São Paulo, domingo, 17 de maio de 1998

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LIVROS
À imagem de Deus


Ernst Kantorowicz analisa a natureza do poder real na Idade Média


HILÁRIO FRANCO JÚNIOR
especial para a Folha

Bill Clinton pode decidir sobre seu comportamento sexual, como qualquer cidadão norte-americano, ou, sendo o máximo governante do país, sua vida privada necessariamente entra na alçada da "res" pública? O debate, recente e intenso, ainda está em aberto nos Estados Unidos. Mas dois anos antes, na França, nas cerimônias oficiais que cercaram a morte de François Mitterrand, ficou explicitado o que todos sabiam: a dupla vida familiar do ex-presidente. O fato, no entanto, não suscitou maiores polêmicas. Essas diversas reações nacionais a circunstâncias semelhantes refletem as diferenças entre o sistema de valores anglo-saxão e o latino? Ou, dito de outra forma, entre o rigorismo moral protestante e uma certa permissividade católica? Sim, mas essa abordagem ampla pouco explica, se não passarmos a outra mais específica, que considere o tratamento histórico dado em cada caso à concepção política vinda da... Idade Média.
Essa constatação talvez surpreendente vem a propósito do lançamento entre nós, com 40 anos de atraso, de um grande clássico da história do pensamento político e da história medieval, "Os Dois Corpos do Rei", do judeu alemão Ernst Kantorowicz, que, fugindo do nazismo, radicou-se nos Estados Unidos, onde viveu até sua morte em 1963. Livro extraordinário, cuja enorme erudição não deve assustar os não-especialistas. Pode-se mesmo dizer que, à semelhança de seu objeto de estudo, essa obra tem dois planos interligados, mas passíveis de se manifestarem isoladamente. Esses dois corpos do livro são o texto de quase 300 páginas, densas, mas claras, e as ricas notas de rodapé, que em mais de 200 páginas fornecem indicações bibliográficas e, com frequência, transcrevem excertos documentais pouco conhecidos.
O conceito analisado por Kantorowicz nasceu na teologia, aplicado a Cristo -Deus e homem-, foi transposto para o campo do direito e da política na Idade Média, e depois adotado pelos reis absolutistas nos tempos modernos. O conceito de "Os Dois Corpos do Rei" pensa o governante como "pessoa geminada", dupla, da mesma forma que seu arquétipo cristão. Mas, enquanto Cristo é Deus e homem por natureza, o rei é mortal por natureza e imortal pela graça recebida no ato da unção, que lhe é administrada na cerimônia da coroação. O primeiro corpo permanece nos limites da carne, mas no segundo "o rei nunca morre". Se na transitoriedade da primeira pessoa um determinado rei aparenta desaparecer, ele permanece na essencialidade da segunda pessoa: "O rei morreu, viva o rei".
Sendo diferentes os corpos, passou-se a diferenciar as riquezas do rei enquanto pessoa física e pessoa jurídica. Estas acabaram por se tornar inalienáveis: não se podiam confundir os bens da Coroa com os do detentor da coroa. A partir disso, o fisco, palavra que desde o século 8º designava as propriedades pessoais do rei, começou lentamente a ser visto na esfera das "res" pública, dos bens perpétuos do segundo corpo do rei. Um jurista do século 7º observava que "o fisco é onipresente, e nisso se assemelha a Deus". Como este é imortal, como o rei na condição de Deus também o é, o mesmo pensador concluía que "o fisco nunca morre".
Se na vida interna da sociedade a tendência era separar de forma clara as esferas pública e privada, na relação com outras sociedades elas deviam permanecer solidamente interligadas para subsistência tanto de uma quanto de outra. Assim, "pátria" deixou de indicar apenas o local de nascimento para se tornar objeto de devoção política e emoção semi-religiosa. Mistura bombástica, que desde princípios do século 19 origina toda uma propaganda patriótica e leva um importante jurista francês da época a declarar que, na defesa da pátria, é "antes mérito que crime um homem matar seu próprio pai".
Temas complexos e na aparência demasiado acadêmicos, mas que continuam atuais e férteis para que se pense a respeito de fatos como os que relembrávamos no início desses comentários. Também no Brasil, onde tanto os políticos quanto os cidadãos comuns parecem sempre propensos a misturar o publico e o privado, a teoria dos "Dois Corpos" é um interessante material de reflexão. E o livro de Kantorowicz é o melhor guia possível para tanto.


Hilário Franco Júnior é professor de história na USP e autor, entre outros, de "A Eva Barbada" e "Ensaios de Mitologia Medieval" (Edusp).



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