São Paulo, domingo, 17 de novembro de 2002

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+ cinema

O diretor austríaco, que virá a SP para apresentar uma retrospectiva de seus filmes, defende que a TV potencializou os recursos expressivos da sétima arte

O êxtase orgíaco da repetição

Bernardo Vorobow
Carlos Adriano
especial para a Folha

Peter Kubelka (Viena, 1934) é um dos artistas-pensadores mais inventivos, rigorosos e perfeccionistas do cinema atual. Seus elaborados curtas -como "Schwechater" (1957-1958), "Arnulf Rainer" (1958-1960) e "Unsere Afrikareise" (1961-1966)- ocupam, com impacto decisivo, o lapso entre as vanguardas dos anos 20/30 e dos anos 60/70.
Kubelka virá pela primeira vez ao Brasil para participar da retrospectiva "Peter Kubelka - A Essência do Cinema", que o Centro Cultural Banco do Brasil/SP (0/ xx/11/3113-3651) e a Associação Cultural Babushka apresentam de 10 a 17 de dezembro.
Na entrevista abaixo o diretor austríaco defende que a palavra-chave do cinema é "entre" (o cinema articula os elementos). Estruturados de forma precisa, na escala do fotograma (informações visuais e sonoras a 1/24 de segundo), seus filmes expandem a experiência irredutível do cinema para outras esferas: música, poesia, pintura e cozinha como forma de arte.

Como o sr. define o cinema?
Aqui temos o mesmo problema de uma gramática da língua. Há dois gêneros de gramática: uma gramática normativa, que diz como a língua deve ser, e uma gramática descritiva, que descreve como a língua se desenvolve. Descrever o cinema como gramática normativa não faz sentido, porque o cinema não é definido de antemão. Definir o cinema como gramática descritiva pode somente descrever o passado até hoje. Mas eu mesmo não tenho a opinião de que o cinema está morto. Apenas quando uma língua está morta, como o latim, podemos verdadeiramente descrever o que é essa língua. Eu sempre gostei de experimentar a essência do cinema. Cada disciplina (pintura, literatura, cinema) não é isolada, sobrepõe-se a outras disciplinas. Sempre me interessei pelas qualidades essenciais e únicas de um meio e sempre acreditei que o cinema tem possibilidades de ampliar o pensamento, adicionando novos aspectos que outras disciplinas não podem acrescentar.

Isso é demonstrável até fisicamente, não?
A imagem cinematográfica não é boa, não pode comparar-se à pintura. O cineasta não pode concorrer com o pintor no campo da imagem. Mas eu posso dar 24 informações visuais por segundo, precisamente, no espaço do tempo. Essa é uma possibilidade de trabalhar o espaço, o tempo visual, de uma maneira que nenhuma outra disciplina pode avizinhar-se. Uma possibilidade essencial do cinema, segundo minha concepção, é a velocidade visual, a precisão do posicionamento dessas informações visuais no tempo.

Qual a contribuição do fato sonoro?
O cinema sonoro permite um encontro de imagem e som no tempo, ao mesmo tempo, em precisão absoluta. Eu posso decidir que um certo som encontra uma certa imagem num certo ponto no tempo. E essa possibilidade é a possibilidade de falar, de criar metáforas, de uma maneira que nenhum outro meio pode fazer. O cinema sonoro pode estabelecer uma linguagem puramente cinematográfica. Isso eu realizo com meu filme "Unsere Afrikareise", onde usei todas as possibilidades complexas entre imagem e som sincrônicos. A glória do cinema sonoro não é poder representar o som natural ou o visual natural. Isso não é interessante; a natureza constrange sempre essa lei contemporânea do som. A glória do cinema sonoro é poder separar (separar fenômenos da natureza, separar o som da imagem) e poder compor síntese novamente, segundo o desejo do cineasta.

O que faz do cinema algo singular?
A palavra mais importante no cinema, a palavra-chave é: "entre". O cinema se articula entre os elementos, entre som e outro som, entre imagem e outra imagem, entre som e imagem entre. O cinema, hoje, talvez seja a mais profunda possibilidade de se concentrar a opinião de um autor, sem dispersar sua atenção. O cinema se desenvolve num ambiente sem luz, escuro. E uma pessoa que se entrega a um autor no cinema se concentra de uma maneira como em nenhum outro meio. Esse aspecto se tornou bem definido somente depois da aparição da televisão. Quando fiz meus filmes muito curtos, não pensei num espetáculo de duas horas, mas num período no tempo de vida de uma pessoa muito concentrado, essencial, elevado, que dura pouco. Como um orgasmo, uma coisa curta, definida, que pode ser repetida. Outro aspecto do meu cinema é a concentração, a complexidade, o êxtase que estimula o desejo de repetir. Muito tipicamente, as coisas que se vêem na televisão, nenhuma pessoa quer ver duas vezes. É superficial, descarta-se. Já o poema... Por toda uma vida podemos estar com um poema. Essa qualidade o cinema comercial ignora: a possibilidade de fazer obras complexas, curtas, como um poema.

"Schwechater" radicalizou o processo...
Esse foi o filme mais guerrilheiro que fiz. Era uma encomenda oficial de uma grande companhia de cerveja na Áustria, e seus proprietários eram conhecidos como colecionadores no mundo das artes. Graças à "fama" dos meus filmes e também a recomendações dos artistas mais importantes da Áustria naquele momento, essa gente me propôs fazer um filme publicitário. Queriam um filme conservador, lento, e eu fiz o filme... que ficou conhecido. Foi um grande escândalo. Eu tive que sair da Áustria, porque tudo se fechou para mim. Fui para a Suécia por um ano, completamente isolado. Com "Arnulf Rainer" eu perdi amigos, artistas, porque não compreenderam o filme.

Qual a diferença em trabalhar com cinema, com música ou com cozinha?
Quando eu trabalho com cozinha é exatamente como se eu trabalhasse com um filme ou como se trabalhasse com música. A cozinha é uma forma de arte tanto quanto qualquer outra forma de arte reconhecida como tal. O que significa que, enquanto trabalha, você tem que estar constantemente atento ao que faz e tem sempre que pensar no que vai realizar -você trabalha para isso. A cozinha é muito arcaica, você não tem que esperar tanto até ter o resultado acabado, como quando você faz um filme. Fazer um filme pode levar anos, até estar terminado, e até então é sempre esperar e esperar, trabalhando e imaginando como será. Isso é um fato, um sinal da cultura na qual nós vivemos, a saber: para realizar alguma coisa, você tem que sacrificar, tem que esperar, não pode ter prazer imediatamente.


Bernardo Vorobow e Carlos Adriano são curadores da mostra e autores do livro "Peter Kubelka - A Essência do Cinema" (ed. Babushka), de que faz parte a íntegra desta entrevista.


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