São Paulo, domingo, 18 de janeiro de 2004

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Contra a clicagem burra

A GAME ART DESTRÓI O MITO DE QUE A INTERATIVIDADE OCUPA O PAPEL PRINCIPAL NA PRODUÇÃO ESTÉTICA CRIADA POR MEIOS DIGITAIS

Juliana Monachesi
free-lance para a Folha

As fendas no sistema são o alvo preferido dos artistas contemporâneos. É famoso o trabalho do grupo RTMark, intitulado "Barbie Liberation Organization", que consistia no roubo de bonecas Barbie e G.I.Joes de lojas para trocar os dispositivos vocais entre um e outro e repor os brinquedos nas prateleiras. Em 1999, uma exposição on-line dedicada inteiramente à relação entre arte e jogo -"Cracking the Maze - Game Plug-ins and Patches as Hacker Art" (Abrindo uma Fenda no Labirinto - Acessórios e Modificações de Jogos Como Arte Hacker)- trazia outra obra do RTMark: com a cooperação de um programador da empresa que desenvolveu o jogo "SimCopter", um simulador de vôo, o grupo modificou o figurino de alguns dos personagens, vestindo machões com sunguinhas coloridas. Segundo os artistas, 80 mil cópias do jogo teriam sido distribuídas antes de descobrirem a sabotagem.
Com o crescente desenvolvimento da cultura dos games e o sem-número de possibilidades de apropriação, subversão e expressão que esse universo propicia aos artistas, os jogos se tornaram mais uma linguagem a explorar. Apesar da resistência do meio das artes, que é a mesma em relação à arte on-line em geral, a game art ganhou espaço em instituições como as alemãs ZKM e New Media Institute e a japonesa Intercommunication Center, passou a integrar importantes festivais de arte eletrônica -como o holandês Isea (International Symposium of Eletronic Arts), o escocês Deaf (Dutch Electronic Arts Festivals), o austríaco Ars Electronica, o americano Siggrapho- e foi legitimada por exposições como "Game Show" (2001), no Museu de Arte Contemporânea de Massachusetts, e "Game On" (2002), no Barbican Center, em Londres.
No Brasil o assunto ainda é tabu. A esse respeito, o Mais! entrevistou a especialista em arte digital Giselle Beiguelman, professora do curso de pós-graduação em Comunicação e Semiótica da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, editora da seção "Novo Mundo" da revista eletrônica "Trópico" e criadora do site "Desvirtual" (www.desvirtual.com), onde desenvolve projetos artísticos.

