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Contra a clicagem burra
A GAME ART DESTRÓI O MITO DE QUE A INTERATIVIDADE OCUPA O PAPEL PRINCIPAL NA PRODUÇÃO ESTÉTICA CRIADA
POR MEIOS DIGITAIS
Juliana Monachesi
free-lance para a Folha
As fendas no sistema são o alvo preferido dos artistas contemporâneos. É famoso o trabalho do
grupo RTMark, intitulado "Barbie Liberation
Organization", que consistia no roubo de bonecas Barbie e G.I.Joes de lojas para trocar os dispositivos
vocais entre um e outro e repor os brinquedos nas prateleiras. Em 1999, uma exposição on-line dedicada inteiramente à relação entre arte e jogo -"Cracking the
Maze - Game Plug-ins and Patches as Hacker Art"
(Abrindo uma Fenda no Labirinto - Acessórios e Modificações de Jogos Como Arte Hacker)- trazia outra
obra do RTMark: com a cooperação de um programador da empresa que desenvolveu o jogo "SimCopter",
um simulador de vôo, o grupo modificou o figurino de
alguns dos personagens, vestindo machões com sunguinhas coloridas. Segundo os artistas, 80 mil cópias do
jogo teriam sido distribuídas antes de descobrirem a sabotagem.
Com o crescente desenvolvimento da cultura dos games e o sem-número de possibilidades de apropriação,
subversão e expressão que esse universo propicia aos
artistas, os jogos se tornaram mais uma linguagem a explorar. Apesar da resistência do meio das artes, que é a
mesma em relação à arte on-line em geral, a game art
ganhou espaço em instituições como as alemãs ZKM e
New Media Institute e a japonesa Intercommunication
Center, passou a integrar importantes festivais de arte
eletrônica -como o holandês Isea (International
Symposium of Eletronic Arts), o escocês Deaf (Dutch
Electronic Arts Festivals), o austríaco Ars Electronica, o
americano Siggrapho- e foi legitimada por exposições
como "Game Show" (2001), no Museu de Arte Contemporânea de Massachusetts, e "Game On" (2002), no
Barbican Center, em Londres.
No Brasil o assunto ainda é tabu. A esse respeito, o
Mais! entrevistou a especialista em arte digital Giselle
Beiguelman, professora do curso de pós-graduação em
Comunicação e Semiótica da Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo, editora da seção "Novo Mundo"
da revista eletrônica "Trópico" e criadora do site "Desvirtual" (www.desvirtual.com), onde desenvolve projetos artísticos.
Em que medida videogames ou games on-line podem ser
contemplados no campo das artes?
Games e videogames em si não são sinônimo de arte
digital. A indústria dos jogos dá vazão a muito lixo e
muita coisa interessante. Confunde-se hoje, exaustivamente, rigor técnico e design com o que poderia
ser considerado atributo das experiências artísticas
que se fazem com mídias digitais e telecomunicações. Nesses quesitos, os games on-line são pródigos, mas isso não implica que possam, como categoria genérica, ser contemplados no campo da arte. Paradoxalmente, os poucos games que poderiam ser
discutidos nessa perspectiva são os que põem em
questão as "regras dos jogo": o imaginário militarista, os enunciados autoritários e sem ambivalência, o
resultado definitivo como regime de agenciamento
mobilizatório.
Não existe aí certa contradição? Assim como um certo
discurso crítico apenas legitima a "arte interativa" quando ela é cínica em relação à própria participação, os games que subvertem a lógica dos games são os únicos que
podem almejar a condição de "arte"?
Vamos primeiro derrubar um mito: o da interatividade como parti pris da arte feita com meios digitais
ou em rede. Interatividade tornou-se uma espécie de
"commodity" do discurso do "infotainment", no
qual prevalece uma dinâmica de clicagem burra em
que o que vale é o ponto de chegada, em detrimento
do processo -aí mero "mal necessário" para chegar
a um fim pré-determinado.
Grosso modo, há questões bem mais interessantes
e particulares das novas mídias e mais precisamente
das artes on-line: compartilhamento, reconfiguração de atributos e funcionalidades e a discussão de
uma estética da transmissão, do trânsito de dados e
de fluxo de informações.
