|
Texto Anterior | Índice
+Sociedade
UM DOS PRINCIPAIS HISTORIADORES DO NAZISMO, O INGLÊS
IAN KERSHAW MOSTRA COMO HITLER CHEGOU AO PODER E EXPLICA
POR QUE O REGIME NÃO PROSPEROU EM OUTROS PAÍSES
O nazismo
não nasceu
do psiquismo ou de uma característica específica
da população alemã
|
MARTHA ZUBER
MARTINE FOURKIEN
Apesar da fama que
seus trabalhos sobre o nazismo lhe
garantiu na comunidade internacional, Ian Kershaw continua apegado a sua Inglaterra natal.
Ele concedeu a entrevista
abaixo na Universidade de
Sheffield, onde leciona história
contemporânea. Kershaw fala
de seus estudos sobre o nazismo com confiança tranquila,
revelando conhecimento aprofundado de inúmeras publicações sobre o assunto.
Como esse homem sossegado se tornou um dos maiores
especialistas no regime hitlerista? Um pouco por acaso, explica. Duas circunstâncias
orientaram sua escolha.
Por um lado, seu interesse
nas questões políticas desse
período e na história social; por
outro, as aulas de alemão que
cursou no Instituto Goethe de
Manchester.
Em 1972 e 1974, duas estadas
na Baviera reforçaram seu interesse pela civilização alemã.
Trabalhou no prestigioso
Instituto de História do Tempo
Presente, em Munique, dirigido pelo historiador alemão
Martin Broszat.
Dessa época nasceria o livro
"Popular Opinion and Political
Dissent in the Third Reich"
[Opinião Popular e Dissenso
Político no Terceiro Reich].
Uma coisa levou a outra, e
várias questões começaram a
despertar a curiosidade do historiador: como explicar o "sucesso" do nazismo? A população alemã era impregnada de
um antissemitismo mais profundo que o antijudaísmo tradicional dos países católicos?
Por que, entre todas as economias industriais e capitalistas, a Alemanha foi a única a ter
produzido uma ditadura fascista tão extrema?
PERGUNTA - Hitler elaborou uma
teoria política ou aproveitou circunstâncias favoráveis para instalar
sua ditadura? A quem, de fato, cabe
a responsabilidade pelo nazismo?
IAN KERSHAW - Hitler foi alguém
que tinha opiniões muito fortes
e decididas sobre qualquer assunto. Radicalizava tudo e podia igualmente bem se enfurecer rapidamente ou entusiasmar-se de maneira desmedida.
Em Viena, ele era solitário e
pouco sociável. Na Primeira
Guerra, foi considerado um soldado muito corajoso, mas um
pouco excêntrico, que se mantinha à margem dos outros.
Mas em 1919, em Munique,
ele se deu conta de que podia
ser ouvido. Ele diz em dois momentos do livro "Minha Luta":
"Então tomei consciência de
que eu podia falar". Essa visão
muito maniqueísta das coisas
se tornou um trunfo formidável quando ele começou a falar
com as pessoas nas cervejarias
de Munique.
Foi essa visão de conjunto,
taticamente muito flexível, que
lhe permitiu, nos anos 1920 e
1930, adaptar-se aos interesses
mais diversos -aqueles das diferentes facções nazistas e os
da população alemã.
Contudo seria restritivo demais dizer que a responsabilidade pelo nazismo recai sobre
um único indivíduo. É verdade
que Hitler tem mais responsabilidade que qualquer outra
pessoa, mas, à medida que a crise da democracia alemã foi se
desenvolvendo, ele foi atraindo
mais e mais pessoas.
Tampouco podemos dizer
que o nazismo tenha nascido
do psiquismo ou de uma característica específica da população alemã.
Nas eleições de 1932 e 1933,
13 milhões de alemães votaram
no partido nazista, número que
não representava mais do que
um terço dos eleitores. Quando
as eleições eram livres, Hitler
nunca recebeu mais de um terço dos votos, o que significa que
dois terços dos alemães não votaram nos nazistas.
