São Paulo, domingo, 17 de junho de 2007

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+ Memória

Filósofo, poeta e amigo

O alemão Jürgen Habermas relembra o pensador pragmatista americano Richard Rorty, morto no dia 8

JÜRGEN HABERMAS

Recebi a notícia por e-mail, faz quase um ano. Como tantas vezes nos últimos anos, Rorty expressava seu desconsolo diante de [George W.] Bush, o "presidente da guerra" cujas políticas tanto afligiam um patriota como ele, que sempre quisera "realizar" seu país.
Depois de três ou quatro parágrafos de análise sarcástica, vinha a frase inesperada: "Mas o fato é que estou com a mesma doença que matou Derrida". Como se quisesse atenuar o choque, ele acrescentava que, segundo sua filha, esse tipo de câncer parece típico de quem "lê muito Heidegger".
Três décadas e meia atrás, Richard Rorty livrou-se do corselete de uma profissão cujas convenções haviam se tornado estreitas demais para ele. Não o fez para se furtar à disciplina do pensamento analítico, mas para levar a filosofia a caminhos ainda não explorados.

Criatividade
Rorty sabia manejar magistralmente o aparato da nossa profissão; em duelos com os melhores entre seus pares -como Donald Davidson, Hilary Putnam ou Daniel Dennett-, ele era uma fonte inesgotável de argumentos sutis e sofisticados. Mas ele jamais esqueceu que a filosofia -a par das objeções dos colegas- não pode deixar de lado os problemas com que a vida nos depara.
Entre os filósofos contemporâneos, não conheço nenhum que se igualasse a Rorty na capacidade de confrontar seus colegas -e não apenas seus colegas- com novas perspectivas, novas intuições e novas fórmulas.
Essa criatividade espantosa deve muito ao espírito do poeta que deixara de se esconder atrás do filósofo acadêmico bem como ao brio retórico e à prosa impecável de um autor sempre disposto a chocar seus leitores com estratégias inauditas de representação, conceitos inesperados e novos vocabulários -um dos termos favoritos de Rorty. A arte ensaística de Rorty cobria toda a gama entre Friedrich Schlegel [1772-1829] e o surrealismo.

Orquídea selvagem
A ironia e a paixão, o tom jocoso e polêmico de um intelectual que revolucionou nossos modos de pensar e influenciou gente em todas as partes do mundo -tudo isso sugere um temperamento robusto. Mas essa impressão não faz justiça à natureza gentil de um homem muitas vezes tímido e reservado -e sempre sensível aos demais.
Um breve texto autobiográfico de Rorty traz o título de "Trotsky e as Orquídeas Selvagens" (disponível em
www.philosophy.uncc.edu/mleldrid/cmt/rrtwo.html). Rorty conta que, quando rapaz, gostava de caminhar pelas colinas em flor do noroeste de Nova Jersey e sentir o perfume poderoso das orquídeas.
Por essa mesma época, descobriu um livro fascinante na biblioteca de seus pais esquerdistas, uma defesa de Trótski contra Stálin. Assim nasceu a visão que o jovem Rorty levou consigo para os anos de universidade: a filosofia existe para reconciliar a beleza celestial das orquídeas com o sonho de justiça sobre a Terra.
Nada é sagrado para Rorty, o ironista. Quando lhe perguntaram, no fim da vida, sobre o "sagrado", o ateu rematado respondeu com palavras que fazem pensar no jovem Hegel: "Minha noção de sagrado se prende à esperança de que, em algum dia distante, nossos descendentes viverão numa civilização global em que o amor será a única lei".

Este texto saiu no "Süddeutsche Zeitung".Tradução de SAMUEL TITAN JR.


Alguns livros de Rorty
Para Realizar a América (ed. DPA)
A Filosofia e o Espelho da Natureza (Relume-Dumará)
Objetivismo, Relativismo e Verdade (Relume-Dumará)
Ensaios sobre Heidegger e Outros Escritos Filosóficos (Relume-Dumará)
Contra os Chefes, contra as Oligarquias (DPA)
Verdade e Progresso (Manole)
Ponto de Fuga

O colunista Jorge Coli está em férias



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