Em que medida videogames ou games on-line podem ser contemplados no campo das artes?
Games e videogames em si não são sinônimo de arte digital. A indústria dos jogos dá vazão a muito lixo e muita coisa interessante. Confunde-se hoje, exaustivamente, rigor técnico e design com o que poderia ser considerado atributo das experiências artísticas que se fazem com mídias digitais e telecomunicações. Nesses quesitos, os games on-line são pródigos, mas isso não implica que possam, como categoria genérica, ser contemplados no campo da arte. Paradoxalmente, os poucos games que poderiam ser discutidos nessa perspectiva são os que põem em questão as "regras dos jogo": o imaginário militarista, os enunciados autoritários e sem ambivalência, o resultado definitivo como regime de agenciamento mobilizatório.
Não existe aí certa contradição? Assim como um certo discurso crítico apenas legitima a "arte interativa" quando ela é cínica em relação à própria participação, os games que subvertem a lógica dos games são os únicos que podem almejar a condição de "arte"?
Vamos primeiro derrubar um mito: o da interatividade como parti pris da arte feita com meios digitais ou em rede. Interatividade tornou-se uma espécie de "commodity" do discurso do "infotainment", no qual prevalece uma dinâmica de clicagem burra em que o que vale é o ponto de chegada, em detrimento do processo -aí mero "mal necessário" para chegar a um fim pré-determinado.
Grosso modo, há questões bem mais interessantes e particulares das novas mídias e mais precisamente das artes on-line: compartilhamento, reconfiguração de atributos e funcionalidades e a discussão de uma estética da transmissão, do trânsito de dados e de fluxo de informações.
Isso posto, vamos então derrubar um outro: não podemos abrir mão da retórica parnasiana -da arte pela arte- para abraçar um segundo fetiche, o do tecnoromantismo, que oscila entre a mitificação do gênio criador -o artista que teve uma idéia- e a do programador -suposto verdadeiro viabilizador do projeto. Além do mais, dado o caráter transdisciplinar e sampleado da cultura digital -usamos programas desenvolvidos por alguém ou baseados em sistemas operacionais criados por outros, conquistas científicas de equipes diversas, repertórios de outras mídias, entre outra gama de ferramentas que jogam papéis decisivos na montagem e distribuição- ,é difícil sustentar essa hierarquia que definiria quem ocupa o centro do trabalho criativo...
Levando essas advertências em consideração, não diria que somente os games que subvertem a lógica dos games são os únicos que poderiam almejar a condição de arte. Diria que os projetos capazes de subverter a identificação clara das competências individuais -o lugar do designer, do programador, do editor e, especialmente, do interator- são os que lidam com as questões mais radicais que a arte produzida com novos meios, pelo seu caráter transdisciplinar e sampleado, colocam. Nesse sentido, o que está em questão hoje no campo das novas mídias são discussões de cunho epistemológico, institucional, mercadológico e estético. Isso tudo põe a crítica da noção de interatividade como clicagem, o tecnoromantismo e, particularmente, a subversão das regras do jogo no centro daquilo que se convencionou chamar game art.
A game art é um movimento que parte dos artistas, que se utilizam desse meio como suporte para criação de uma obra, ou um movimento "contrário" de teóricos da arte abarcarem o fenômeno em suas reflexões?
Doa a quem doer, é preciso reconhecer que os críticos de arte on-line de renome são também criadores profícuos na área. Isso é uma das questões mais interessantes do circuito das artes digitais...
Qual a relação disso com o fato de que muito da produção high-tech tem sido gestada na academia? Nos festivais de mídia eletrônica brasileiros chama a atenção o número de trabalhos que resultam, por exemplo, de projetos de mestrado ou doutorado no programa de comunicação e semiótica da PUC, onde você leciona.
Parece-me que esse fenômeno, do imbricamento de funções (curatoriais, crítica e criativa), está mais ligado à transdiciplinaridade da área e aos traços que definimos grosso modo como centrais na produção com novos meios (discussões que põem em questão as competências e lugares individuais a partir de uma crítica de parâmetros e funcionalidades tecnológicas e de comunicação). Não diria que ela nasce na academia, e sim que dialoga com a universidade, pautando-a e sendo pautada por ela. Há projetos, profundamente marcados pelas relações entre arte e ciência, que, pelo montante de profissionais e recursos que envolvem, demandam uma infra-estrutura impossível de ser inserida em um contexto de produção individual ou em diálogo com empresas de comunicação, que são particulares a outro tipo de pesquisa. Concordo que chama a atenção a presença de projetos gerados no programa de comunicação e semiótica da PUC nos festivais brasileiros, mas isso não é uma regra e tende a ser saudavelmente relativizado pela emergência de outros programas de graduação e pós-graduação.
Existe um marco (uma exposição ou livro etc.) da legitimização dos games como possíveis "objetos" de arte?