O que se pode afirmar é que
Hitler conseguiu articular certas tendências da cultura política alemã e atrair mais e mais
pessoas. Portanto, a responsabilidade pelo regime nazista cabe, ao mesmo tempo, a Hitler, o
homem, e a certos setores da
sociedade -mas não à sociedade alemã em sua totalidade.
PERGUNTA - Então o sr. não aprova
a tese do americano Daniel J. Goldhagen, que defende que o conjunto da população alemã, fundamentalmente antissemita, foi cúmplice
do nazismo e do Holocausto?
KERSHAW - É evidente que havia um antissemitismo profundo na Alemanha muito antes da
Primeira Guerra. Talvez mais
do que na França, mas não mais
que em toda a Europa oriental
-na Polônia, Romênia, Hungria, Áustria, onde Hitler nasceu, e, sobretudo, Rússia.
Nos anos 1920, porém, esse
antissemitismo alemão era sobretudo passivo; o antissemitismo violento -e ativo- era
obra de uma pequena minoria.
É claro que essa minoria despertou entre 1929 e 1932, e os
eleitores que votaram no Partido Nacional Socialista alemão
(ou seja, os nazistas) sabiam
que estavam votando num partido que odiava os judeus.
Mas os estudos que foram
feitos sobre o voto nazista nesse período mostram que o antissemitismo não foi a motivação principal desses eleitores.
PERGUNTA - Foi Hitler quem decretou a "solução final"?
KERSHAW - Considerar que Hitler tenha decretado a solução
final equivaleria a dizer que essa ditadura funcionava segundo as leis ditadas por ele.
Acontece que o que constatamos ao estudar o período dos
anos 1930 é, antes, uma forma
pragmática de governar.
A radicalização do nazismo
se deu por etapas até 1941-42,
quando a Alemanha já estava
em plena guerra contra a União
Soviética, visando a erradicar o
"bolchevismo judaico".
Para os nazistas, judeus e
bolcheviques eram a mesma
coisa. Desde o primeiro dia da
operação Barbarossa (a invasão
da União Soviética pelas tropas
alemãs), não houve nenhuma
ordem explícita de Hitler.
É preciso destacar o papel
das SS como a organização
mais poderosa e mais radical do
Estado nazista. Foram elas que,
nessa fase, colocaram em prática a divisa de Hitler sobre ser
preciso livrar a Alemanha dos
judeus.
No verão de 1941, na União
Soviética invadida pelas tropas
alemãs, esse movimento se radicalizou. Os judeus começaram a ser fuzilados às dezenas
de milhares. Em setembro, 33
mil judeus foram mortos em
dois dias!
O que seria feito, então, com
os outros judeus da Europa? O
extermínio já tinha começado
na União Soviética; os chefes
nazistas pressionavam Hitler
para deportar os judeus austríacos e alemães para o leste, e
Hitler deu sinal verde. Em seguida, o mesmo passou a ser
feito com os judeus da Europa
ocidental (incluindo a França).
Os massacres foram o resultado de um processo que se desenrolou por etapas. Hitler tinha uma visão geral das coisas,
mas deixava os outros agirem
em seu lugar.
Não pode haver dúvida quanto a sua responsabilidade nem
quanto ao fato de ele ter sido
um antissemita fanático. Mas
foi o sistema nazista, com sua
radicalização progressiva, que
levaria ao genocídio dos judeus.
PERGUNTA - Em que Hitler, como o
sr. diz em seus trabalhos, foi um líder carismático?
KERSHAW - É preciso entender
a palavra "carismático" em seu
sentido técnico, e não no sentido usual que assumiu hoje,
quando falamos do carisma de
um astro da música pop ou até
mesmo de John F. Kennedy.
Para o sociólogo Max Weber,
o carisma significa que uma comunidade se investe em uma
pessoa e atribui a ela certo número de qualidades heroicas. O
que retiro de Weber é que o indivíduo não necessariamente
possui essas qualidades que os
outros enxergam nele.
No caso de Hitler, por que esse homem que descrevemos como estando à margem da sociedade, ao mesmo tempo excêntrico e tão voluntarista, começa
a ser ouvido por certas pessoas?
