São Paulo, domingo, 17 de agosto de 1997.



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Karl Marx da era dos Beatles

Para o filósofo Alain Finkielkraut, Debord é impressionante e paranóico


MARCELO REZENDE
da Reportagem Local

Muitas vezes certeiro, ocasionalmente furioso, mas sempre um revolucionário das idéias, Guy Debord foi para os jovens franceses que leram "A Sociedade do Espetáculo" nos anos 60 uma espécie de "Karl Marx da era dos Beatles". Ele revitalizava o desejo da transformação radical da vida num mundo que, em plena Guerra Fria, saudava o nascimento da aldeia global.
Na aventura política de Debord, no entanto, o pregador do "meio é a massagem" (McLuhan) não passava do "imbecil mais convicto do século", o engajado filósofo Jean-Paul Sartre era apenas "o inqualificável", e Martin Heidegger mereceria o apelido de "pobre nazista", muito antes de qualquer denúncia contra o pensador alemão.
Debord, leitor inclassificável de Hegel e Marx -cujos conceitos lhe foram introduzidos por Henri Lefébvre-, irritava os comunistas e tornava coléricos os burgueses. As suas afrontas ao establishment intelectual e político o transformaram, para os jovens rebeldes, numa das mais atraentes personalidades da cultura francesa do pós-guerra.
"Eu li Guy Debord em 68 e fiquei muito impressionado", diz o francês Alain Finkielkraut, em entrevista à Folha, por telefone. Finkielkraut, autor de "A Derrota do Pensamento", fez parte, no pós-Maio, do que a imprensa de seus país qualificou de "novos filósofos". Uma definição para os novos nomes da academia que se recusavam a alinhar francamente à esquerda. "Acho que ele estava certo, antes de qualquer outro, sobre o espetáculo dos sistemas mediáticos."
Para Finkielkraut, a sociedade descrita por Debord esconderia, no entanto, um desarranjo do próprio autor com o mundo.
"Há algo de paranóico demais em seu pensamento; me parece que ele não foi ambíguo o suficiente em sua obra. Terminou acreditando em uma grande conspiração contra a vida."
Existe, para Finkielkraut, algo de descontrolado na idéia de um embate constante e necessário do homem contra a "alienação": "A oposição entre a vida e sua representação não me parece relevante, não me parece, enfim, convincente. Ele é um pensador impressionante, mas sistemático demais. Paranóico demais. Sua ilusão foi acreditar em uma conspiração de um sistema".
As impressões de Finkielkraut, 30 anos após o impacto do livro, expressam o desconforto que ainda toma conta da intelectualidade francesa quando se fala neste homem que chamava a si mesmo "um doutor em nada".
Suas idéias, no entanto, ressoam em boa parte do pensamento francês contemporâneo, como em Jean Baudrillard, apontado como um diluidor de Debord: "Não há nada de novo a ser dito sobre Guy Debord. Não é uma recusa, mas é muito complicado falar sobre ele", disse Baudrillard à Folha, depois de uma longa gargalhada.
Debord, que deixou raras imagens de si mesmo, acreditava ter nascido "virtualmente arruinado". Virtualmente, porque, no mesmo ano em que veio ao mundo, 1932, sua abastada família entrava em irreparável decadência econômica.
Seu pai morreu quando tinha quatro anos. Aos 18, encontrou o poeta Arthur Cravan, que lhe apresentou aos versos malditos de Lautréamont. Para sempre, Debord dirá aos poucos e raros conhecidos que ele nada mais era do que "um amigo de Cravan e Lautréamont".
Antes de ser um revolucionário, procurou o cinema (então, a paixão inicial é a imagem: seu grande ódio futuro), realizando "Uivos a Favor de Sade" (1952). Pouco antes da primeira projeção, declarava: "Não se trata de um filme. O cinema está morto. Não é mais possível ver filmes".
Debord realizará ainda outros, mas o cineasta não tomará o lugar do rebelde e teórico máximo da Internacional Situacionista, formada em 1957. À crítica da cultura do grupo, Debord acrescentará o olhar feroz contra o capitalismo. De certa maneira, concretizava o dever situacionista: "A atividade prática de construir situações, aquele que se engaja na construção de situações". Para tanto, não poupou panfletos, grafites, slogans, filmes 0e histórias em quadrinhos que visavam denunciar a "sociedade do espetáculo".
Em 1978, acusa uma ala da Democracia Cristã italiana de manipular as Brigadas Vermelhas durante o sequestro e morte do político Aldo Moro. Em 1984 é seu amigo e editor Gérard Lebovici que é morto. Colocou a culpa no "terrorismo internacional", mas, para a polícia francesa, ele próprio era um suspeito.
Debord matou-se em novembro de 1994, com um tiro no coração. Alguns de seus seguidores acreditam que foi assassinado. Outros dizem que apenas iludiu a mídia, e continua vivo, escondido em alguma parte. O mito de Debord, como afirmou a imprensa italiana após sua morte, havia se tornado "espetacular demais para as massas".



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