São Paulo, domingo, 18 de janeiro de 2004

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Mosaico de memórias

"Exílio e Literatura" analisa o percurso e a atuação de uma série de escritores e jornalistas de língua alemã exilados no Brasil no período nazista

Susana Kampff Lages
especial para a Folha

Tudo o que resta a um homem é ele mesmo e a sua língua." A definição lapidar de Joseph Brodsky da situação do exilado poderia servir de glosa à trajetória dos intelectuais de língua alemã apresentados no livro "Exílio e Literatura -Escritores de Fala Alemã Durante a Época do Nazismo".
Publicado na Alemanha em 1992, esse estudo de Izabela Furtado Kestler, professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro, vem à luz num momento em que o interesse pelo tema da memória, pela história das mentalidades, do cotidiano e das minorias operaram uma mudança nos padrões tradicionais de revisitar o passado.
O foco do trabalho é, como anunciado no subtítulo, o percurso e a atuação de uma série de escritores e jornalistas de língua alemã exilados no Brasil no período da ditadura nazista [1933-45]. A discussão que serve de pano de fundo para a pesquisa da autora é a da assim chamada "literatura do exílio", a qual se distingue da literatura de viagem ou de e/imigração justamente pelo fato de seus protagonistas terem sido obrigados a se exilar em razão de motivos políticos (perseguição política propriamente dita e perseguição a pessoas de origem judaica, não só judeus, mas também aos "católicos não-arianos").
A autora define o caráter de sua obra: "Tem-se às vezes a sensação de se estar diante das pedras soltas de um mosaico" (pág.15). Ou seja, o material apresentado é fragmentário, caberá ao leitor preencher as lacunas a partir das pistas que sobreviveram ao tempo, informações e documentos que nessa obra encontramos reunidos pela primeira vez de forma sistemática. Resultado de pesquisa em arquivos, bibliotecas e da comunicação com protagonistas diretos ou de seus descendentes, a obra constitui-se sem dúvida numa referência para a pesquisa sobre temas ou período afins.
Ela permite ao leitor visualizar de modo preciso as dificuldades que cada um desses intelectuais exilados teve de enfrentar em seu périplo desesperado e seu destino, nem sempre alentador: além do suicídio de Stefan Zweig e sua mulher, há outros percursos e destinos infelizes, como o da poeta Paula Ludwig, que, como sublinha a autora, precisa ter sua obra reavaliada. Ou seja, não só as pessoas, também as obras tiveram o triste destino do esquecimento (até hoje o romance "Der Schmelztiegel" [o cadinho], de Marthe Brill, mãe da pintora Alice Brill, espera publicação entre nós).
O livro abre com um panorama histórico, em que as relações políticas e econômicas entre Brasil e Alemanha são sucintamente descritas, dando o contexto maior em que se movimentaram os protagonistas letrados do exílio brasileiro. Descreve ademais os diversos impasses gerados pelas ambiguidades do governo Vargas e dos funcionários de suas instituições em relação a emigrantes provindos dos países de língua alemã. Um comentário sobre as duvidosas leis sobre imigração no período completa essa primeira parte.
Em certa medida, o trabalho cumpre o desejo subjacente à filosofia da história de Walter Benjamin: dar conta da história ou, em outras palavras, contar (e resgatar) a história de parte dos esquecidos da história; dar nome e voz a tantos escritores destinados ao anonimato (e diante de tantos nomes e tantos destinos, como faz falta um índice onomástico!). Além das trajetórias pessoais, o livro descreve a atuação dos vários grupos políticos formados pelos exilados alemães e austríacos no Rio de Janeiro, em São Paulo e Porto Alegre.
As atividades antinazistas por eles desenvolvidas evidenciam as diferenças ideológicas que permeavam os debates, inclusive suas intersecções com grupos de exilados na Argentina e no México. Finalmente, essa seção se fecha com um comentário sobre o teatro de língua alemã no exílio brasileiro, relativamente tardio e assolado por divergências e percalços de caráter ideológico entre seus promotores. A parte final trata da obra dos principais autores que escreveram no exílio brasileiro, com destaque para aqueles que tomaram o Brasil como objeto de seus escritos. O autor mais conhecido é naturalmente Stefan Zweig; os outros dois autores comentados, menos conhecidos, são Ulrich Becher e Hugo Simon. Há ainda um apêndice com documentos de interesse, entre eles a circular enviada aos participantes do Grupo Görgen, que mostra as dificuldades e os morosos preparativos para uma viagem de fuga, a partir do exemplo desse grupo salvo por intervenção do Vaticano.
Merece destaque a referência às figuras de Otto Maria Carpeaux, Anatol Rosenfeld e Vilém Flusser, que deixaram marcas profundas no panorama intelectual brasileiro (o caso de Flusser é paradigmático: apenas recentemente sua obra começou a ser publicada e estudada entre nós, depois de amplamente conhecida e comentada no contexto literário e filosófico alemão).
Embora não trate diretamente das questões teóricas que o tema da literatura do exílio coloca, o livro em muitos pontos alude a alguns temas centrais hoje para os estudos literários em geral: a relação entre literatura e história, o papel da autobiografia e da literatura de testemunho como gêneros que põem em xeque os conceitos tradicionais tanto de literatura quanto de história. Se no futuro a autora enfrentar algumas dessas questões (nessa obra elas precisaram ficar em segundo plano, diante do volume dos documentos), o leitor será chamado a uma nova espécie de reflexão. A partir dela deverá ser possível escutar, mais incisiva, a voz da autora, que aqui se ouve muito discreta por trás de cada informação apresentada, de cada história contada, ao mover de cada nova peça do mosaico. Se afinal é a metáfora do mosaico a mais apta a descrever o caráter da obra, talvez isso se deva ao fato de ressoarem na palavra "mosaico", em sua etimologia, outras duas palavras: "museu" e "musa". A história e a arte da literatura se cruzam assim na figura que, segundo a própria autora, é a que melhor define seu livro.


Susana Kampff Lages é ensaísta, autora de "Walter Benjamin - Tradução e Melancolia" (Edusp). Traduziu "O Desaparecido ou Amerika" (ed. 34), de Kafka.


Exílio e Literatura
296 págs., R$ 35 de Izabela Furtado Kestler. Edusp (av. Professor Luciano Gualberto, travessa J, 374, CEP 05508-900, SP, tel. 0/ xx/11/ 3091-4008).



Texto Anterior: + livros: Os excessos do imaginário
Próximo Texto: Lançamentos
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.