São Paulo, domingo, 17 de dezembro de 2006

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+ sociedade

Os turistas aprendizes

De Jorge Amado aos "Simpsons" e ao recente filme "Turistas", estereótipos sobre o Brasil na mídia e nas artes se cristalizam por conivência da própria população

PETER BURKE
COLUNISTA DA FOLHA

Alguns dias atrás li num jornal britânico, o "Guardian", sobre um novo filme de horror de Hollywood intitulado "Turistas" [de John Stockwell]. É a história de oito mochileiros americanos que vão passar férias no Rio de Janeiro, onde são seqüestrados e drogados e têm seus rins retirados e vendidos.
Compreensivelmente, a Riotur estaria preocupada com a notícia do filme, assim como se preocupou com um episódio de "Os Simpsons", "Blame it on Lisa", exibido pela televisão em 2002, no qual turistas americanos eram seqüestrados por um taxista, assaltados por um bando de crianças e atacados por macacos na praia.
Naquela ocasião, o presidente Fernando Henrique Cardoso exigiu um pedido de desculpas e a Embratur ameaçou processar os criadores de "Os Simpsons". Desta vez, numa atitude mais construtiva que na ocasião anterior, a Riotur prometeu buscar a ajuda de uma agência publicitária para melhorar a imagem da cidade.
Por outro lado, do ponto de vista de um historiador cultural, esses são apenas os episódios mais recentes de uma seqüência muito longa de representações de mitos ou de imagens estereotipadas do Brasil. Mais precisamente, o que vemos ser representada é uma longa série de avatares dos mesmos mitos -em outras palavras, histórias que não são tanto falsas quanto exageradas.

O melhor e o pior
Nessas histórias, os protagonistas assumem dimensões supra-reais, para melhor ou para pior. Pois é possível afirmar que existem em circulação dois mitos principais relativos ao Brasil -as imagens complementares, mas opostas, do Brasil como paraíso e do Brasil como inferno.
A história primeira do mito do Brasil como paraíso foi relatada por Sérgio Buarque de Hollanda, cujo livro brilhante "Visão do Paraíso - Os Motivos Edênicos no Descobrimento e Colonização do Brasil" (1958, ed. Brasiliense) vai completar 50 anos em breve. O mito assumiu formas diversas ao longo de sua história posterior.
Uma delas é a da terra da "democracia racial", conforme descrita por Gilberto Freyre nos anos 1930 e 1940 e reforçada por afro-americanos como Booker Washington e W.E.B. Dubois, para quem o Brasil era uma espécie de utopia que representava tudo o que eles desejavam e de que sentiam falta nos Estados Unidos.
É por essa razão que a cantora afro-americana Dionne Warwick optou por radicar-se em Salvador, dizendo, em entrevista concedida em 2002, que, "para mim, é o paraíso. Acho que é ali que Deus vive. Os valores deles (os brasileiros) estão todos no lugar certo". Essa versão do mito é elaborada e reforçada nos romances de Jorge Amado, mais especialmente em "Tenda dos Milagres" (1969, ed. Record), e, mais recentemente, em "Brazil" (1994, Companhia das Letras), de John Updike.
Uma segunda forma do mito é a imagem do Brasil como paraíso sexual (quer seja heterossexual, homossexual ou transsexual). Também essa versão pode ser encontrada em Freyre e Amado, mas ela é largamente difundida em mídias diversas.
Suponhamos que você tivesse a idéia de procurar "Brasil + sexo" na internet. Um clique no mouse e aparecem mais de 9 milhões de resultados, começando -ou, pelo menos, foi o que aconteceu quando fiz a experiência recentemente- com uma série de anúncios de títulos como "Brazil - Sex for Sale" (Brasil - Sexo à Venda) ou até mesmo "Big Butt Brazil" (Brasil Bunda Grande).
Esse estereótipo é reforçado, naturalmente, pela história recente sobre o plano de criação de um museu do sexo "interativo", "Cidade do Sexo" [trabalho de final de curso apresentado na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal do RJ que projeta a construção de um complexo ao longo da avenida Princesa Isabel], projetado pelo arquiteto Igor de Vetyemy e localizado perto da praia de Copacabana.
Uma terceira e mais inocente forma do mesmo mito pode ser encontrada na publicidade de agências de viagem. Uma busca na internet usando os termos "Brasil + paraíso" rapidamente gera 1,5 milhão de hits, começando por centenas de anúncios de agências de viagens, que descrevem Natal, por exemplo, Parati ou as praias brasileiras de modo geral nesses termos. Se indagarmos "para quem o
Brasil é um paraíso tal" -como sociólogos e historiadores sociais devem fazer-, encontraremos uma gama de respostas que vão desde o tradicional "paraíso dos mulatos" até o moderno "turista no paraíso".
Não devemos nos esquecer da idéia do Brasil como porto seguro para criminosos. Convertendo essa última idéia em narrativa, podemos descrevê-la como uma história em três partes: X infringe as leis; X foge para o Brasil; X vive feliz para sempre.
O caso mais memorável de personificação dessa idéia é, com certeza, o de Ronald Biggs, cujo percurso ganhou status de mito no filme "Prisoner of Rio" [de Lech Majewski], de 1988, mas na vida real o final feliz do mito foi substituído por doença, pobreza e o retorno à prisão na Inglaterra.

