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+ inédito
LÓGICAS DO PERDÃO
por Jacques Derrida
LEIA TRECHO DE
CONFERÊNCIA DADA
PELO AUTOR DE "A
FARMÁCIA DE PLATÃO"
EM AGOSTO PASSADO,
NO RIO, EM UMA DE
SUAS ÚLTIMAS
APARIÇÕES PÚBLICAS,
NA QUAL DISCUTE
O PROCESSO DE
RECONCILIAÇÃO NA
ÁFRICA DO SUL
PÓS-APARTHEID E NO
CHILE DEPOIS
DE PINOCHET
Estaríamos, portanto, no teatro, dentro de um teatro, nele, mas também
perante uma corte, no momento em
que não se resolveu a questão de saber se o tribunal, a comissão, a instância do
veredicto é humana ou divina, se se trata
do julgamento dos homens ou do Juízo Final. Não é certo que o perdão ainda faça
parte de uma lógica do julgamento, mas, se
fizesse, seria e continua sendo difícil saber
quem perdoa a quem, o quê, a quem e se
Deus é ou não a última instância de apelação. Há sempre essa dualidade das ordens:
humana ou divina.
Tal dualidade compartilha ou disputa o
conceito mesmo de perdão e sobretudo o
momento de reconciliação. A reconciliação pode acontecer entre os homens e
Deus, mas é verdade que na maior parte
das vezes a temática da reconciliação, embora se faça pela mediação de Deus, tende
sempre a humanizar as coisas, a abrandar
a dureza do veredicto ou do dever. Provavelmente nada disso é fortuito: o tema da
reconciliação, que certamente não está ausente de nenhuma tradição abraâmica, parece mais cristão do que judeu ou muçulmano; a mediação de Cristo ou do "homem Deus" desempenha um papel que
lembrávamos há pouco ao evocar Lutero
ou Calvino (o calvinismo marcou profundamente a comunidade branca da África
do Sul) e ao recordar que nossos quatro
personagens em cena -Hegel, Mandela,
Clinton, Tutu- eram cristãos e protestantes, a despeito das diferenças mais ou menos discretas que os opõem e de alguns diferendos que não demoraram a aparecer,
por exemplo, entre Tutu e Mandela.
Exceção absoluta
Em "O Mercador
de Veneza" [de Shakespeare], assiste-se à
astúcia que consiste em fingir colocar o
perdão acima do direito: "When mercy
seasons justice", como dizia Portia, a mulher disfarçada de advogado, representando os interesses do monarca, do doge e do
Estado teológico-político cristão. Ela (ele)
tencionava, a um só tempo, convencer,
fingir convencer, na verdade vencer, enganar e converter o judeu etc. Como em certo
texto de Kant, que inscreve a exceção metajurídica do direito de indulto na lei e no
fundamento da lei, quisemos assim reconhecer um lugar (o direito de indulto concedido ao soberano, o indulto concedido
pelo soberano) em que se juntavam o teológico e o político, o divino e o humano, o
celeste e o terrestre.
Esse lugar permanece tanto mais notável
por situar a um só tempo uma exceção absoluta -a inscrição do não-jurídico no jurídico, do para-além-da-lei na lei, a transcendência na imanência, e uma exceção
que funda a unidade do corpo social e do
Estado-nação. Certamente isso é verdade,
ainda hoje, em toda parte onde o direito de
indulto continua existindo, mesmo fora
das monarquias (na França ou nos EUA,
por exemplo), mas também, "a contrario",
como uma lei acima das leis, por meio da
própria noção de imprescritibilidade.
Quando a noção de imprescritibilidade é
inscrita na lei -como é o caso na França,
desde 1964, para os crimes contra a humanidade-, ela se torna assim, para além da
temporalidade jurídica e portanto humana, um conceito jurídico. Este leva a compreender que nenhuma lei dos homens, no
tempo dos homens, pode subtrair o criminoso ao julgamento. Não é o oposto do direito de indulto, já que o chefe de Estado
ainda pode agraciar um homem condenado por crime contra a humanidade (como
acredito que fez Pompidou com Touvier,
em nome da reconciliação e da reconstituição da unidade da nação).
