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A erva volúvel
Para o descobridor do princípio ativo da maconha, Raphael Mechoulam, a única coisa que impede os derivados da Cannabis de invadirem o mercado são os relações públicas da indústria farmacêutica
Efrain Patino/Reuters
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Policial caminha ao lado de pacotes de maconha, apreendidos em lote de uma tonelada na cidade de La Don Juana, na Colômbia |
RAFAEL GARCIA
DA REPORTAGEM LOCAL
O
potencial medicinal de derivados
da maconha já está
mais que evidente,
e as grandes empresas farmacêuticas só estão
se voltando para ele de maneira tímida "por uma questão de
relações públicas". Essa é a opinião do cientista que provavelmente é quem mais entende da
bioquímica da Cannabis no
mundo, Raphael Mechoulam,
da Universidade Hebraica de
Jerusalém. Ele diz acreditar,
afinal, que a planta vai triunfar.
Conhecido como descobridor do THC -tetrahidrocanabinol, a molécula responsável
pelo efeito psicoativo da planta-, o pesquisador bulgaro-israelense também foi o pioneiro
que elucidou o mecanismo de
funcionamento da maconha no
organismo, e deu origem a um
novo campo nas neurociências.
Quando Israel já pesquisava
a planta, na década de 1960, os
EUA ainda se recusavam a fazê-lo, alegando que a droga era
apenas "um problema da América do Sul". Enquanto químicos americanos tinham restrições para trabalhar, Mechoulam tinha liberdade para "experimentos caseiros", como o
primeiro bolo da história recheado com THC purificado.
Hoje, Mechoulam diz ser
contra o "uso aberto" da maconha, mas continua um dos defensores mais ativos do uso da
planta e do THC com fins medicinais. Seu último artigo
científico, na revista "Science",
descreve o mecanismo com
que o THC é capaz de controlar
uma alergia em camundongos.
O aspecto mais importante
do trabalho foi mostrar que o
derivado da maconha interfere
em mecanismos imunológicos
básicos. Moléculas canabinóides (derivadas da Cannabis),
portanto, têm bom potencial
terapêutico para tratar doenças inflamatórias, incluindo a
esclerose múltipla e a diabetes.
Vinte anos atrás, porém, a
despeito da descoberta do
THC, ninguém sabia muito
bem como a maconha age no
cérebro. E foi outra descoberta
de Mechoulam que permitiu
avançar no conhecimento. Em
1992, seu grupo identificou a
anandamida, uma molécula extremamente similar ao THC,
só que endógena: produzida
pelo próprio corpo humano.
Ao investigar a função dessa
substância e de outros canabinóides endógenos descobertos
em seguida, os cientistas constataram que eles têm ação não
apenas na psique, mas na regulação de dezenas de processos
fisiológicos. Ansiedade, apetite,
sono, estresse, dor, atividade
cardíaca, memória e depressão
são só alguns deles.
A descoberta da anandamida
e de seus receptores -as moléculas que ativam uma determinada função numa célula ao
captar os canabinóides- provocou uma verdadeira "febre"
na neurociência com o número
de estudos publicados sobre o
assunto subindo exponencialmente nos últimos 15 anos.
Em entrevista à Folha, Mechoulam diz o que espera do
estudo dos endocanabinóides e
conta como tudo começou.
FOLHA - Seu último trabalho mostra que os canabinóides controlam
uma dermatite crônica. Já dá para
saber se a gama de inflamações tratáveis por derivados de Cannabis é
mais abrangente que isso?
RAPHAEL MECHOULAM - Sim. Definitivamente, inflamação é uma
coisa na qual os canabinóides
são importantes, e não são apenas aquelas paras a quais se viu
isso no momento. Nós já tínhamos descoberto há uns dois
anos que o 2AG -um dos canabinóides endógenos- reduz o
nível do chamado fator de necrose tumoral, que é uma proteína central em inflamação. E
acreditamos que ainda existam
outros também.
FOLHA - Se os canabinóides têm
papel em inflamação, eles podem
ser usados contra doenças auto-imunes [em que o sistema imune
ataca o próprio organismo]?
MECHOULAM - Definitivamente,
sim. Quando descobrimos que
esse composto exógeno -o canabidiol vem da planta, não do
nosso cérebro- age em artrite
reumatóide, uma doença auto-imune, fomos analisar outras.
Uma delas, claro, foi a diabetes.
Quando pegamos canabidiol e
demos para uma linhagem especial de camundongos que desenvolve diabetes, só 30% deles
desenvolveram a doença.
