São Paulo, domingo, 17 de maio de 1998

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Antídoto à paralisia


O sociólogo alemão Ulrich Beck renova o debate sobre as políticas da modernidade


BRUNO LATOUR
especial para a Folha

"O deus da modernidade plenamente estabelecida é a dúvida -a solidão primeva da pessoa confrontada apenas consigo mesma e o seu fracasso refletido. A dádiva final que esse deus reserva para aqueles cujo propósito consiste em ser-lhe semelhante é a dúvida. Ela, e talvez somente ela, torna possível transferir o dogmatismo do modo de vida e produção industrial para a autolimitação refletida dos modos de vida e produção pós-industriais."
Esta é a surpreendente afirmação do sociólogo alemão Ulrich Beck, no seu importante livro sobre a reinvenção da política (1). Beck é insólito na sociologia. Primeiro, coisa assombrosa para um sociólogo alemão, ele escreve num estilo incisivo! Depois, ele foi praticamente o único, nas ciências sociais, a ter percebido que a crise ecológica obrigava a repensar, de cima a baixo, a teoria sociológica, e não só as relações do mundo social com a "natureza". Num livro anterior, ele havia mostrado que a noção de "manufactured risks" nos obrigava a redefinir a questão social não mais como uma distribuição de bens, mas como uma repartição de males! (2) E, finalmente, ele é um dos únicos a terem constatado que, ao se modificar a concepção da prática científica, era necessário que se modificassem todas as nossas definições sobre política.
Beck considera que os europeus, fundadores da modernidade, têm uma responsabilidade particular no que se pode chamar de "serviço pós-venda". Em vez de tentar estender a todo o globo a modernização, eles devem zelar para que essa última seja profundamente modificada. Depois da modernidade industrial, abre-se uma nova época, que ele chama ora "modernidade reflexiva", ora "segunda modernidade".
O termo "reflexivo" é deliberadamente ambíguo. Emprestado ao sociólogo inglês Anthony Giddens, amigo próximo de Beck (3), o adjetivo "reflexivo", acrescentado à palavra "modernidade", significa sobretudo que não podemos mais continuar a ser modernos, ainda que de boa-fé ou ingenuamente. Ao tornar-se reflexiva, a modernidade mete os pés em suas próprias dificuldades, de maneira semelhante a alguém que, ao descer uma escada, tenta tomar consciência de como consegue tal proeza. O caso mais típico, para Beck, é o que ele chama as "consequências inesperadas" da modernização ("side-effects"), denominadas "externalidades" pelos economistas, cujos efeitos, no passado, não eram levados em conta -a poluição, por exemplo, mas também as consequências sobre a saúde, o desemprego etc. Todas essas consequências inesperadas retornam na modernidade reflexiva, a exemplo de tantos outros efeitos bumerangues, e exigem que sejam levadas em conta. Não há mais externalidade, meio ambiente ou reservas -em suma, não há mais natureza.
Mas o termo "reflexivo" não tem apenas um sentido negativo, que associa a modernidade "fin-de-siècle" à pós-modernidade; há também um sentido positivo, chamado "a Nova Reforma" em seu livro: "O que se exige e se debate publicamente é, na verdade, equivalente a uma Reforma do dogmatismo". O que Lutero fez pela igreja, a segunda modernidade deve fazê-lo pela primeira (é certo que a metáfora não possui o mesmo sentido em países católicos como a França ou o Brasil). Tal "Reforma" funda-se em grande parte na ciência e na técnica. Aqui se esclarece a citação inicial do presente texto: Beck quer deslocar a dúvida (que eu chamaria de "experiência coletiva") para o centro da prática política das ciências e das técnicas. Isso nos arranca agradavelmente da paralisia pós-moderna e dos sonhos revolucionários do "socialismo científico", assim como dos devaneios (igualmente científicos) das leis indiscutíveis do liberalismo anglo-americano.