Instância transcendente
A imprescritibilidade tem de análogo com o direito
de indulto, com o indulto a que parece se
opor, o fato de em ambos os casos a ordem
humana da lei e o tempo humano do julgamento serem ultrapassados por uma instância transcendente. Os homens não têm
o direito de subtrair o -ou de se subtrair
ao- julgamento, qualquer que seja o tempo decorrido após cometer a falta.
A esse respeito, do mesmo modo que o
direito de indulto imita o poder divino, de
que emana e com que se autoriza, a idéia
de imprescritibilidade (algo bastante moderno, enquanto fenômeno jurídico e contemporâneo apenas, ao que saiba, do conceito igualmente moderno de crime contra
a humanidade, que é seu correlato na
França desde 1964) imita o Juízo Final. Ele
se dirige a um "até o final dos tempos",
portanto até um "para além do tempo":
um tempo até o final dos tempos.
Mas, como a ordem do prescritível ou do
imprescritível não é a do perdoável ou do
imperdoável -os quais não têm mais nada a ver, em princípio, com o judiciário ou
o penal-, então essa hipérbole do direito
sinaliza contudo para um perdão, a saber,
um excesso no excesso, um suplemento de
transcendência (pode-se, ao mesmo tempo em que se condena perante a corte de
Justiça, perdoar o imperdoável) ou ainda
para uma reapropriação humanizadora,
uma reimanentização da lógica do perdão.
Essa reimanentização, essa reapropriação humanizadora organiza sempre o que
está em jogo num debate religioso, o qual
não pode deixar de passar pela sacralidade, pela indenidade, pela imunidade
("Heiligkeit") religiosa. Debate religioso
também entre as religiões que, como cada
uma das religiões abraâmicas, trata diferentemente da reconciliação, da mediação
humana na relação com Deus, da encarnação, dos profetas, do messias e do profeta.
Jesus, intercessor junto de Deus para que
perdoe os que não sabem (pelo menos segundo Lucas), não é o messias para todo
mundo. Não é o messias para os judeus e é
somente um profeta para os muçulmanos.
Redenção de Pinochet
Sabemos que
também foi notória no Chile essa dimensão cristã ou cristianizadora do processo
em curso. Pinochet foi redimido no começo da democratização e depois das eleições,
mas redimido no sentido de Hegel, "aufgehoben", conservado e ao mesmo tempo
deslocado, já que continuou sendo chefe
das Forças Armadas e uma grande voz do
país, quando já havia cedido o poder. Ora,
no começo da era pós-Pinochet, no instante de uma anistia geral, é a mais alta hierarquia da igreja que hoje apregoa a reconciliação nacional.
É verdade que, em 1973, após o assassinato de [Salvador] Allende, o cardeal Raul Silva Henríquez tinha corajosamente declarado que "os direitos do homem são sagrados", opondo-se em seguida a Pinochet, à
sua maneira. Porém, velho e doente, ele foi
hoje rendido por um arcebispo de Santiago, monsenhor Francisco Javier Errazuriz,
que insiste na "necessidade de perdoar".
Será excessivo lembrar que esse arcebispo teve um cargo no Vaticano e na Alemanha, que pertence a uma das famílias mais
ricas do país e que seu irmão é um militante
do partido de direita chamado Renovação
Nacional? Cabe sempre lembrar, pois se
trata de uma situação típica, que, se a Igreja
chilena é predominantemente conservadora (o Chile faz parte dos países cristãos
onde o divórcio é proibido), também houve padres que lutaram contra a ditadura,
pagando com a própria vida.
O mesmo aconteceu na África do Sul: se
uma certa "ideologia" teológica calvinista
contribuiu em profundidade para o estabelecimento, justificação e manutenção do
apartheid, é preciso, em contrapartida,
saudar alguns teólogos e todo um movimento cristão, que corajosamente lutaram
contra o racismo de Estado.
Que a Igreja cristã, portanto, em sua fala
autorizada, sustente hoje o discurso da reconciliação, que ela ofereça a "palavra de
reconciliação", que a reconciliação seja não
apenas sua língua mas a língua em que se
traduzem -com o conhecimento ou não
dos sujeitos envolvidos, todos os discursos
mundiais da reconciliação- é algo que
nos é confirmado de mil maneiras.
Tradução de Evando Nascimento.
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