FOLHA - O sr. diz que há relatos
muito antigos de uso da maconha
como antiinflamatório. Porque a
ciência demorou tanto para começar a investigar as razões disso?
MECHOULAM - De fato, levou
muito tempo. A primeira indicação de uso desse composto
como antiinflamatório data de
alguns milhares de anos. Dá para achar indicações na literatura chinesa, romana e grega.
Eles pegavam a raiz, colocavam
na água e, depois de algumas
horas, colocavam na área inflamada, que era então afetada.
Por que demorou tanto para
algo se desenvolver a partir daí?
A razão é que farmacólogos e
clínicos gostam de trabalhar
com compostos purificados,
porque do contrário o trabalho
não pode ser reproduzido. Se
você usar uma mistura, você
não sabe direito o que tem em
mãos. Se publicar isso num periódico científico, não vai chamar muita atenção, porque é
uma mistura muito bruta.
Até que os compostos da
Cannabis fossem identificados,
havia muito pouco trabalho
moderno em canabinóides.
Nós identificamos a maioria
deles nos anos 1960. Uma vez
que esses compostos se tornaram disponíveis, geraram um
volume de trabalho enorme.
FOLHA - Ainda assim, químicos dizem que isolar o THC não era fácil.
MECHOULAM - Sim. Mas foi uma
questão de tecnologia. Só isso.
A morfina foi isolada do ópio há
uns cem anos, e a cocaína foi
identificada nas folhas de coca
150 anos atrás. A razão pela
qual os canabinóides ainda não
tinham sido isolados é que eles
aparecem na natureza em uma
mistura muito, muito bruta
[em meio a muitas outras moléculas]. As pessoas não tinham
as técnicas para separar os
compostos puros.
FOLHA - Desde então, já se descobriu que canabinóides interferem
em diversas funções fisiológicas. O
sr. já tentou contar quantas são?
MECHOULAM - Não. Mas devem
ser uns 25 ou 30 eventos fisiológicos muito centrais, diferentes entre si, desde ansiedade
até desenvolvimento dos ossos.
Essencialmente, todos os grandes sistemas biológicos envolvem canabinóides endógenos.
Você pode perguntar: "Como é
possível que eles estejam envolvidos em tudo?".Isso pode
parecer estranho, mas não é
tanto, porque eles são encontrados no cérebro apenas onde
e quando são necessários. Por
exemplo: se você tem dor, os
endocanabinóides não estarão
presentes no cérebro em nível
maior. Eles vão ser encontrados, como resultado da dor,
apenas naquela área do cérebro
que tem a ver com a dor, e não
em outras.
FOLHA - O sr. isolou a anandamida
há 15 anos. Já se imaginava que o
campo de pesquisa cresceria tanto?
MECHOULAM - Eu acreditava
que poderia ser importante,
mas não tinha percebido que
deveria ser um constituinte tão
central. Nós tínhamos o THC
antes disso, que é um material
de uma planta, mas não sabíamos que tipo de ação os compostos endógenos teriam.
FOLHA - O nome anandamida foi
escolhido por causa do barato da
maconha, não?
MECHOULAM - É verdade.
"Ananda" em sânscrito quer dizer "alegria esplêndida".
FOLHA - Por que não escolheram
um nome em hebraico?
MECHOULAM - Nós tentamos
achar um, mas foi difícil. Há
muitos nomes que expressam
"tristeza" em hebraico, mas
não muitos para "alegria". (Risos.) Nós tiramos um do sânscrito porque os indianos já
usam a Cannabis há milênios.
FOLHA - A maconha está hoje na
chamada Lista 4 da Convenção Única de Narcóticos das Nações Unidas,
de 1961, junto com a cocaína e heroína. Para efeito de diplomacia, a
maconha é considerada "perigosa"
e "sem propriedades médicas". Como o sr. vê essa situação?
MECHOULAM - Eu acho uma piada a maconha e a heroína receberem o mesmo tratamento.
Não faz sentido cientificamente e não faz sentido do ponto de
vista médico. Obviamente, heroína e cocaína são extremamente perigosas e devem continuar na lista, mas com a maconha há um problema. Não
sou a favor do uso aberto da
maconha. Isso ainda é uma coisa problemática. Pessoalmente, eu gostaria que pudéssemos
parar com o uso de tabaco. O cigarro é muito ruim, mas é algo
que não dá mais para deter.
O problema com muitas drogas é social, e cada país tem de
tomar suas decisões. Por outro
lado, deveria ser permitido administrar a maconha -de uma
ou outra forma- como um
agente medicamentoso, porque em algumas doença ela é
excelente. Eu forneço THC líquido, em azeite de oliva, para o
hospital ao qual sou associado,
e os médicos têm permissão para prescrevê-lo em diversos casos, administrado sob a língua.
