São Paulo, domingo, 17 de outubro de 2004

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Ponto de fuga

Bola de cristal

Jorge Coli
especial para a Folha

No dia 19 de agosto de 1991, um grupo conservador do Partido Comunista soviético tenta um golpe, na busca da volta impossível ao passado. Imediatamente, a revista francesa "Le Nouvel Observateur" propõe artigos analisando o acontecimento. O historiador Marc Ferro não hesita. Afirma que a União Soviética não podia mesmo desaparecer como se imaginava. O putsch confirmava a solidez do projeto comunista, contra todas as expectativas. Ocorre que o golpe não passou de três dias, e as profecias do retorno, desmentidas tão rapidamente, adquiriram um sabor irrisório.
O mesmo Marc Ferro declarou, há poucas semanas, numa entrevista à Folha [em 11/9/2004], que o filme de Éric Rohmer "A Inglesa e o Duque" "é o mais reacionário dos filmes reacionários". Acrescenta: "É sempre o modelo das boas e belas pessoas, vítimas de gente ruim e feia, da multidão ensandecida, do povo, ou seja, dentro da tradição contra-revolucionária, muito comum no pós-guerra francês, na historiografia, na literatura e no cinema". Conclui: "Rohmer, que é conhecido como um bom cineasta, faz aqui um filme com o ponto de vista da direita. Ele revelou nesse filme seus sentimentos políticos profundos".
A primeira situação mostra o historiador em dificuldades com as previsões. A história não é uma ciência, felizmente. É um processo reflexivo sobre o passado. A segunda, mostra o historiador em dificuldades para lidar com o passado. É mais grave. Num caso, como no outro, a convicção precede a análise, e os "sentimentos", como diz o próprio Ferro, falam mais forte. Eles predispõem a um ponto de vista imperativo, exclusivo, sumário e, em ambos os casos, enganoso.

Labirintos - "A Inglesa e o Duque", de Éric Rohmer, é um filme admirável e também uma lição de história. A execução de Luís 16 não vem mostrada: intuem-se os sentimentos dolorosos que essa morte provoca na protagonista. A questão não é um impossível e objetivo "fato histórico", mas o modo de vivê-lo por um contemporâneo. A inglesa é amante de Philippe-Égalité, o duque regicida, que votou pela morte de seu primo, o rei. Philippe-Égalité guarda em si estratégias e interesses dissimulados, a inglesa possui convicções sinceras. Cada um tem suas razões; elas multiplicam os sentidos do que ocorre, sem nenhum maniqueísmo.
O novo filme de Rohmer, "Agente Triplo", apresentado no Festival do Rio, volta-se ainda para a história, mais recente desta vez, em tempos que precedem a Segunda Guerra Mundial. Há nele a vertigem das máscaras. As versões públicas dos acontecimentos, oferecidas por partidos, governos ou pela imprensa, mostram-se como arranjos fictícios, cuja ação sobre a ingenuidade de cada um é poderosa. Nada de relevante é exposto; os "fatos" importantes surgem pela narração de alguém, não pela narração do filme. Tudo se dá na maneira pela qual os personagens compreendem -ou não- o que está ocorrendo. A história tece suas teias, dissimula armadilhas a cada passo e faz com que o futuro sempre surpreenda pelo imprevisível.

Ersatz - "Agente Triplo" trata de militância comunista no mesmo período em que se passa o terrível drama de Olga Benário Prestes. Nele também a protagonista termina sacrificada, mas seu martírio não nos é mostrado. O filme "Olga", de Jayme Monjardim, ao contrário, insiste nas imagens que se querem cruéis. Porém é tão primário que tudo vira um conto da carochinha, mal contado. Podia ser um melodrama intenso, mas falta-lhe a força da emoção. Podia debruçar-se sobre os movimentos coletivos, mas falta-lhe poder narrativo, para não falar de energia épica ou capacidade de análise. Podia ser cinema; não é mais que um simulacro.

Espantalho - Ninguém, com alguma coisa na cachola, pode imaginar que "Olga", o filme, possua qualquer poder subversivo. Não assusta porque não tem força para isso. Desfaz a história, desfaz os sentimentos, desfaz os personagens numa estranha espécie de nada. Engana seu público com alguns fantoches, com algumas cenas eróticas, com uma trama amorosa muito anêmica, com efeitos sentimentais bem pobrezinhos.


Jorge Coli é historiador da arte.
E-mail: jorgecoli@uol.com.br


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