São Paulo, Domingo, 17 de Outubro de 1999
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Intrigas no Itamaraty



Cabral fala sobre o episódio de seu afastamento da vida diplomática, em 53


HUMBERTO WERNECK
especial para a Folha

Homem de esquerda, eleitor de Luiz Inácio Lula da Silva no segundo turno das eleições presidenciais de 1989, provavelmente as últimas em que votou, o poeta João Cabral de Melo Neto não teve militância política, ostensiva pelo menos, em seus 79 anos de vida. Ainda assim, foi a certa altura denunciado como comunista, o que lhe custou dois anos de afastamento da carreira diplomática, à qual só conseguiu se reintegrar por decisão do Supremo Tribunal Federal. Explicavelmente, não gostava de falar sobre essa passagem de sua vida, e mais raramente ainda com a riqueza de detalhes que proporcionou a este repórter em novembro de 1987.
A história, que uma reportagem de capa da revista "Isto É" contaria sucintamente e cujos personagens já estão todos mortos, à exceção dos embaixadores aposentados Mário Calábria e Amaury Banhos Porto de Oliveira, teve início no final de 1952.
Nessa época, João Cabral, com 32 anos e quatro livros de poesia publicados ("Pedra do Sono", "O Engenheiro", "Psicologia da Composição" e "O Cão Sem Plumas"), trabalhava no consulado do Brasil em Londres. No Natal daquele ano, ele recebeu um cartão de seu colega e amigo Paulo Cotrim Rodrigues Pereira, que servia em Hamburgo, na Alemanha. Relapso no departamento epistolar, o poeta foi adiando a resposta. E, quando finalmente se dispôs a escrevê-la, "aí por fevereiro de 1953", tanto tempo se passara que ele se julgou na obrigação de fazer algo mais que um cartão.
"Fiz uma carta de brincadeira", lembrava-se João Cabral muitos anos depois. "Falava de um sobrinho do Paulo Cotrim, meu afilhado, que por se chamar Luiz Carlos acabou sendo identificado, por quem leu a carta, como (o líder comunista) Luiz Carlos Prestes. Dizia, se não me engano, que estávamos fazendo em Londres uma revista, uma revista comunista, e eu queria que ele escrevesse um artigo sobre a diminuição das exportações inglesas para o Brasil, uma coisa assim."
A política nessa brincadeira tinha uma explicação: em 1947, quando o Partido Comunista Brasileiro foi posto fora da lei, denunciou-se a existência, no Itamaraty, de uma certa "célula Bolívar" -da qual, segundo relação de nomes publicada então no jornal "O Globo", faria parte Paulo Cotrim Rodrigues Pereira. Na lista figurava outro jovem diplomata, Amaury Banhos Porto de Oliveira, que terminaria punido como esquerdista, com João Cabral de Melo Neto, Paulo Cotrim, Jatir de Almeida Rodrigues e o filólogo Antônio Houaiss.
Foi, na verdade, uma novela de espionagem, sordidez e baixa intriga. No consulado de Hamburgo, ao lado de Paulo Cotrim, um outro diplomata, o vice-cônsul José Maria Bello Filho, que, acusado de bebedeira e baderna no local de trabalho, estava sendo objeto de inquérito administrativo no Itamaraty. E, ao que tudo indica, esse funcionário estava, por alguma razão, brigado com Paulo Cotrim Rodrigues Pereira.
Nesse momento entrou em cena um novo personagem, o diplomata Mário Calábria, que viria a ser o responsável pelo pesadelo de João Cabral e de seus quatro colegas e que, ouvido nesta semana, deu a sua versão dos fatos (leia abaixo). Lotado no consulado brasileiro em Frankfurt, Calábria teria dito a José Maria Bello Filho: "Não se preocupe, porque tenho um documento contra ele (Paulo Cotrim) que deixa você bem". Era aquela carta de João Cabral, recheada de alusões políticas.
Por que essa correspondência foi parar em Frankfurt era mistério para o seu autor, décadas mais tarde, uma vez que o envelope não foi anexado aos autos. "Há quem diga que havia uma funcionária não-diplomática que não gostava do Cotrim e abria a cartas dele", especulava o poeta. "Então ela pegou essa e mandou para o Mário Calábria, que por sua vez a mandou para o Itamaraty."
A escala seguinte da infeliz correspondência foi o Estado Maior do Exército, que, segundo João Cabral, não deu maior importância ao assunto. "O chefe da 2ª Seção do Estado Maior", contou o poeta, "general Augusto Fragoso, me declarou que não havia nada, que aquilo era uma besteira da qual o Exército estava ciente desde abril (de 1953). Disse que o Exército tinha mandado os adidos militares me observarem em Londres e que eles não observaram coisa nenhuma, porque não havia o que observar -mandaram dizer que não havia nada".