O grande marco é "Cracking the Maze" curada por Anne-Marie Schleiner, em 1999, ela mesma o expoente máximo da game art, criadora de "Anime Noir" (2000) e "Velvet-Strike", uma modificação do "Counter-Strike" com finalidades pacifistas e uma das únicas obras de arte on-line na Bienal do Whitney deste ano. A exposição "Killer Instinct", on-line desde novembro último no site do New Museum of Contemporary Art, "Filmtext", de Mark Amerika (2002) e "Ctrl-Space" (1999) da dupla Jodi são também capitais para essa reflexão. No que diz respeito a textos sobre games e arte digital, parece-me que o ensaio "New Media: From Borges to HTML" (2001), do Lev Manovich, é referencial. "Hamlet no Holodeck", de Janet Murray, foi uma obra seminal [lançado no Brasil pela Unesp/Itaú Cultural], introduzindo temas que não eram comuns, como a relação entre games e novas estruturas narrativas.
Manovich defende que os verdadeiros inovadores culturais das últimas décadas são os designers de interface, os programadores de jogos para computador, os diretores de videoclipes e os DJs. Você concorda?
Não. Como disse acima, trocar a retórica tecnoparnasiana pela retórica tecnoromântica é estratégia pouco fértil criticamente. O difícil hoje é refletir nesse campo emergente de práticas culturais, que implodem os limites disciplinares e as hierarquias funcionais, sem ceder ao velho dilema das anterioridades e filiações. Será que é possível pensar a emergência da interface gráfica da Apple, nos anos 80, fora de uma nova dinâmica urbana que vem subvertendo o olhar clássico do ponto de vista único? Ora, não foi a Apple que criou esse mundo de seres multitarefas e plurioculares que somos. Ao contrário, respondeu a ele e, ao responder, contribuiu substancialmente para que todo um regime de leitura e visão de mundo pudesse se articular. Em vez de um raciocínio de causa e efeito, que tende a calcificar estruturas hierárquicas que cada vez mais fazem menos sentido, prefiro um caminho mais complexo que não procure os parteiros do novo tempo, mas sim entender como essas criações com mídias digitais se relacionam dinamicamente com as inúmeras variáveis com que lidam: tecnologia, comunicação, arquitetura de informação, entretenimento e pressupostos estéticos particulares a uma cultura de rede que envolvem compartilhamento, transmissão, delay, códigos, pesquisa científica, edição e toda uma história da cultura e da arte da qual ela se nutre, atualiza e reconfigura.
No contexto brasileiro a resistência pelo meio das artes em acolher a produção em novas mídias começa a ser quebrada por conta do surgimento de instituições culturais voltadas para a área (Itaú Cultural/segmento de web art na Bienal etc.)?
Acho difícil relacionar o Itaú Cultural com o segmento de web arte da Bienal. O Itaú é uma instituição ligada a um grupo que possui um banco e uma empresa de informática, a Itautec, entre outros ramos, e criou uma instituição que calibra sua imagem no mercado de uma maneira muito interessante: fomentando a produção de cultura desenvolvida com meios digitais e eletrônicos. O caso da Bienal é totalmente distinto. A própria terminologia "segmento de web art" denuncia, mais que uma resistência, o quanto esse tipo de arte não foi ainda compreendido no campo das questões que os próprios curadores tomam como pressupostos básicos de seu trabalho: felizmente, não dividem o espaço expositivo em gêneros ou categorias, como segmento fotografia, segmento escultura, segmento pintura, ou vídeo brasileiro, instalações argentinas... Nesse jogo de quebra da resistência, parece-me fundamental lembrar o File, festival independente de linguagem eletrônica, que atrai participantes do mundo todo e, quase como uma guerrilha, ocupa espaços nos museus e instituições estaduais e privados, absorvendo a pesquisa acadêmica e dinamitando essas compartimentações, pontuando seus nexos e distâncias com outras práticas artísticas e científicas.
É possível traçar paralelos entre a game art e outros fenômenos recentes de extrapolação dos limites das "artes visuais", como a web art ou a ciberliteratura?
É impossível compreender a radicalidade da cinescritura de Mark Amerika, por exemplo, fora desse campo. Não se pode ignorar o peso e a leveza da cultura do e-biz para se deliciar com as investidas do grupo Jodi, e é ridículo pretender falar sobre arte on-line sem compreender as formas de agenciamento mais interessantes da game art e daquilo que é mais caro aos games em geral: compartilhamento, tecnologia e novas dinâmicas da arquitetura da informação.
Qual o limite, se é que há, nesses games, entre diversão e criação, entre jogo e arte?
Não acredito que esses limites existem, já que games e web sites respondem a uma dinâmica muito próxima à do cinema; o fato de se prestarem à fruição do lazer e entretenimento não macula suas intenções artísticas. O quanto um filme de arte pode ser diversão depende é do tipo de espectador... Está em cartaz no Yerba Buena Center for the Arts, em San Francisco, uma exposição muito interessante, "Bang the Machine: Computer Gaming Art and Artifacts", que inclui ótima seleção de trabalhos, e um workshop com o grupo alemão Furs, responsável pelo "Painstation" (2001), outro marco da game art.


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