Porque ele responde às aspirações delas.
Na sociedade alemã dos anos
1920, as pessoas que nunca tinham ouvido falar em Hitler
consideravam que o regime era
corrompido pelos políticos,
que a Alemanha estava afundando e que ela precisava de
um grande líder como Bismarck ou Frederico, o Grande
-alguém que pudesse salvar o
país dessa terrível crise política
e econômica e que permitisse
um renascimento nacional.
Foi assim que as pessoas começaram a acreditar em Hitler.
Para um megalomaníaco como ele, que naquele momento
já conquistara muita autoconfiança, o caminho estava traçado: o grande personagem que
salvaria a Alemanha era ele.
Ele ocupava o ápice de um
sistema, tendo por missão alcançar certos objetivos.
Mas, por trás disso, era submetido a pressões de diferentes
facções -entre as quais é preciso destacar o papel poderoso do
Exército, que até 1938 teve exatamente os mesmos objetivos
de expansão militar que Hitler,
embora a maioria dos oficiais
não fosse nazista.
Durante muito tempo, os objetivos dos nazistas mais ou
menos coincidiram com os de
grande número de nacionalistas alemães que faziam parte
das elites tradicionais do país.
Podemos afirmar que as Forças Armadas, os grandes empresários, os grandes proprietários de terras e os altos funcionários apoiaram Hitler durante muito tempo, até que foi
tarde demais e se viram presos
numa armadilha, dentro do
culto a esse líder carismático.
PERGUNTA - Um modelo como esse
poderia funcionar em outro país?
KERSHAW - É preciso levar em
conta que uma das causas muito importantes para a ascensão
do nazismo foi a crise profunda
que atingiu a Alemanha nos
anos 1930.
A particularidade dessa crise
é que ela foi multiforme: crise
do sistema político e governamental, crise econômica, social
e ideológica, tudo isso associado a um sentimento de humilhação nacional devido à derrota na Primeira Guerra.
A Alemanha era um país em
que a democracia tinha raízes
frágeis, e o sistema político instalado após a guerra (a República de Weimar) nunca chegou a
ser verdadeiramente aceito,
nem por grande parte da população, nem pelas elites.
Quando chegou a depressão
mundial, em 1929, todo o sistema que passou a ser questionado, e não apenas certos setores.
Na Grã-Bretanha, por exemplo, de 1929 a 1931, houve uma
crise econômica e política, mas
não uma crise de Estado. Com a
exceção de uma pequena minoria muito radical, ninguém cogitava em questionar o rei ou o
Parlamento. O sistema era suficientemente estável para fazer
frente a uma crise.
Na França, os governos da
Terceira República (1870-1940) foram muito frágeis. Mas
a França estava no campo dos
vencedores (de 1914-18) e não
passava por uma crise de amplitude igual à dos países em
que o fascismo se instalou.
Na Alemanha, a necessidade
de uma regeneração nacional
era uma mensagem muito forte
da qual Hitler era o portador.
Alguns imaginaram que ele
não permaneceria no poder por
muito tempo, mas, sob o Terceiro Reich, a economia começou a crescer novamente, o
Exército foi reconstituído, a
Alemanha recuperou territórios que havia perdido.
Os ingleses e os franceses se
mostraram muito fracos diante
de Hitler, que foi se fortalecendo mais e mais. Diante disso, os
alemães que hesitavam ou que
não gostavam de Hitler se uniram à sua volta. E a dinâmica
carismática funcionava cada
vez melhor.
Quando a guerra chegou, já
era tarde para recuar -a ditadura já estava bem instalada
por um processo progressivo
de radicalização. O mito só desabou com a derrota, quando o
sistema se audodestruiu depois
de ter exterminado mais de 5
milhões de judeus.
A íntegra desta entrevista saiu na revista francesa "Sciences Humaines".
Tradução de Clara Allain.
Folha Online
Leia mais sobre o debate
em torno do nazismo, que
divide os historiadores em
"intencionalistas" e
"funcionalistas", em
www.folha.com.br/091331
Texto Anterior: +Lançamentos Índice
|