São Paulo, domingo, 17 de setembro de 2006

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O racha do multiculturalismo

Surgido nos anos 70 para integrar as culturas, conceito chega ao século 21 isolando os indivíduos em comunidades

AMARTYA SEN
Tudo começou no Canadá, e sob os melhores auspícios. Em 1971 o Canadá foi o primeiro país do mundo a fazer do multiculturalismo uma política oficial. A maioria dos Estados membros da União Européia não tardou a seguir seu exemplo, tendo o Reino Unido em sua vanguarda. O multiculturalismo tornou-se o grande conceito em voga em todo o mundo.
Essa Idade de Ouro já faz parte do passado, especialmente na Europa. Dinamarca e Países Baixos já inverteram suas políticas oficiais; o Reino Unido está cheio de dúvidas sérias a esse respeito, e a Alemanha e a França estão céticas. Onde reside o problema? Ele se deve, sem dúvida, a um raciocínio incorreto. Não se deve confundir, de um lado, a liberdade cultural -elemento fundamental da dignidade de todos os povos- e, de outro, a defesa e celebração de todas as formas de legado cultural, sem procurar saber se os indivíduos envolvidos escolheriam essas práticas de fato se tivessem a possibilidade de fazer um exame crítico delas.
A liberdade cultural, bem compreendida, consiste em saber resistir à aprovação sistemática das tradições passadas, quando os indivíduos vêem razões para mudar seu modo de vida. Se, no Reino Unido, uma jovem filha de uma família imigrante conservadora quer sair com um jovem inglês, ela faz uma escolha quase irrepreensível em termos de liberdade multicultural.

Monocultura plural
Em troca, a tentativa feita por seus familiares de impedi-la de fazer o que ela quer é uma reação muito pouco multicultural, já que denota um desejo de manter as culturas isoladas umas das outras, sob o que se poderia chamar de uma forma "monocultural plural". Acontece que, hoje, é exatamente essa a posição dos pais que parecem gozar da boa vontade dos "multiculturalistas" dedicados. A história do multiculturalismo no Reino Unido é muito interessante sob esse aspecto. Após uma fase positiva de integração multicultural, sobreveio um período de separatismo e de confusão. A Grã-Bretanha pós-colonial esforçou-se ao máximo para integrar os imigrados, por meio de um tratamento não-discriminatório em matéria de seguridade social e até mesmo de direito ao voto.

Duas confusões
Diante da história profundamente não-igualitária da imigração na Alemanha, na França e em quase todo o resto da Europa, é preciso saudar a disposição do Reino Unido de proporcionar aos imigrantes em situação regular, no menor prazo possível, os direitos econômicos, sociais e políticos que lhes cabem. É claro que essa postura teve seus pontos fracos, como demonstraram os distúrbios de 1981 em Brixton e Birmingham.
Os problemas identificados nessa época certamente não desapareceram todos (a raça continua a ser um elemento de discriminação, assim como o são a classe social ou o sexo), mas, muito antes de "multiculturalismo" ter se tornado uma palavra em moda, o país demonstrou um compromisso constante em favor do tratamento igualitário de todos os britânicos, independentemente de sua origem.
O que é trágico é que, à medida que o slogan multiculturalista foi se impondo, foi aumentando a confusão em torno de suas exigências. Trata-se essencialmente de duas confusões. A primeira é um amálgama entre conservadorismo cultural e liberdade cultural. O fato de ter nascido numa dada comunidade não constitui, por si só, prova de liberdade cultural, pois não é uma escolha ativa.
Em contrapartida, a decisão de permanecer firmemente ligado ao modo de vida tradicional pode ser um exercício de liberdade, se essa escolha for feita após o estudo de outras opções possíveis. Do mesmo modo, a decisão de tomar distância (de maneira sutil ou radical) dos comportamentos tradicionais, decisão tomada após reflexão e raciocínio, é igualmente um ato de liberdade multicultural.

Cultura não é só religião
A segunda confusão consiste em ignorar o fato de que, se a religião pode ser um critério de identidade importante para os indivíduos (especialmente quando eles podem optar livremente por abraçar ou rejeitar as tradições herdadas ou adotadas), também existem outras adesões e filiações -políticas, sociais, econômicas- que as pessoas têm o direito de manter. Sem contar que a cultura não se resume à religião.
Assim, além da religião, a fórmula canadense menciona explicitamente a língua. Vale lembrar, por exemplo, que os bengaleses, hoje classificados na categoria "muçulmanos britânicos", são originários de um povo que conquistou sua independência à custa de luta (em 1971) não sobre bases religiosas, mas em nome da liberdade lingüística e da laicidade.
Os responsáveis políticos britânicos desenvolveram o hábito de tratar cada grupo de correligionários como uma "comunidade" que deve funcionar segundo costumes próprios -desde que, é claro, sua prática não deixe de ser "moderada".
Os porta-vozes religiosos das populações imigradas parecem desfrutar junto das autoridades britânicas de um reconhecimento (e de um acesso aos salões do poder) de amplitude inédita. Novas escolas religiosas são criadas com a benção e o encorajamento do governo.
Aparentemente, este se preocupa mais com o "equilíbrio" religioso sobretudo mecânico desejado por aqueles que são descritos como "líderes comunitários" do que com ensinar às crianças os conhecimentos básicos e a aprendizagem da razão. As escolas separadas, fenômeno de enclausuramento que, na Irlanda do Norte, conseguiu apenas aumentar o abismo entre católicos e protestantes, passaram a ser autorizadas e até mesmo, na prática, encorajadas para outras parcelas da população britânica. Também lá elas serão um fator de divisão.
O que é preciso hoje não é abandonar o multiculturalismo nem renunciar ao objetivo de igualdade "quaisquer que sejam as origens raciais ou étnicas -a língua ou a opção religiosa- , mas dissipar essas duas confusões que já causaram tantos problemas. Isso é imperativo, não só porque a liberdade precisa ser levada em conta mas para evitar a revolta dos mais desfavorecidos, como nos subúrbios franceses.
Assim, combateremos a ameaça crescente dos pensamentos comunitaristas violentos, que avançam no Reino Unido e correm o risco de conduzir a atos de brutalidade bárbara. É importante reconhecer que os primeiros êxitos do multiculturalismo no Reino Unido estiveram vinculados aos esforços feitos pelo país não para separar, mas para integrar.


Este texto foi publicado no "Le Monde".
Tradução de Clara Allain.


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