São Paulo, domingo, 17 de outubro de 2004

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Recém-lançado na França, o romance "La Hacienda" traça um painel ácido da decadência da contracultura

Mariposas psicodélicas

Hugo Marsan
do "Le Monde"

Murmura-se -na verdade, há pouco barulho em torno desse romance excepcional- que a obra de Jean-Hubert Gailliot, "L'Hacienda" é reservada a alguns "happy few". Afirmação apressada que revela a cegueira dominante. Ninguém questiona [Marcel] Proust, testemunha de seu tempo, que, entre realista e profético, descreveu as convulsões sociais e suas repercussões no indivíduo. Ele interpretou sua época criando a escrita labiríntica. Gailliot faz parte do mesmo projeto: falar de seu tempo inventando as ferramentas lingüísticas adequadas.


Mundo televisual, virtual, profusão de imagens decadentes, hipertrofiadas pelo imaginário, em uma decadência barroca: 20 anos de uma festa mórbida, de dimensões planetárias


"A hacienda, você não a verá, ela não existe. É preciso construir a hacienda." Essa frase publicada na "Internacional Situacionista" resume o romance de Gailliot. "L'Hacienda" foi o nome de um clube noturno, mundialmente conhecido, aberto em Manchester [Reino Unido], em 1982. "L'Hacienda" é também uma série de televisão que Benjy, o herói de Gailliot -seu porta-voz-, assiste incansavelmente.

Atriz desmoralizada
Recluso em uma casamata (mental?) entre o Texas e o Novo México, ele troca o presente pela visão de antigos programas de TV, percorrendo através do espaço e dos anos os signos de uma revolução oculta: "O apocalipse moderno no interior de cada indivíduo". Meio século de contracultura confronta de modo ambíguo a libertação do indivíduo de um sistema de vigilância e de coerção: "Que assalto fantástico essa extorsão na própria raiz do humano, de seu bem mais precioso: seu capital-tempo!". Cabe ao escritor dar "o grito de convocação àqueles que não têm lugar" nessa "mendigalização do Ocidente". A Albertine de Proust é, em Gailliot, uma atriz de última categoria, Gwladys, desmoralizada, desaparecida, reencontrada durante uma longa entrevista na televisão, cuja intenção é medir o capital de sinceridade de suas cobaias. Assim como o narrador de Proust, o voyeur de Gailliot se alimenta do "(...) confronto entre o espelho deformador da memória e a realidade". As pistas prazerosas são inúmeras. O que aconteceu com Howard Hughes, o último nababo hollywoodiano? E aqueles assassinatos de estrelas, jamais elucidados? E os vícios sob a máscara envernizada das vedetes? Personagens célebres desfilam, gritam sua solidão, nos impregnam de seu mistério (de sua miséria), misturam-se aos heróis da contracultura, a um grupo de cantores falidos, os Dolls, cuja música invade o subconsciente, aos escritores (Melville, Twain, Hawthorne, Faulkner, Kipling, Philip Roth) que mesclam suas vozes às de suas personagens. Mundo televisual, virtual, profusão de imagens decadentes, hipertrofiadas pelo imaginário, em uma decadência psicodélica e barroca: 20 anos de uma festa mórbida, de dimensões planetárias, como a última noite entre os Guermantes, em que Proust registrou os estertores da aristocracia e as vociferações da burguesia vingativa.

"Todo em migalhas"
Ensaio sobrecarregado de inteligência, "conjugando os poderes da filosofia e da ficção", apologia dos marginais sublimes, elogio deteriorado da solidão humana ("a degradação do sujeito, sua autoconsciência cada vez mais problemática, reforça proporcionalmente seu sentimento de pertencer. Mas pertencer a quê?"). "L'Hacienda" não faz assepsia da proposta violenta: a verdadeira transgressão é a da escrita. E, já que "em 1973 o personagem estava, havia muito tempo, exilado no romance", o narrador se esforça para "reconstruir o que foi destruído", trazendo à luz aparições enigmáticas.
Jean-Hubert Gailliot domina seu projeto romanesco: "Uma superposição de motivos inconscientes. (...) Não uma "história dentro da história", não: todas as histórias dentro de uma só. Uma gigantesca narrativa exterior (...), uma narrativa cujo avanço procederia por ligações tão fulgurantes que ninguém tampouco conseguiria percebê-las". Uma nota de esperança: o ser amado não morre, "como se conseguíssemos, pela força de nosso amor, reimplantar em nós o personagem do outro... Uma espécie de duplo, tornado indefinidamente presente e disponível a nosso sonho e com o qual mantemos uma intimidade que o modelo sem dúvida jamais possuirá em grau comparável...". Não, essa frase não é de Proust. É a homenagem de Gailliot à memória, felizmente traída pelas imagens e pelo desejo.
Romance atípico, "reconstrução precavida de um todo em migalhas", imensa e feroz surpresa.

Tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves

L'Hacienda
336 págs., 21 euros de Jean-Hubert Gailliot. L'Olivier (França).


Onde encomendar
"L'Hacienda" pode ser encomendado, em SP, na livraria Francesa (0/xx/11/3231-4555) e, na internet, no site www.alapage.com



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