São Paulo, domingo, 17 de novembro de 2002

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Linguagem e ideologia

Ideosfera: palavra que eu crio a partir de ideologia: sistema linguageiro de uma ideologia, precisando imediatamente, o que já torna inexata a definição: toda ideologia, para mim, é linguagem e nada mais do que linguagem: é um discurso, um tipo de discurso.
Poderíamos imaginar outros neologismos: doxosfera: esfera da linguagem da doxa. Ou ainda, já que se trata de um discurso de fé: pisteosfera; ou ainda socioleto ("escritura" no "Grau Zero da Escrita"). Ou então, mais simplesmente: logosfera: isso lembraria que a linguagem é, para o homem, um verdadeiro meio biológico, aquilo em que e através do que ele vive, o que o cerca.
Seria com efeito necessário definir as "ideologias" por sua linguagem, ela mesma definida, se possível, estruturalmente, pelos traços típicos da discursividade, e somente após isso veríamos se há correspondências entre esses tipos de discurso e determinações sociopolíticas -descobriríamos com certeza, em determinado mundo, várias ideosferas coexistentes, inteligíveis umas às outras, mas sem comunicação entre elas.
Portanto (provisoriamente, já que se trata de simples notas de pesquisa): ideosfera: sistema discursivo forte, não idioletal (podendo ser imitado, falado, sem o saber, por um grande número de homens), "socioleto" originado culturalmente em linguagens-prínceps (por exemplo Marx, Freud): ao mesmo tempo gregárias e não-anônimas (antes: epônimas).
[...]
A ideosfera tende a se constituir em doxa, isto é, em "discurso" (sistema particular de linguagem) que é vivido pelos usuários como um discurso universal, natural, óbvio, cuja tipicidade não é percebida e com relação ao qual todo "exterior" é relegado à categoria de margem ou desvio: discurso-lei que não é percebido como lei. [...]
Ideosfera: círculo, sistema de idéias-frases, de idéias fraseadas, de argumentos-fórmulas, portanto objeto linguageiro essencialmente copiável e/ou repetível, portanto fenômenos muito importantes de mimetismo. Pode haver um mimetismo (de uma determinada ideosfera) consciente, deliberado, quer por maquiavelismo, no nível dos Estados, quer por conformismo prudente, no nível dos indivíduos, cada vez que a ideosfera está ligada a um poder. Mas há também um mimetismo não-consciente: a ideosfera é inextricavelmente ligada a uma fé.
[...]
Veja você mesmo, no círculo de suas relações, de seus interlocutores: você vive numa ideosfera ou numa espécie de sinfonia complexa de linguagens incomparáveis?


Roland Barthes, "O Neutro".


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