Dois mitos
Ao longo de seus 500 anos de existência, esse mito feliz vem sendo acompanhado por sua contrapartida infeliz, o mito do Brasil como inferno. "Inferno para negros", como diziam nos tempos coloniais. A versão contemporânea do mito inclui a corrupção, mas tem em seu primeiro plano a violência.
Quanto à corrupção, os leitores deste jornal podem achar divertido saber que um episódio de 1999 de "The Bill", uma telenovela britânica sobre a polícia que está no ar há muito tempo, incluiu uma parte sobre o Brasil, mostrando drogas sendo trocadas por uma mala cheia de algo que se supunha fosse dinheiro mas acabou se revelando ser exemplares da Folha.
Voltando à internet e fazendo uma busca por "Brasil + violência", surgem quase 3 milhões de referências, começando com manchetes como "violência de gangues criminosas domina Estado brasileiro", "novas mortes em violência renovada no Brasil" ou "violência volta a correr solta pelo país". Essa ênfase na violência é ao mesmo tempo justa e injusta.
Justa porque Rio e São Paulo são cidades que têm índices de homicídios muito altos, mas também injusta, na medida em que cidades de outras regiões do mundo competem com elas nesse quesito.
A quem culpar por essa injustiça? Antes que o leitor brasileiro conclua que a imprensa estrangeira deve ser a responsável por esse estereótipo pouco elogioso, vale formular uma segunda pergunta sociológica: quem produz ou, em todo caso, quem incentiva essa associação entre Brasil e violência?
Recordemo-nos de alguns dos filmes brasileiros que tiveram mais sucesso no exterior nos últimos 20 ou 30 anos. Uma grande parcela deles diz respeito à violência, de "Pixote" (1981) a "Cidade de Deus" e "Ônibus 174" (ambos de 2002), além de "Carandiru" (2003). A concentração, em dois anos, de três filmes memoráveis e excelentes voltados para esse tópico gerou no público estrangeiro uma impressão que dificilmente qualquer filme isolado conseguiria, por si só.

Processo circular
Os diretores, naturalmente, quiseram fazer filmes sobre problemas sociais reais das favelas, prisões e de outros lugares, mas uma conseqüência não pretendida, a partir do momento em que seus filmes foram exibidos fora do Brasil, foi reforçar a visão estereotipada do Brasil no exterior.
Trata-se de um processo circular, já que o mito do Brasil violento incentiva cinemas no exterior a escolher para exibir exatamente os filmes brasileiros que focalizam mais diretamente a violência, em lugar de selecionar filmes que tratam de outros temas, como "Dias Melhores Virão" (1989), "Carlota Joaquina" (1994) ou "Zuzu Angel" (2006).
Em certo sentido, portanto, os brasileiros são cúmplices dos estrangeiros na criação de uma auto-imagem pouco elogiosa. Poderíamos até dizer que, no caso dos mitos de nações ou povos, de maneira geral, os estereótipos externos não são inteiramente distintos dos estereótipos locais ou nativos. Pelo contrário -os dois tipos de estereótipo geralmente interagem.
Voltando aos exemplos que provocaram o presente artigo, além da indignação da Riotur, é evidente que o episódio de "Os Simpsons" foi inspirado num repertório que incluía não apenas imagens de crianças de rua mas também comparações entre pessoas e macacos -e os próprios brasileiros não se queixam, às vezes, de sua tendência a macaquear?
Quanto a "Turistas", o melhor modo de ver o filme talvez seja enxergá-lo como adaptação atualizada do mito mais antigo do Brasil, o mito do canibal.


PETER BURKE é historiador inglês, autor de "O Que É História Cultural?" (ed. Jorge Zahar). Escreve regularmente na seção "Autores".
Tradução de Clara Allain.


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