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+ sociedade
Os turistas aprendizes
De Jorge Amado aos "Simpsons" e ao recente filme "Turistas",
estereótipos sobre o Brasil na mídia e nas artes se cristalizam por conivência da própria população
PETER BURKE
COLUNISTA DA FOLHA
Alguns dias atrás li
num jornal britânico, o "Guardian",
sobre um novo filme de horror de
Hollywood intitulado "Turistas" [de John Stockwell]. É a
história de oito mochileiros
americanos que vão passar férias no Rio de Janeiro, onde são
seqüestrados e drogados e têm
seus rins retirados e vendidos.
Compreensivelmente, a Riotur estaria preocupada com a
notícia do filme, assim como se
preocupou com um episódio de
"Os Simpsons", "Blame it on
Lisa", exibido pela televisão em
2002, no qual turistas americanos eram seqüestrados por um
taxista, assaltados por um bando de crianças e atacados por
macacos na praia.
Naquela ocasião, o presidente Fernando Henrique Cardoso exigiu um pedido de desculpas e a Embratur ameaçou processar os criadores de "Os
Simpsons". Desta vez, numa
atitude mais construtiva que
na ocasião anterior, a Riotur
prometeu buscar a ajuda de
uma agência publicitária para
melhorar a imagem da cidade.
Por outro lado, do ponto de
vista de um historiador cultural, esses são apenas os episódios mais recentes de uma seqüência muito longa de representações de mitos ou de imagens estereotipadas do Brasil.
Mais precisamente, o que vemos ser representada é uma
longa série de avatares dos
mesmos mitos -em outras palavras, histórias que não são
tanto falsas quanto exageradas.
O melhor e o pior
Nessas histórias, os protagonistas assumem dimensões supra-reais, para melhor ou para
pior. Pois é possível afirmar
que existem em circulação dois
mitos principais relativos ao
Brasil -as imagens complementares, mas opostas, do Brasil como paraíso e do Brasil como inferno.
A história primeira do mito
do Brasil como paraíso foi relatada por Sérgio Buarque de Hollanda, cujo livro brilhante "Visão do Paraíso - Os Motivos
Edênicos no Descobrimento e
Colonização do Brasil" (1958,
ed. Brasiliense) vai completar
50 anos em breve. O mito assumiu formas diversas ao longo
de sua história posterior.
Uma delas é a da terra da "democracia racial", conforme
descrita por Gilberto Freyre
nos anos 1930 e 1940 e reforçada por afro-americanos como
Booker Washington e W.E.B.
Dubois, para quem o Brasil era
uma espécie de utopia que representava tudo o que eles desejavam e de que sentiam falta
nos Estados Unidos.
É por essa razão que a cantora afro-americana Dionne
Warwick optou por radicar-se
em Salvador, dizendo, em entrevista concedida em 2002,
que, "para mim, é o paraíso.
Acho que é ali que Deus vive. Os
valores deles (os brasileiros)
estão todos no lugar certo". Essa versão do mito é elaborada e
reforçada nos romances de Jorge Amado, mais especialmente
em "Tenda dos Milagres"
(1969, ed. Record), e, mais recentemente, em "Brazil" (1994,
Companhia das Letras), de
John Updike.
Uma segunda forma do mito
é a imagem do Brasil como paraíso sexual (quer seja heterossexual, homossexual ou transsexual). Também essa versão
pode ser encontrada em Freyre
e Amado, mas ela é largamente
difundida em mídias diversas.
Suponhamos que você tivesse a idéia de procurar "Brasil +
sexo" na internet. Um clique no
mouse e aparecem mais de 9
milhões de resultados, começando -ou, pelo menos, foi o
que aconteceu quando fiz a experiência recentemente- com
uma série de anúncios de títulos como "Brazil - Sex for Sale"
(Brasil - Sexo à Venda) ou até
mesmo "Big Butt Brazil" (Brasil Bunda Grande).
Esse estereótipo é reforçado,
naturalmente, pela história recente sobre o plano de criação
de um museu do sexo "interativo", "Cidade do Sexo" [trabalho
de final de curso apresentado
na Faculdade de Arquitetura e
Urbanismo da Universidade
Federal do RJ que projeta a
construção de um complexo ao
longo da avenida Princesa Isabel], projetado pelo arquiteto
Igor de Vetyemy e localizado
perto da praia de Copacabana.
Uma terceira e mais inocente
forma do mesmo mito pode ser
encontrada na publicidade de
agências de viagem. Uma busca
na internet usando os termos
"Brasil + paraíso" rapidamente
gera 1,5 milhão de hits, começando por centenas de anúncios de agências de viagens, que
descrevem Natal, por exemplo,
Parati ou as praias brasileiras
de modo geral nesses termos.