Isso posto, vamos então derrubar um outro: não
podemos abrir mão da retórica parnasiana -da arte
pela arte- para abraçar um segundo fetiche, o do
tecnoromantismo, que oscila entre a mitificação do
gênio criador -o artista que teve uma idéia- e a do
programador -suposto verdadeiro viabilizador do
projeto. Além do mais, dado o caráter transdisciplinar e sampleado da cultura digital -usamos programas desenvolvidos por alguém ou baseados em
sistemas operacionais criados por outros, conquistas científicas de equipes diversas, repertórios de outras mídias, entre outra gama de ferramentas que jogam papéis decisivos na montagem e distribuição-
,é difícil sustentar essa hierarquia que definiria
quem ocupa o centro do trabalho criativo...
Levando essas advertências em consideração, não
diria que somente os games que subvertem a lógica
dos games são os únicos que poderiam almejar a
condição de arte. Diria que os projetos capazes de
subverter a identificação clara das competências individuais -o lugar do designer, do programador,
do editor e, especialmente, do interator- são os que
lidam com as questões mais radicais que a arte produzida com novos meios, pelo seu caráter transdisciplinar e sampleado, colocam. Nesse sentido, o que
está em questão hoje no campo das novas mídias são
discussões de cunho epistemológico, institucional,
mercadológico e estético. Isso tudo põe a crítica da
noção de interatividade como clicagem, o tecnoromantismo e, particularmente, a subversão das regras
do jogo no centro daquilo que se convencionou chamar game art.
A game art é um movimento que parte dos artistas, que
se utilizam desse meio como suporte para criação de uma
obra, ou um movimento "contrário" de teóricos da arte
abarcarem o fenômeno em suas reflexões?
Doa a quem doer, é preciso reconhecer que os críticos de arte on-line de renome são também criadores
profícuos na área. Isso é uma das questões mais interessantes do circuito das artes digitais...
Qual a relação disso com o fato de que muito da produção
high-tech tem sido gestada na academia? Nos festivais
de mídia eletrônica brasileiros chama a atenção o número de trabalhos que resultam, por exemplo, de projetos
de mestrado ou doutorado no programa de comunicação
e semiótica da PUC, onde você leciona.
Parece-me que esse fenômeno, do imbricamento de
funções (curatoriais, crítica e criativa), está mais ligado à transdiciplinaridade da área e aos traços que definimos grosso modo como centrais na produção
com novos meios (discussões que põem em questão
as competências e lugares individuais a partir de
uma crítica de parâmetros e funcionalidades tecnológicas e de comunicação). Não diria que ela nasce
na academia, e sim que dialoga com a universidade,
pautando-a e sendo pautada por ela. Há projetos,
profundamente marcados pelas relações entre arte e
ciência, que, pelo montante de profissionais e recursos que envolvem, demandam uma infra-estrutura
impossível de ser inserida em um contexto de produção individual ou em diálogo com empresas de
comunicação, que são particulares a outro tipo de
pesquisa. Concordo que chama a atenção a presença
de projetos gerados no programa de comunicação e
semiótica da PUC nos festivais brasileiros, mas isso
não é uma regra e tende a ser saudavelmente relativizado pela emergência de outros programas de graduação e pós-graduação.
Existe um marco (uma exposição ou livro etc.) da legitimização dos games como possíveis "objetos" de arte?
O grande marco é "Cracking the Maze" curada por
Anne-Marie Schleiner, em 1999, ela mesma o expoente máximo da game art, criadora de "Anime
Noir" (2000) e "Velvet-Strike", uma modificação do
"Counter-Strike" com finalidades pacifistas e uma
das únicas obras de arte on-line na Bienal do Whitney deste ano. A exposição "Killer Instinct", on-line
desde novembro último no site do New Museum of
Contemporary Art, "Filmtext", de Mark Amerika
(2002) e "Ctrl-Space" (1999) da dupla Jodi são também capitais para essa reflexão. No que diz respeito a
textos sobre games e arte digital, parece-me que o
ensaio "New Media: From Borges to HTML" (2001),
do Lev Manovich, é referencial. "Hamlet no Holodeck", de Janet Murray, foi uma obra seminal [lançado no Brasil pela Unesp/Itaú Cultural], introduzindo temas que não eram comuns, como a relação
entre games e novas estruturas narrativas.
