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Em "Além do Carnaval" o historiador americano James Green faz
um painel rigoroso do homossexualismo no Brasil neste século
Da belle époque à militância
Ronaldo Vainfas
especial para a Folha
Desde pelo menos o meado da
década de 70 e, sobretudo após
a de 80, tem se desenvolvido na
Europa e nos EUA o que poderíamos chamar de "gay and lesbian history", um ramo da história cultural dedicado ao estudo dos grupos homoeróticos em perspectiva histórica. São trabalhos de antropologia ou sociologia histórica preocupados em resgatar a história
da repressão desses grupos, seus códigos
culturais próprios e as sociabilidades travadas no seio das subculturas gays ao
longo do tempo. Bastaria citar a obra dirigida por J. Salvatore Licata no início
dos anos 1980, "Historical Perspectives
on Homosexuality" (Ed. Haworth) ou o
recentíssimo "Queer Sites - Gay Urban
Histories since 1600" (Ed. Routledge,
1999), organizado pelo historiador canadense David Higgs.
No Brasil se trata de um área de estudos ainda muito incipiente, exceto entre
antropólogos e sociólogos, com a exceção do etno-historiador Luiz Mott, há
décadas dedicado ao tema, sobretudo no
tocante aos tempos inquisitoriais. É muito bem-vindo, portanto, este "Além do
Carnaval", livro do historiador norte-americano James Green, autor que há
mais de 20 anos conhece e pesquisa no
Brasil. É livro sobre o "mundo gay" em
duas grandes cidades brasileiras, São
Paulo e, sobretudo, Rio de Janeiro, desde
as últimas décadas do século passado até
cerca de 1980, e nele encontramos, num texto primoroso, uma análise vertical
das comunidades de homossexuais num
período relativamente longo de nossa
história, considerando a velocidade da
mudança de padrões socioculturais
ocorrida neste século agonizante.
James Green se revela, aliás, muito
atento a essa variável na análise de seu
objeto, procurando verificá-la quer no
tocante aos padrões de estigma ou perseguição da homossexualidade, quer
quanto aos modelos de comportamento,
sociabilidade e identidade dos "homens
que procuravam outros homens para
aventuras sexuais", para usar uma expressão do autor. A linguagem do livro é
mesmo um dos pontos altos da obra, cuja tradução é também excelente, e não
apenas pela fluência da narrativa, como
pela precisão do vocabulário analítico e
descritivo, situado na fronteira entre o
linguajar das épocas estudadas e o aparato conceitual do historiador.
O resultado é excelente. Um livro muito documentado e cheio de originalidades, que procura examinar a representação e autoconstrução de um grupo específico: os praticantes do homoerotismo
desde a belle époque até os anos 80, tempo em que começaram a se organizar os
movimentos de luta pelos direitos dos
homossexuais no Brasil.
Nota-se, por sinal, a sistemática correlação entre o microtema e varáveis históricas globais: o processo de urbanização
e modernização do Rio e de São Paulo na
virada do século; a crise dos anos 20 e o
mundo no entreguerras; o pós-45, os
"revolucionários" anos 60 e as transformações das décadas mais recentes. É
com estilo e conhecimento de causa que
o autor passa da história geral para a análise microscópica de grupos ou indivíduos emblemáticos de seu objeto de estudo, dando mostra definitiva do grande
historiador que é.
O primeiro capítulo, "Os Prazeres nos
Parques do Rio de Janeiro na Belle Époque Brasileira, 1898-1914", trata de um
tempo em que nem por sonho os homossexuais ousavam assumir-se como
tais, salvo raras exceções, sendo objeto
de fortes estigmas e por vezes da perseguição policial. Utilizando, entre outras
fontes, as crônicas de João do Rio, Green
descortina as "esquinas do pecado", a
exemplo do afamado "point" do largo do
Rossio, onde ficava a praça da Constituição que o governo republicano rebatizou
de praça Tiradentes. Analisa, por outro
lado, a literatura estigmatizante, incluindo preciosas charges em que o homoerotismo era alvo de deboche. Examina, enfim, o que se poderia chamar de "protopornografia", como o "Rio Nu" e o audacioso conto "O Menino do Gouveia"
(1914), de Adolfo Caminha.
