São Paulo, domingo, 17 de novembro de 2002

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"Como Viver Junto" e "O Neutro" dão início à publicação dos cursos e seminários dados pelo autor de "Mitologias" no Collège de France nos anos 70 e preservados em gravações e fichas manuscritas

O MESTRE ARTISTA barthes

Daniel Boudinet
O crítico francês em ensaio fotográfico de 1976


por Leyla Perrone-Moisés

Em 1976 Roland Barthes foi eleito membro do Collège de France, e em 1977 deu ali sua primeira aula. Estava no auge de sua carreira e recebia um reconhecimento público que ultrapassava os muros da academia. O último curso que ministrara na École Pratique des Hautes Études, sobre o discurso amoroso, se tornaria em breve um espantoso best-seller. Na aula inaugural do Collège, Barthes se apresentou como "um sujeito incerto", acolhido "numa casa onde reinam a ciência, o saber, o rigor e a invenção disciplinada" (ver "Aula"). De fato, sua carreira universitária fora pouco convencional e, para abrigá-lo, o Collège de France criara uma disciplina sob medida para ele: a semiologia literária. E mesmo esta, em suas mãos, tornou-se incerta. Em formulações elegantes e polidas, o novo mestre anunciou o ensino pouco canônico de uma disciplina nada científica: uma semiologia na qual o signo seria imaginário, o método, uma ficção, e o tema de cada curso, um fantasma pessoal. Um ensino capaz de "fazer do saber uma festa" ou, segundo a bela fórmula final da "Aula": "Sapientiae: nenhum poder, um pouco de saber, um pouco de sabedoria e o máximo de sabor possível". Infelizmente, pouco tempo lhe restava para usufruir dessa que ele projetava como uma "vita nuova". Três anos mais tarde, em fevereiro de 1980, um atropelamento diante do mesmo Collège de France levou-o ao hospital, onde morreria um mês depois, de insuficiência respiratória.

Fichas e fitas
Somente agora, 22 anos após seu desaparecimento, estão sendo publicados os cursos que ele deu no Collège ("Les Cours et les Séminaires au Collège de France de Roland Barthes", dir. Éric Marty, col. "Traces Écrites", Paris, Seuil/Imec). Esses textos têm características bem diversas daqueles que Barthes publicou em vida. Não são textos pensados e trabalhados para a publicação em livro. São as fichas em que ele apoiava suas aulas, mais extensas e desenvolvidas do que simples anotações, mas desprovidas daquele arranjo estrutural e daquele acabamento estilístico que davam a seus livros uma marca inconfundível. Como explica o editor, restaram desses cursos centenas de fichas manuscritas e dezenas de horas de aula gravadas em fitas. Como critério de publicação, foi decidido que não se faria a transcrição completa das fitas, renunciando de antemão à pretensão de dar ao texto uma falsa aparência de obra ou livro. As fichas seriam publicadas tais quais, com um mínimo de intervenção do editor. A diferença entre as notas de curso e os livros barthesianos fica bem clara numa observação que o próprio autor fizera, a respeito da distância entre o curso sobre o discurso amoroso e o livro resultante: "O livro é talvez menos rico do que o curso, mas é mais verdadeiro". É toda a diferença entre a escrevência e a escritura, tal como ele as definira nos anos 60 ("Ensaios Críticos"). Assim, a leitura dessas notas de curso pode decepcionar o leitor habituado com a qualidade rítmica e figural da escritura barthesiana. Entretanto, se esse leitor for de fato um habitué de Barthes, ele saberá ouvir, nos ocos desse discurso, as saborosas modulações de sua voz. O mesmo mestre que, nos anos 50, conseguia extrair tanto saber e tanta graça de temas como "o bife com batatas fritas" ("Mitologias") continuava capaz, nos últimos anos de sua vida, de tecer considerações surpreendentes e quase infinitas acerca de temas como o "Viver-Junto" e o "Neutro".