Isso é regulamentado pelo nosso Ministério da Saúde, que está satisfeito em me dar apoio.
Se um paciente acha que sua
doença pode ser tratada assim,
ele solicita ao ministério, com
apoio de seu médico, que tem
de confirmar que a droga que a
maconha vai substituir não é
tão eficaz. Aí o ministério pode
liberar. Usamos tanto THC para ser aplicado abaixo da língua
quanto maconha para fumar.
FOLHA - Alguns médicos dizem
que fumá-la é mais nocivo.
MECHOULAM - Não conheço casos em que ela tenha causado
muitos problemas, porque ela é
bastante bem regulada. O THC
também. Damos o THC de maneira que ele não causa muitos
problemas. Começamos com
uma dose bem baixa, para o caso de a pessoa ser muito sensível. Se ela não for, já aumentamos a dose. Demos THC, por
exemplo, a crianças que estavam sendo submetidas a quimioterapia. Já usamos a droga
400 vezes com crianças e, em
todos os casos, vimos que náusea, vômito etc. pararam.
Damos também em alguns
casos de dor. Em câncer, damos
a pacientes de transplante de
medula, que é muito doloroso e
desagradável. Eles ficam satisfeitos. Usamos também em alguns casos de doença neurológica. Temos um caso de síndrome de Tourette em que a maconha fumada ajudou muito.
FOLHA - Você acha que ter se distanciado dos EUA e da Europa o ajudou a pesquisar maconha?
MECHOULAM - Sim. Nos anos
1960, as leis nos EUA eram tão
estritas que os laboratórios
acadêmicos não tinham como
fazer muita pesquisa com isso.
Tudo tinha de ser acompanhado por guardas etc., então ninguém estava mesmo fazendo
muita coisa. Na Europa, havia
um laboratório aqui e outro ali
-na Alemanha e na então
Tchecoslováquia- mas era só
isso. Hoje, há centenas de laboratórios nessa linha de estudo.
FOLHA - Como o sr. vê a questão do
vício no caso da maconha?
MECHOULAM - Acho que já está
bem claro que certamente ela
não é tão viciante, comparada
com cocaína, heroína, tabaco e
altas doses de álcool. Essa substâncias são muito viciantes. A
Cannabis é viciante, mas em
uma escala muito menor.
FOLHA - Quais doenças tendem a
se beneficiar mais rápido da pesquisa com Cannabis? Em quais seu grupo está trabalhando?
MECHOULAM - Há um bocado
delas. Estamos trabalhando em
osteoporose. Descobrimos que
o agonista do receptor do CB2 é
excelente em modelos animais
para osteoporose. Trabalhamos também, contra doenças
inflamatórias, com compostos
que não causa "barato"- mas
que são muito potentes.
Temos um trabalho com o receptor CB1 relacionado a doenças hepáticas. Muitas delas
causam a formação de compostos que afetam o cérebro. Descobrimos que esse efeito no cérebro pode ser bloqueado por
um agonista [molécula que ativa a célula ao se ligar num receptor] do CB2 ou um antagonista [molécula que bloqueia o
receptor] do CB1.
FOLHA - Não é estranho que grandes empresas farmacêuticas não estejam tentando ganhar dinheiro
com canabinóides?
MECHOULAM - No passado elas
não queriam mesmo, com algumas poucas exceções. É uma
questão de relações públicas:
não queriam ver nos jornais de
de manhã: "Merck fatura milhões com maconha". Apesar
de algumas grandes empresas
terem acumulado algum conhecimento, nunca fizeram nada de grande proporção.
A primeira companhia a fazer algo grande foi a Sanofi.
Eles trabalharam em um antagonista para combater a obesidade. A droga deles, o Rimonaband, foi aprovada na Europa, e
nas próximas semanas haverá
uma discussão para avaliar a
aprovação nos EUA. Eles dizem
que esperam faturar até US$ 4
bilhões com as vendas, se a
aprovação sair. Essa droga é um
antagonista, porque os canabinóides aumentam o apetite e,
se todo o sistema for bloqueado, acredita-se que as pessoas
perderam um pouco de peso.
No campo dos agonistas, há
uma droga sendo vendida por
uma empresa britânica, a GW,
na forma de spray no Canadá e
em poucos países da Europa.
