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Mosaico de memórias
"Exílio e Literatura" analisa o percurso e a atuação de uma série de escritores
e jornalistas de língua alemã exilados no Brasil no período nazista
Susana Kampff Lages
especial para a Folha
Tudo o que resta a um homem é ele
mesmo e a sua língua." A definição lapidar de Joseph Brodsky da
situação do exilado poderia servir
de glosa à trajetória dos intelectuais de
língua alemã apresentados no livro "Exílio e Literatura -Escritores de Fala Alemã
Durante a Época do Nazismo".
Publicado na Alemanha em 1992, esse
estudo de Izabela Furtado Kestler, professora da Universidade Federal do Rio
de Janeiro, vem à luz num momento em
que o interesse pelo tema da memória,
pela história das mentalidades, do cotidiano e das minorias operaram uma mudança nos padrões tradicionais de revisitar o passado.
O foco do trabalho é, como anunciado
no subtítulo, o percurso e a atuação de
uma série de escritores e jornalistas de
língua alemã exilados no Brasil no período da ditadura nazista [1933-45]. A discussão que serve de pano de fundo para a
pesquisa da autora é a da assim chamada
"literatura do exílio", a qual se distingue
da literatura de viagem ou de e/imigração justamente pelo fato de seus protagonistas terem sido obrigados a se exilar
em razão de motivos políticos (perseguição política propriamente dita e perseguição a pessoas de origem judaica, não
só judeus, mas também aos "católicos
não-arianos").
A autora define o caráter de sua obra:
"Tem-se às vezes a sensação de se estar
diante das pedras soltas de um mosaico"
(pág.15). Ou seja, o material apresentado
é fragmentário, caberá ao leitor preencher as lacunas a partir das pistas que sobreviveram ao tempo, informações e documentos que nessa obra encontramos
reunidos pela primeira vez de forma sistemática. Resultado de pesquisa em arquivos, bibliotecas e da comunicação
com protagonistas diretos ou de seus
descendentes, a obra constitui-se sem
dúvida numa referência para a pesquisa
sobre temas ou período afins.
Ela permite ao leitor visualizar de modo preciso as dificuldades que cada um
desses intelectuais exilados teve de enfrentar em seu périplo desesperado e seu
destino, nem sempre alentador: além do
suicídio de Stefan Zweig e sua mulher, há
outros percursos e destinos infelizes, como o da poeta Paula Ludwig, que, como
sublinha a autora, precisa ter sua obra
reavaliada. Ou seja, não só as pessoas,
também as obras tiveram o triste destino
do esquecimento (até hoje o romance
"Der Schmelztiegel" [o cadinho], de
Marthe Brill, mãe da pintora Alice Brill,
espera publicação entre nós).
O livro abre com um panorama histórico, em que as relações políticas e econômicas entre Brasil e Alemanha são sucintamente descritas, dando o contexto
maior em que se movimentaram os protagonistas letrados do exílio brasileiro.
Descreve ademais os diversos impasses
gerados pelas ambiguidades do governo
Vargas e dos funcionários de suas instituições em relação a emigrantes provindos dos países de língua alemã. Um comentário sobre as duvidosas leis sobre
imigração no período completa essa primeira parte.
Em certa medida, o trabalho cumpre o
desejo subjacente à filosofia da história
de Walter Benjamin: dar conta da história ou, em outras palavras, contar (e resgatar) a história de parte dos esquecidos
da história; dar nome e voz a tantos escritores destinados ao anonimato (e
diante de tantos nomes e tantos destinos, como faz falta um índice onomástico!). Além das trajetórias pessoais, o livro descreve a atuação dos vários grupos
políticos formados pelos exilados alemães e austríacos no Rio de Janeiro, em
São Paulo e Porto Alegre.
As atividades antinazistas por eles desenvolvidas evidenciam as diferenças
ideológicas que permeavam os debates,
inclusive suas intersecções com grupos
de exilados na Argentina e no México.
Finalmente, essa seção se fecha com um
comentário sobre o teatro de língua alemã no exílio brasileiro, relativamente
tardio e assolado por divergências e percalços de caráter ideológico entre seus
promotores. A parte final trata da obra
dos principais autores que escreveram
no exílio brasileiro, com destaque para
aqueles que tomaram o Brasil como objeto de seus escritos. O autor mais conhecido é naturalmente Stefan Zweig; os
outros dois autores comentados, menos
conhecidos, são Ulrich Becher e Hugo
Simon. Há ainda um apêndice com documentos de interesse, entre eles a circular enviada aos participantes do Grupo
Görgen, que mostra as dificuldades e os
morosos preparativos para uma viagem
de fuga, a partir do exemplo desse grupo
salvo por intervenção do Vaticano.
Merece destaque a referência às figuras
de Otto Maria Carpeaux, Anatol Rosenfeld e Vilém Flusser, que deixaram marcas profundas no panorama intelectual
brasileiro (o caso de Flusser é paradigmático: apenas recentemente sua obra
começou a ser publicada e estudada entre nós, depois de amplamente conhecida e comentada no contexto literário e
filosófico alemão).
Embora não trate diretamente das
questões teóricas que o tema da literatura do exílio coloca, o livro em muitos
pontos alude a alguns temas centrais hoje para os estudos literários em geral: a
relação entre literatura e história, o papel
da autobiografia e da literatura de testemunho como gêneros que põem em xeque os conceitos tradicionais tanto de literatura quanto de história. Se no futuro
a autora enfrentar algumas dessas questões (nessa obra elas precisaram ficar em
segundo plano, diante do volume dos
documentos), o leitor será chamado a
uma nova espécie de reflexão. A partir
dela deverá ser possível escutar, mais incisiva, a voz da autora, que aqui se ouve
muito discreta por trás de cada informação apresentada, de cada história contada, ao mover de cada nova peça do mosaico. Se afinal é a metáfora do mosaico
a mais apta a descrever o caráter da obra,
talvez isso se deva ao fato de ressoarem
na palavra "mosaico", em sua etimologia, outras duas palavras: "museu" e
"musa". A história e a arte da literatura
se cruzam assim na figura que, segundo a
própria autora, é a que melhor define seu
livro.
Susana Kampff Lages é ensaísta, autora de "Walter Benjamin - Tradução e Melancolia" (Edusp).
Traduziu "O Desaparecido ou Amerika" (ed. 34), de
Kafka.
Exílio e Literatura
296 págs., R$ 35
de Izabela Furtado Kestler. Edusp (av. Professor
Luciano Gualberto, travessa J, 374, CEP 05508-900, SP, tel. 0/ xx/11/ 3091-4008).
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