|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
O racha do multiculturalismo
Surgido nos anos 70 para integrar as culturas, conceito chega ao século 21 isolando os indivíduos em comunidades
AMARTYA SEN
Tudo começou no Canadá, e sob os melhores auspícios. Em 1971
o Canadá foi o primeiro país do mundo a fazer do multiculturalismo uma
política oficial. A maioria dos
Estados membros da União
Européia não tardou a seguir
seu exemplo, tendo o Reino
Unido em sua vanguarda. O
multiculturalismo tornou-se o
grande conceito em voga em
todo o mundo.
Essa Idade de Ouro já faz
parte do passado, especialmente na Europa. Dinamarca e Países Baixos já inverteram suas
políticas oficiais; o Reino Unido está cheio de dúvidas sérias
a esse respeito, e a Alemanha e
a França estão céticas.
Onde reside o problema? Ele
se deve, sem dúvida, a um raciocínio incorreto. Não se deve
confundir, de um lado, a liberdade cultural -elemento fundamental da dignidade de todos os povos- e, de outro, a defesa e celebração de todas as
formas de legado cultural, sem
procurar saber se os indivíduos
envolvidos escolheriam essas
práticas de fato se tivessem a
possibilidade de fazer um exame crítico delas.
A liberdade cultural, bem
compreendida, consiste em saber resistir à aprovação sistemática das tradições passadas,
quando os indivíduos vêem razões para mudar seu modo de
vida. Se, no Reino Unido, uma
jovem filha de uma família imigrante conservadora quer sair
com um jovem inglês, ela faz
uma escolha quase irrepreensível em termos de liberdade
multicultural.
Monocultura plural
Em troca, a tentativa feita
por seus familiares de impedi-la de fazer o que ela quer é uma
reação muito pouco multicultural, já que denota um desejo
de manter as culturas isoladas
umas das outras, sob o que se
poderia chamar de uma forma
"monocultural plural". Acontece que, hoje, é exatamente essa
a posição dos pais que parecem
gozar da boa vontade dos "multiculturalistas" dedicados. A
história do multiculturalismo
no Reino Unido é muito interessante sob esse aspecto.
Após uma fase positiva de integração multicultural, sobreveio um período de separatismo e de confusão.
A Grã-Bretanha pós-colonial
esforçou-se ao máximo para integrar os imigrados, por meio
de um tratamento não-discriminatório em matéria de seguridade social e até mesmo de direito ao voto.
Duas confusões
Diante da história profundamente não-igualitária da imigração na Alemanha, na França
e em quase todo o resto da Europa, é preciso saudar a disposição do Reino Unido de proporcionar aos imigrantes em situação regular, no menor prazo
possível, os direitos econômicos, sociais e políticos que lhes
cabem. É claro que essa postura
teve seus pontos fracos, como
demonstraram os distúrbios de
1981 em Brixton e Birmingham.
Os problemas identificados
nessa época certamente não
desapareceram todos (a raça
continua a ser um elemento de
discriminação, assim como o
são a classe social ou o sexo),
mas, muito antes de "multiculturalismo" ter se tornado uma
palavra em moda, o país demonstrou um compromisso
constante em favor do tratamento igualitário de todos os
britânicos, independentemente de sua origem.
O que é trágico é que, à medida que o slogan multiculturalista foi se impondo, foi aumentando a confusão em torno de
suas exigências.
Trata-se essencialmente de
duas confusões. A primeira é
um amálgama entre conservadorismo cultural e liberdade
cultural. O fato de ter nascido
numa dada comunidade não
constitui, por si só, prova de liberdade cultural, pois não é
uma escolha ativa.
Em contrapartida, a decisão
de permanecer firmemente ligado ao modo de vida tradicional pode ser um exercício de liberdade, se essa escolha for feita após o estudo de outras opções possíveis.
Do mesmo modo, a decisão
de tomar distância (de maneira
sutil ou radical) dos comportamentos tradicionais, decisão
tomada após reflexão e raciocínio, é igualmente um ato de liberdade multicultural.
Cultura não é só religião
A segunda confusão consiste
em ignorar o fato de que, se a
religião pode ser um critério de
identidade importante para os
indivíduos (especialmente
quando eles podem optar livremente por abraçar ou rejeitar
as tradições herdadas ou adotadas), também existem outras
adesões e filiações -políticas,
sociais, econômicas- que as
pessoas têm o direito de manter. Sem contar que a cultura
não se resume à religião.
Assim, além da religião, a fórmula canadense menciona explicitamente a língua. Vale
lembrar, por exemplo, que os
bengaleses, hoje classificados
na categoria "muçulmanos britânicos", são originários de um
povo que conquistou sua independência à custa de luta (em
1971) não sobre bases religiosas, mas em nome da liberdade
lingüística e da laicidade.
Os responsáveis políticos
britânicos desenvolveram o hábito de tratar cada grupo de
correligionários como uma
"comunidade" que deve funcionar segundo costumes próprios
-desde que, é claro, sua prática
não deixe de ser "moderada".
Os porta-vozes religiosos das
populações imigradas parecem
desfrutar junto das autoridades
britânicas de um reconhecimento (e de um acesso aos salões do poder) de amplitude
inédita. Novas escolas religiosas são criadas com a benção e o
encorajamento do governo.
Aparentemente, este se
preocupa mais com o "equilíbrio" religioso sobretudo mecânico desejado por aqueles
que são descritos como "líderes
comunitários" do que com ensinar às crianças os conhecimentos básicos e a aprendizagem da razão. As escolas separadas, fenômeno de enclausuramento que, na Irlanda do
Norte, conseguiu apenas aumentar o abismo entre católicos e protestantes, passaram a
ser autorizadas e até mesmo, na
prática, encorajadas para outras parcelas da população britânica. Também lá elas serão
um fator de divisão.
O que é preciso hoje não é
abandonar o multiculturalismo
nem renunciar ao objetivo de
igualdade "quaisquer que sejam as origens raciais ou étnicas -a língua ou a opção religiosa- , mas dissipar essas
duas confusões que já causaram tantos problemas. Isso é
imperativo, não só porque a liberdade precisa ser levada em
conta mas para evitar a revolta
dos mais desfavorecidos, como
nos subúrbios franceses.
Assim, combateremos a
ameaça crescente dos pensamentos comunitaristas violentos, que avançam no Reino Unido e correm o risco de conduzir
a atos de brutalidade bárbara. É
importante reconhecer que os
primeiros êxitos do multiculturalismo no Reino Unido estiveram vinculados aos esforços
feitos pelo país não para separar, mas para integrar.
Este texto foi publicado no "Le Monde".
Tradução de Clara Allain.
Texto Anterior: Biblioteca Básica Próximo Texto: Nobel de Economia em 98, Sen lança livro nos EUA Índice
|