Talvez seja aprovada nos EUA,
pelo seguinte motivo: a partir
de então eles saberão exatamente qual é o material administrado. Os americanos alegam -até com uma certa lógica
médica- que se eles aprovarem a maconha medicinal, eles
não saberão o que estará sendo
ingerido pelo corpo. Mas agora
eles se depararam com um
spray 50% THC e 50% canabidiol, que pode ser usado no lugar da maconha em si.
FOLHA - O barato, como efeito colateral, não atrapalha a aprovação?
Alguns farmacólogos falam em criar
moléculas canabinóides que não tenham efeito psicotrópico.
MECHOULAM - Se a molécula for
como o THC, que se liga ao receptor CB1, ela vai ter todos os
efeitos do barato. Eliminar isso
só será possível se alguém desenvolver compostos que se liguem ao CB1, mas não cruzem a
barreira entre o sangue e o cérebro, agindo só na periferia do
corpo. Mas a maioria das ações
do CB1 ocorre por meio do cérebro, então esses compostos
também não seriam eficazes.
Mas há muitos compostos
que estão sendo desenvolvidos
dessa maneira. O canabidiol,
por exemplo, é um antiinflamatório potente que não dá barato, porque não age por meio do
CB1. O mesmo vale para outros
derivados, como o canabigerol-DMH, que reduz a hipertensão
sem dar barato.
FOLHA - Deve ser uma pergunta estúpida: o sr. já provou maconha?
MECHOULAM - Ela faz sentido.
Quando eu e Yechiel Gaoni
identificamos o THC e conseguimos purificá-lo, nós o testamos em macacos, que reagiram
como esperávamos. Então, o
próximo passo eram os humanos. Nós tínhamos alguns amigos e reunimos dez, em casais.
Primeiro, cinco tomaram Cannabis e os outros cinco observaram. No final de semana seguinte, trocamos: os primeiros
tomaram placebo e os outros
tomaram Cannabis. Ninguém
sabia se estava tomando placebo ou a coisa real.
Depois, pegamos THC e colocamos num bolo que minha
mulher havia preparado, mas a
dose ficou um pouquinho alta
demais. Demos para cada um
entre 10 e 12 miligramas, quando deveríamos ter dado cerca
de 5. Depois de duas horas, o
efeito era evidente. Se você come THC, em vez de fumar, leva
mesmo mais tempo.
Quando o efeito aparece, é
definitivamente o barato, mas
também depende da pessoa.
Entre todos que tomaram, alguns simplesmente ficaram falando sem parar. Outros -minha mulher, por exemplo-
apenas sentaram-se numa poltrona e ficaram sonhando bons
sonhos, nada especial. Outro
diziam "não sinto nada" e, de
repente, em cinco minutos, começavam a rir como se algo
muito engraçado tivesse sido
dito. Depois de mais cinco minutos, paravam de rir.
Nós tivemos um caso ruim.
Uma jovem sucumbiu a suas
"defesas internas", por assim
dizer. Era uma pessoa muito
fechada e entrou numa espécie
de situação de ansiedade. Mas
os médicos do grupo cuidaram
dela, acalmaram-na e deram algum sedativo. Foi isso.
FOLHA - Ainda é possível trabalhar
nesse ambiente de informalidade?
MECHOULAM - Bom, eu tento fazer tudo de acordo com as regras, mas é claro que é preciso
conseguir as autorizações etc.
Mas é possível fazer praticamente qualquer experimento,
se ele fizer sentido. Eu nunca tive muitos problemas com isso,
na verdade. Até o governo americano está apoiando nosso trabalho. Eu tenho recebido um
auxílio do NIH (Instituto Nacional de Saúde dos EUA) desde 1965, sem parar, e eles nunca
interferiram no meu trabalho.
FOLHA - O sr. não disse que nessa
época eles dificultavam a pesquisa?
MECHOULAM - No início da década de 1960 eles não estavam
mesmo interessados em maconha. Diziam que era apenas um
"problema da América do Sul"
e não queriam apoiar pesquisa
nisso. Mas na época houve um
problema com um senador cujo
filho havia sido preso por fumar um baseado. Ele ligou para
o NIH perguntando se o rapaz
iria "perder a cabeça": queria
saber o que poderia acontecer.
Só que eles não sabiam nada,
e já eram os anos 1960. Eles
lembravam que eu tinha pedido um auxílio, me procuraram,
me entrevistaram e perguntaram se eu podia lhes fornecer
THC. Dei a eles todo o "suprimento mundial" de THC -algumas gramas, na época-, e
eles começaram a fazer pesquisa. Depois disso, ficaram muito
gratos e me deram o auxílio.
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