação de
um G2, formado pela dupla dinâmica EUA-China, que cuidaria de pôr as coisas em ordem.
Tanto nos contenciosos mais
urgentes, caso da Coreia do
Norte e do Irã, quanto na questão da proliferação nuclear ou
do efeito estufa. Brzezinski
pensa que o espírito conciliador de Obama casa perfeitamente com o conceito de
"mundo harmonioso" propalado pelo presidente Hu Jintao.
Acessoriamente, ele admite
que o G8 deveria se transformar em um G14 ou G16 para
melhor compartilhar as responsabilidades mundiais.
Como apontaram alguns
analistas, Brzezinski subentende um status quo onde a preponderância americana deixaria de ser desafiada pelo expansionismo diplomático e econômico chinês. Algo que a diplomacia brasileira conhece de
perto, sobretudo na África, e
em particular em Angola.
Maior credora do Tesouro
americano, cortejada pelo
mundo inteiro, a China pode
dar tempo ao tempo. Isso se
aplica também às suas relações
comerciais com o Brasil, atadas
a um anel de ferro em que as
commodities brasileiras são
trocadas por manufaturados
chineses.
Nesse sentido, o fato de que a
China tenha se tornado a maior
parceira comercial do Brasil
não muda grande coisa. Já perdemos esse jogo antes. A China
também. Só que agora ela é a
dona da bola.
LUIZ FELIPE DE ALENCASTRO é historiador e
professor na Universidade de Paris 4. É autor de
"O Trato dos Viventes" (Companhia das Letras)
e edita o blog sequenciasparisienses.blogspot.com. Escreve regularmente no Mais!.
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