"Moral da linguagem"
Não seria possível resumir aqui todas as variações criadas por Barthes a partir desses temas. Mas é preciso que se diga desde logo: é de ética que se trata, como sempre se tratou, ao longo de toda a sua obra. Uma ética centrada não sobre a conduta em si, individual ou coletiva, mas sobre a linguagem na qual se fundamenta e na qual se efetiva toda conduta humana: "É disso que se trata neste curso: de uma moral da linguagem". Como semiólogo e escritor, Barthes não pretende estudar esses temas à maneira filosófica, sociológica ou histórica, mas enfocá-los à luz de uma "moral da forma". Seu objeto de análise é o discurso acerca da vida em comum e do neutro, como anteriormente seu objeto fora, não o sujeito apaixonado, mas o discurso que produz e configura esse sujeito.
O primeiro curso, ministrado em 1977, tem por título completo: "Comment Vivre Ensemble - Simulations Romanesques de Quelques Espaces Quotidiens" [Como Viver Junto - Simulações Romanescas de Alguns Espaços Quotidianos]. Segundo a "tática sem estratégia" que ele sempre adotou, Barthes discorre livremente a partir de textos que falam da questão antiquíssima e atual da vida em comum.


Sente-se nessa última fase um enorme cansaço do ambiente que o cerca, saturado de demandas narcísicas disfarçadas em questões intelectuais


O que lhe interessa não é a prática do casal, da família ou da comunidade tipo hippie, mas o projeto utópico de uma pequena comunidade móvel, na qual cada um dos membros pudesse viver ao mesmo tempo em companhia e em liberdade. Os modelos examinados seriam, inicialmente, os monges do monte Atos e os budistas do Tibete, tais como eles estão documentados em livros. A esses textos se acrescentariam outros, literários. A questão seria a seguinte: "O grupo idiorrítmico é possível? Pode haver uma comunidade de seres sem Finalidade e sem Causa?". A resposta é evidentemente negativa, e por isso o curso se coloca de antemão como uma proposta romanesca, utópica. A vida em comunidade tende a se apoiar em crenças e regras comuns, anulando as diferenças individuais. Para refletir sobre a questão da vida em comum, Barthes tomou obras extremamente diversas em sua origem, datação e gênero: a "História dos Monges do Deserto", de Paládio (descrição da vida dos eremitas no século 8º), "A Montanha Mágica", de Thomas Mann (a vida coletiva num sanatório), "Pot-Bouille", de Zola (a vida comunitária num prédio burguês), "Robinson Crusoé", de Defoe (a vida solitária e depois nem tanto), "A Sequestrada de Poitiers", de Gide (estudo de um caso verídico de sequestro familiar). A exposição não é, entretanto, subordinada aos textos. Como nos "Fragmentos de um Discurso Amoroso", ela obedece à ordem alfabética dos temas: "Acédia", "Anacorese", "Animais" etc. A disposição fragmentária e a ordem alfabética têm por objetivo combater qualquer tendência à completude, à totalização, ao totalitarismo discursivo. De cada um desses textos, e de outros ocasionalmente evocados, Barthes arranca cintilações inesperadas de sentido. Com um humor antiprofessoral, ele estabelece paralelos improváveis e classificações insólitas, aos quais uma terminologia erudita, de raiz grega, acrescenta o toque irônico. Como atividade paralela a esse primeiro curso, Barthes examina certas práticas discursivas que ele considera mal estudadas pela linguística, como uma longa fala dirigida por Charlus a Marcel, na obra de Proust: "Um discurso móvel, cambiante como uma paisagem sob nuvens, espécie de moiré sutil de inflexões". Ele detecta, nesse discurso, junções e tonalidades que intitula, com humor, de "tactemas", "inflexemas" e "explosemas". Em momentos como este, deparamo-nos com "barthemas" de excelente safra.