Se indagarmos "para quem o
Brasil é um paraíso tal" -como
sociólogos e historiadores sociais devem fazer-, encontraremos uma gama de respostas
que vão desde o tradicional
"paraíso dos mulatos" até o moderno "turista no paraíso".
Não devemos nos esquecer
da idéia do Brasil como porto
seguro para criminosos. Convertendo essa última idéia em
narrativa, podemos descrevê-la
como uma história em três partes: X infringe as leis; X foge para o Brasil; X vive feliz para
sempre.
O caso mais memorável de
personificação dessa idéia é,
com certeza, o de Ronald Biggs,
cujo percurso ganhou status de
mito no filme "Prisoner of Rio"
[de Lech Majewski], de 1988,
mas na vida real o final feliz do
mito foi substituído por doença, pobreza e o retorno à prisão
na Inglaterra.
Dois mitos
Ao longo de seus 500 anos de
existência, esse mito feliz vem
sendo acompanhado por sua
contrapartida infeliz, o mito do
Brasil como inferno. "Inferno
para negros", como diziam nos
tempos coloniais. A versão contemporânea do mito inclui a
corrupção, mas tem em seu primeiro plano a violência.
Quanto à corrupção, os leitores deste jornal podem achar
divertido saber que um episódio de 1999 de "The Bill", uma
telenovela britânica sobre a polícia que está no ar há muito
tempo, incluiu uma parte sobre
o Brasil, mostrando drogas sendo trocadas por uma mala cheia
de algo que se supunha fosse dinheiro mas acabou se revelando ser exemplares da Folha.
Voltando à internet e fazendo uma busca por "Brasil + violência", surgem quase 3 milhões de referências, começando com manchetes como "violência de gangues criminosas
domina Estado brasileiro",
"novas mortes em violência renovada no Brasil" ou "violência
volta a correr solta pelo país".
Essa ênfase na violência é ao
mesmo tempo justa e injusta.
Justa porque Rio e São Paulo
são cidades que têm índices de
homicídios muito altos, mas
também injusta, na medida em
que cidades de outras regiões
do mundo competem com elas
nesse quesito.
A quem culpar por essa injustiça? Antes que o leitor brasileiro conclua que a imprensa
estrangeira deve ser a responsável por esse estereótipo pouco elogioso, vale formular uma
segunda pergunta sociológica:
quem produz ou, em todo caso,
quem incentiva essa associação
entre Brasil e violência?
Recordemo-nos de alguns
dos filmes brasileiros que tiveram mais sucesso no exterior
nos últimos 20 ou 30 anos.
Uma grande parcela deles diz
respeito à violência, de "Pixote" (1981) a "Cidade de Deus" e
"Ônibus 174" (ambos de 2002),
além de "Carandiru" (2003). A
concentração, em dois anos, de
três filmes memoráveis e excelentes voltados para esse tópico gerou no público estrangeiro uma impressão que dificilmente qualquer filme isolado
conseguiria, por si só.
Processo circular
Os diretores, naturalmente,
quiseram fazer filmes sobre
problemas sociais reais das favelas, prisões e de outros lugares, mas uma conseqüência não
pretendida, a partir do momento em que seus filmes foram
exibidos fora do Brasil, foi reforçar a visão estereotipada do
Brasil no exterior.
Trata-se de um processo circular, já que o mito do Brasil
violento incentiva cinemas no
exterior a escolher para exibir
exatamente os filmes brasileiros que focalizam mais diretamente a violência, em lugar de
selecionar filmes que tratam de
outros temas, como "Dias Melhores Virão" (1989), "Carlota
Joaquina" (1994) ou "Zuzu Angel" (2006).
Em certo sentido, portanto,
os brasileiros são cúmplices
dos estrangeiros na criação de
uma auto-imagem pouco elogiosa. Poderíamos até dizer
que, no caso dos mitos de nações ou povos, de maneira geral, os estereótipos externos
não são inteiramente distintos
dos estereótipos locais ou nativos. Pelo contrário -os dois tipos de estereótipo geralmente
interagem.
Voltando aos exemplos que
provocaram o presente artigo,
além da indignação da Riotur, é
evidente que o episódio de "Os
Simpsons" foi inspirado num
repertório que incluía não apenas imagens de crianças de rua
mas também comparações entre pessoas e macacos -e os
próprios brasileiros não se
queixam, às vezes, de sua tendência a macaquear?
Quanto a "Turistas", o melhor modo de ver o filme talvez
seja enxergá-lo como adaptação atualizada do mito mais antigo do Brasil, o mito do canibal.
PETER BURKE é historiador inglês, autor de "O
Que É História Cultural?" (ed. Jorge Zahar). Escreve regularmente na seção "Autores".
Tradução de Clara Allain.
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