Beck não quer uma revolução, mas uma involução. Num trecho magnífico, ele descreve a ciência associada, enfim, à cultura democrática da dúvida: "Ao contrário de um preconceito muito difundido, a dúvida torna novamente tudo o que é possível -a ciência, o conhecimento, a crítica e a moralidade- apenas diferente, reduzindo a sua escala, tornando-o mais tateante, pessoal, colorido e aberto ao aprendizado. Por isso ela é também mais curiosa, mais sensível às coisas que lhe são opostas, insuspeitas e incompatíveis, e tudo isso com a tolerância baseada na certeza última do erro."
Todo interesse de seu livro está em tornar positivo cada elemento que o pós-modernismo -ainda impregnado de sonhos da primeira modernidade- toma como negativo. Daí a formidável energia liberada pelo livro, mesmo que as soluções pareçam muitas vezes utópicas ou que o autor assuma ares de profeta de uma nova modernidade ainda imatura, reproduzindo assim o pecadilho da sociologia clássica, que pretende sempre falar no lugar dos próprios agentes.
A hipótese mais fecunda do livro, do ponto de vista das ciências políticas, é a que obriga a rever inteiramente o tema marxista do "enfraquecimento do Estado": "Isso é mais do que um simples apelo à redefinição dos campos de responsabilidade dos governos; é a questão radical de se algumas tarefas aparentemente "eternas", e as instituições com jurisdição sobre elas, sobreviveram a seu uso prático. A política reflexiva, com isso, não significa somente uma reinvenção, mas também um esvaziamento da política -a morte das instituições."
Nada prova, de fato, que cunhar moeda, ocupar um território, manter um exército, definir uma política industrial sejam para sempre as funções essenciais do Estado. Pelo contrário, afirma Beck, tão logo uma atividade se ache instalada e codificada, é preciso, segundo ele, delegá-la ao chamado domínio da "subpolítica", ou seja, à sociedade civil. O Estado não deve desaparecer. Ao contrário, ele deve concentrar todos seus esforços para dar voz àquilo que não a possui -àquelas consequências inesperadas e àqueles riscos futuros, que a cultura da dúvida e da experiência não pára de manifestar a cada dia.
A força dessa política de "centro-esquerda" que Beck e Giddens, conselheiro próximo de Tony Blair, empenham-se em construir não é desprezível. Oferecer à modernidade uma segunda chance é o único meio de evitar o que ele denomina a "contra-modernidade" -nome dado ao que Deleuze e Guattari chamavam a "reterritorialização" e que consiste em "fabricar artificialmente a certeza" para dar cabo da sociedade do risco. O fundamentalismo -na religião, na economia e na ciência- ameaça a modernidade, ou melhor, sempre acompanhou (como seu duplo) a empreitada da primeira modernização.
Para os franceses que, fato curioso, exportaram para o mundo inteiro a pós-modernidade sem jamais tê-la praticado em seu próprio solo e que permanecem, desse modo, fortemente apegados aos sonhos da primeira modernidade, esse livro do sociólogo alemão oferece uma ocasião utilíssima para saírem de seu marasmo. Penso que o mesmo vale para os brasileiros: Beck procura descobrir a via intermediária que permitiria arrematar a modernização, em todos os sentidos do termo "arrematar", ou seja, dar-lhe um fim e completá-la.

Notas: 1. Ulrich Beck, "The Reinvention of Politics - Rethinking Modernity in the Global Social Order", Polity Press, Londres, 1997 (original alemão de 1993).
2. Ulrich Beck, "Risk Society - Towards a New Modernity", Sage, Londres, 1992.
3. Ver, em especial, Anthony Giddens, "Beyond Left and Right - The Future of Radical Politics", Polity Press, Londres, 1994.


Bruno Latour é sociólogo e pesquisador da ciência francês, autor entre outros de "A Vida de Laboratório" (Relume-Dumará) e "Jamais Fomos Tão Modernos" (Ed. 34).
Tradução de José Marcos Macedo.



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