"Fantasma ativo"
A razão pessoal subjacente à escolha do tema desse curso é evocada sob o termo "xenitéia" -sentimento de estranhamento, de inadaptação à realidade que leva à reclusão. Barthes reconhece que aquele era, para ele, um momento de "xenitéia": "Um fantasma ativo: necessidade de partir, logo que uma estrutura pega [...]. Ir para outro lugar, viver em estado de errância intelectual". Reconhecemos nesse "fantasma ativo" o impulso ao deslocamento que caracterizou a carreira de Barthes, sempre desconfiado dos discursos que se tornam senso comum, que se repetem sob forma de "doxa" e boa consciência.
Na verdade, sente-se nessa última fase um enorme cansaço do ambiente que o cerca, um ambiente saturado de discursos, de sentidos fortes, de interpelações políticas, de demandas narcísicas disfarçadas em questões intelectuais. Daí sua simpatia pelos mestres zen, que "respondem" às perguntas por frases insensatas ou gestos aleatórios, ou pelo filósofo céptico Euríloquo, que, atormentado pelas perguntas dos discípulos, despiu-se e fugiu, atravessando um rio a nado.
O segundo curso, realizado entre 1977 e 1978, tem por título "O Neutro". Esse tema, assim como o do deslocamento, figurava na aula inaugural. Estava aí ligado à questão do "fascismo" de toda língua, que obriga a dizer de certa forma e proíbe outras. "Em francês" -dizia ele- "sou obrigado a escolher sempre entre o masculino e o feminino, o neutro e o complexo me são proibidos". No curso dedicado ao tema, este ganha maior amplitude. Não é uma simples questão de gênero ou de modo, mas concerne a "toda inflexão que evita ou desarma a estrutura paradigmática, oposicional, do sentido, e visa por conseguinte à suspensão dos dados conflituais do discurso". Em nossas sociedades ocidentais modernas o neutro é depreciado, associado à fraqueza, à frouxidão, à falta de caráter. O Ocidente exige "tomadas de posição". Era, pois, natural que, na busca de um discurso (de um modo de ser) não-dogmático e não-agressivo, Barthes se voltasse para as sabedorias orientais, em especial o Tao e o Zen. Mas não há nenhum "orientalismo", muito menos qualquer misticismo nessas referências. As sabedorias orientais são invocadas em consonância com atitudes ocidentais como o pirronismo ou o cepticismo moderno de Montaigne e Gide. O que está em pauta, continuamente, é a própria relação de ensino. Desde o início do primeiro curso, Barthes retoma e redefine a oposição nietzschiana: método e "paidéia". O método é uma decisão premeditada, visando chegar a um objetivo, a um saber; a "paidéia" é "um traçado excêntrico de possibilidades, uma viagem entre blocos de saber". Nenhuma dúvida sobre a opção barthesiana pela "paidéia". Ao apresentar a lista dos textos que servirão de base a seu primeiro curso, ele explica que outras obras poderão fornecer, pontualmente, alguns traços, e que a leitura será não-sistemática, proliferante. Por que, então, propor uma bibliografia? Porque Barthes descarta, em seu ensino, o "mito da criatividade pura" ("Aula"). A pesquisa deve ter um rumo, mesmo que fantasmático: "Um certo direto deve ser colocado, precisamente para que haja um indireto, um imprevisível. Este é o andamento da "paidéia", não do método". Esses cursos são, afinal, a colocação em prática das principais propostas da "Aula": um ensino não-opressivo, a desconstrução de toda metalinguagem, a renúncia a um enciclopedismo tornado impossível num tempo de excesso de informações, a adoção de um lugar discreto na esfera do poder acadêmico, lugar a partir do qual ele se limitaria a apontar alguns tópicos de saber e a "entreabrir determinados fichários". Como na "Aula", a palavra mágica para Barthes continuava sendo "literatura", embora (ou talvez mesmo porque) ele a sentisse tão ameaçada de cair em desuso.

Ficção
Em cada embaraço teórico enfrentado nesses cursos, a saída jubilatória lhe é sugerida pela literatura. A linguagem conceitual pretende dizer a "verdade"? "Mas então como falaremos, nós, os intelectuais? Por metáforas. Substituir o conceito pela metáfora: escrever." Toda memória que se autoriza a julgar os mortos é arrogante, e portanto a história é uma disciplina arrogante? Ora, a única memória não-arrogante é a da literatura, porque as grandes personagens da ficção permanecem "não tocadas pela morte", isto é, fora do paradigma vida-morte. O próprio ensino deveria se tornar literário, e os cursos, "arranjados de modo a produzir uma ficção (quase romanesca)". O professor seria, assim, um artista. É porque os artistas são únicos que Barthes tem feito tanta falta, e é tão bom reencontrá-lo.


Onde encomendar
"Comment Vivre Ensemble" e "Le Neutre" podem ser encomendados, em SP, na livraria Francesa (0/xx/11/3231-4555).

Leyla Perrone-Moisés é professora emérita da USP e autora de, entre outros, "Inútil Poesia" (Companhia das Letras).




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