O capítulo seguinte, "Sexo e Vida Noturna, 1920-1945", mantém o assunto e o
tom, porém alarga a temporalidade e as
questões suscitadas por um mundo em
transformação. No que toca ao mundo
gay, desponta a análise do vocabulário
usual para designar os homossexuais, assimilado
aliás pelos próprios, desde
os antigos termos "sodomitas" e "fanchonos", que
caíram em desuso, até a
adoção do "viado", com i,
e "bicha", cuja origem localiza ali pelos anos 20-30. Desponta o
item sobre Madame Satã, "a rainha negra da boemia brasileira". Desponta a
análise da topografia do homoerotismo
masculino nas duas cidades: pensões, cinemas, banheiros públicos, o que Green
faz recorrendo a uma sociologia histórica do grupo pesquisado.
"Controle e Cura", título do terceiro
capítulo, versa sobre a literatura médica
das primeiras décadas do século, inspirada por intelectuais do porte de Cesare
Lombroso (1836-1909), "um dos pioneiros no campo da antropologia criminal".
E nisso vale lembrar a pesquisa de um
certo Leonídio Ribeiro, diretor de identificação da Polícia Civil do Distrito Federal nos anos 30, baseado na antropometria à moda lombrosiana, de 195 detidos
pela polícia por "atentado ao pudor".
Protótipo do "bicha"
Sua conclusão
foi a de que o protótipo do "bicha" era a
de "um homem jovem, de peso abaixo
da média, altura mediana e braços e pernas mais compridos do que o normal,
com um tórax pequeno". Supunha, sem
explicar o porquê, que o desenvolvimento dos ossos estava relacionado com o
sistema hormonal, daí com a sexualidade, provável razão de ter intitulado seu
estudo "Homossexualismo e Endocrinologia", texto ilustrado com fotos.
O quarto capítulo, "Novas Palavras,
Novos Espaços, Novas Identidades,
1945-1968", mantém a preocupação com
os espaços urbanos do homoerotismo,
mas verticaliza o tema da construção de
uma identidade "homossexual". Novos
espaços vêm à cena, como a Cinelândia
ou Copacabana, no Rio, sendo que na última, o "point" na praia ficava em frente
ao Copacabana Palace e era chamado pelos "entendidos" de "Bolsa de Valores"
-"pela qualidade dos encontros e flertes", esclarece Green, "que ocorriam lá".
Mas o ponto alto do capítulo é a discussão da
identidade, a lenta, mas
determinada, superação
do modelo "bicha/bofe",
o surgimento de uma literatura "doméstica" própria dos homossexuais,
como "Snob", que durou até 1969, e
"Gente Gay". É, talvez, o capítulo central
do livro.
"A Apropriação Homossexual do Carnaval Carioca" é quase um parêntesis
nesta narrativa linear-cronológica adotada pelo autor, texto no qual o autor recua ao início do século e avança até 70,
tendo como eixo central a idéia de que o
carnaval, seus espaços, ritos e festas, foi
sendo lentamente construído como um
lugar defensivo e afirmativo, embora
multifacetado, da identidade homoerótica. O capítulo final, assume como título o
lema "Abaixo a Repressão - Mais Amor e
Mais Tesão, 1969-1980", elegendo como
objeto a construção de uma identidade
afirmativa, o surgimento de movimentos e imprensa militantes.
Grande política
É especialmente
interessante a análise que faz o autor da
politização do movimento gay em seus
primórdios, inclusive no tocante à
"grande política", apesar do pouco engajamento dos homossexuais assumidos
na resistência ao regime militar e do
ocultamento da opção "homo" por parte
daqueles que se engajaram nessas militâncias. Tudo isso, vale dizer, sem prejuízo da reconstituição dos espaços gays no
cotidiano das cidades e de uma análise
sociohistórica rigorosa, que extrapola a
dimensão mais visível e deslumbrante
do mundo gay assumido.
Tem razão, pois, Robert Levine, renomado brasilianista, ao comentar que o livro de Green "traz uma contribuição
inestimável a uma área negligenciada da
história brasileira".
Além do Carnaval
541 págs., R$ 40,00
de James Green. Ed. Unesp (praça da Sé, 108, CEP 01001-900,
SP, tel. 0/xx/11/ 232-7171).
Ronaldo Vainfas é professor titular do departamento de história da Universidade Federal Fluminense e autor de "Trópico dos Pecados" (Nova
Fronteira).
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