O caso foi arquivado. Até que, por volta de junho daquele ano, 1953, o então jornalista Carlos Lacerda, que nas páginas da "Tribuna da Imprensa" comandava feroz oposição ao governo do presidente Getúlio Vargas, fez uma viagem à Europa. "E o Mário Calábria", disse João Cabral, "nessa altura brigado com o Paulo Cotrim, dá então a carta ao Lacerda, que reabre o assunto em sua campanha contra o Getúlio". A história se tornou pública, e o ministro das Relações Exteriores, João Neves da Fontoura, decidiu instaurar inquérito administrativo no Itamaraty, sob a responsabilidade do embaixador Hildebrando Pompeu Pinto.
"Houve ainda um inquérito criminal, que também não apurou nada", acrescentou João Cabral. "E, no entanto, nós fomos punidos, colocados em disponibilidade não-remunerada." Segundo o poeta, "Getúlio tinha medo do Carlos Lacerda, e dizem que quando nos pôs em disponibilidade lhe mandou um recado: "Os rapazes já foram punidos"".
João Cabral não perdoou o ministro e contra ele perpetrou certa vez maldade antológica: numa conversa com o cronista Rubem Braga, seu amigo, disse que só aceitaria se candidatar à Academia Brasileira de Letras se fosse na vaga de João Neves da Fontoura. (Acabou entrando, em 1969, mas na vaga deixada pela morte de Assis Chateaubriand. Num momento delicado como aquele, com o alfanje do AI-5 funcionando furiosamente, o poeta suspeito de esquerdismo teria buscado abrigo numa instituição na qual mais de uma ditadura não ousou tocar. Para usar a fórmula lapidar de outro amigo seu, Otto Lara Resende, "a farda protege o fardão".)
Enquanto durou o seu afastamento, o poeta trabalhou como jornalista, tendo sido secretário de redação do jornal "A Vanguarda". Foi também nesse interregno que escreveu o poema "O Rio", vencedor do prêmio José de Anchieta do Quarto Centenário de São Paulo. Reintegrado, trabalhou no Departamento Cultural do Itamaraty até ser removido para a Espanha, em 1956.
João Cabral de Melo Neto acreditava que Lacerda não tinha interesse em ver os cinco jovens diplomatas em desgraça -seu alvo era Vargas. Compreensivelmente, o poeta e o jornalista, até então amigos, ficaram estremecidos. "Mais tarde ele disse ao (escritor, deputado e futuro chanceler e e senador) Afonso Arinos (de Melo Franco) que gostaria de se encontrar comigo", rememorou João Cabral. "Eu disse que só se fosse na casa do Afonso Arinos, terreno neutro. Mas aí ele levou aquele tiro (no pé, no atentado da rua Toneleros, que, resultando na morte do major Rubens Vaz, precipitou o fim do governo Vargas, em agosto de 1954). Eu fui à casa dele e me declarou que tinha se enganado. Nunca mais nos vimos."
Nunca mais viu, também, Mário Calábria, por sinal seu colega de turma. "Eu era talvez o melhor amigo dele no Itamaraty", contou João Cabral. "Era um sujeito que todo mundo considerava antipático, ninguém gostava dele, minha vida era defender o Calábria. Ele até passou aquele Natal de 1952 em minha casa, em Londres, recém-casado." Que interesse teria Calábria em complicar a vida do amigo? "Ele me botou ali porque eu, como autor da carta, não podia ficar de fora", explicou o poeta. "Mas depois fez diversas ofertas para restabelecer relações comigo, e eu nunca quis. Saía artigo sobre mim na Alemanha, ele me mandava, e eu não respondia."
Como nada se apurou contra eles, os cinco envolvidos na denúncia foram reintegrados na carreira diplomática em 1954, com direito inclusive a receber salários atrasados. Dois deles -Antônio Houaiss e Jatir de Almeida Rodrigues- viriam a ser afastados novamente do Itamaraty, agora pelo regime de 1964, o primeiro logo depois do golpe e o segundo com o AI-5, em dezembro de 1968, e somente em 1989 obtiveram na Justiça uma vitória definitiva contra os atos que os cassaram. Os outros três -João Cabral de Melo Neto, Paulo Cotrim Rodrigues Pereira e Amaury Banhos Porto de Oliveira- chegaram a ministro de primeira classe, o topo da carreira, como embaixadores.


Humberto Werneck é editor-sênior da revista "Playboy" e autor de "O Desatino da Rapaziada".


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