Manovich defende que os verdadeiros inovadores culturais das últimas décadas são os designers de interface, os
programadores de jogos para computador, os diretores
de videoclipes e os DJs. Você concorda?
Não. Como disse acima, trocar a retórica tecnoparnasiana pela retórica tecnoromântica é estratégia
pouco fértil criticamente. O difícil hoje é refletir nesse campo emergente de práticas culturais, que implodem os limites disciplinares e as hierarquias funcionais, sem ceder ao velho dilema das anterioridades e filiações. Será que é possível pensar a emergência da interface gráfica da Apple, nos anos 80, fora de
uma nova dinâmica urbana que vem subvertendo o
olhar clássico do ponto de vista único? Ora, não foi a
Apple que criou esse mundo de seres multitarefas e
plurioculares que somos. Ao contrário, respondeu a
ele e, ao responder, contribuiu substancialmente para que todo um regime de leitura e visão de mundo
pudesse se articular. Em vez de um raciocínio de
causa e efeito, que tende a calcificar estruturas hierárquicas que cada vez mais fazem menos sentido,
prefiro um caminho mais complexo que não procure os parteiros do novo tempo, mas sim entender como essas criações com mídias digitais se relacionam
dinamicamente com as inúmeras variáveis com que
lidam: tecnologia, comunicação, arquitetura de informação, entretenimento e pressupostos estéticos
particulares a uma cultura de rede que envolvem
compartilhamento, transmissão, delay, códigos,
pesquisa científica, edição e toda uma história da
cultura e da arte da qual ela se nutre, atualiza e reconfigura.
No contexto brasileiro a resistência pelo meio das artes
em acolher a produção em novas mídias começa a ser
quebrada por conta do surgimento de instituições culturais voltadas para a área (Itaú Cultural/segmento de web art na Bienal etc.)?
Acho difícil relacionar o Itaú Cultural com o segmento de web arte da Bienal. O Itaú é uma instituição ligada a um grupo que possui um banco e uma
empresa de informática, a Itautec, entre outros ramos, e criou uma instituição que calibra sua imagem
no mercado de uma maneira muito interessante: fomentando a produção de cultura desenvolvida com
meios digitais e eletrônicos. O caso da Bienal é totalmente distinto. A própria terminologia "segmento
de web art" denuncia, mais que uma resistência, o
quanto esse tipo de arte não foi ainda compreendido
no campo das questões que os próprios curadores
tomam como pressupostos básicos de seu trabalho:
felizmente, não dividem o espaço expositivo em gêneros ou categorias, como segmento fotografia, segmento escultura, segmento pintura, ou vídeo brasileiro, instalações argentinas... Nesse jogo de quebra
da resistência, parece-me fundamental lembrar o File, festival independente de linguagem eletrônica,
que atrai participantes do mundo todo e, quase como uma guerrilha, ocupa espaços nos museus e instituições estaduais e privados, absorvendo a pesquisa acadêmica e dinamitando essas compartimentações, pontuando seus nexos e distâncias com outras
práticas artísticas e científicas.
É possível traçar paralelos entre a game art e outros fenômenos recentes de extrapolação dos limites das "artes
visuais", como a web art ou a ciberliteratura?
É impossível compreender a radicalidade da cinescritura de Mark Amerika, por exemplo, fora desse
campo. Não se pode ignorar o peso e a leveza da cultura do e-biz para se deliciar com as investidas do
grupo Jodi, e é ridículo pretender falar sobre arte on-line sem compreender as formas de agenciamento
mais interessantes da game art e daquilo que é mais
caro aos games em geral: compartilhamento, tecnologia e novas dinâmicas da arquitetura da informação.
Qual o limite, se é que há, nesses games, entre diversão e
criação, entre jogo e arte?
Não acredito que esses limites existem, já que games
e web sites respondem a uma dinâmica muito próxima à do cinema; o fato de se prestarem à fruição do
lazer e entretenimento não macula suas intenções
artísticas. O quanto um filme de arte pode ser diversão depende é do tipo de espectador... Está em cartaz
no Yerba Buena Center for the Arts, em San Francisco, uma exposição muito interessante, "Bang the
Machine: Computer Gaming Art and Artifacts", que
inclui ótima seleção de trabalhos, e um workshop
com o grupo alemão Furs, responsável pelo "Painstation" (2001), outro marco da game art.
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