São Paulo, domingo, 18 de janeiro de 2004

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+ cultura

Decadência da dimensão "sapiencial" explica por que as grandes tradições religiosas estão perdendo vigor

A CRISE DAS RELIGIÕES

Mateus Soares de Azevedo
especial para a Folha

Um dos principais fatores que respondem pela perda de vigor, decadência e, finalmente, trágica crise das religiões tradicionais é a indiferença e mesmo uma arraigada desconfiança em relação à sua dimensão de conhecimento, ou "sapiencial". A religião em geral busca dirigir-se a todos os homens sem distinção, para lhes oferecer os "meios de salvação", e não explicações (metafísicas) sobre a verdade pura e a natureza profunda das coisas -apesar de essas explicações serem oferecidas indiretamente e simbolicamente. No caso do cristianismo, especialmente em sua vertente ocidental latina, essa característica constitui uma feição particularmente proeminente, pelo menos desde a época do Renascimento (séculos 15 e 16), que, não obstante ter propiciado um reavivamento do interesse pela sabedoria antiga, trouxe como consequência inevitável a "morte" de elementos cruciais, como a arte e cultura medievais, como expostas nas catedrais góticas, nos ícones bizantinos e também em obras-primas como a "Divina Comédia", de Dante, e sobretudo no cerne espiritual intangível dessas manifestações. Essa dimensão "sapiencial" não deve ser confundida com a mera informação quantitativa, a habilidade cerebral ou o estudo livresco, já que é muito mais profunda e engloba dimensões qualitativas. Desde a época em que a influência de sábios como mestre Eckhart (1260-1327) e Dante Alighieri (1265-1321) foi se debilitando, um tipo de fé mais e mais emocional e convencional tem predominado, levando a uma visão das coisas que está situada num nível bem abaixo da real capacidade e das necessidades da mente humana. A despeito de sua importância, essa "fé sentimental" -ou antes, "fideísmo"-, não acompanhada por um componente intelectual, constitui apenas parte da perspectiva religiosa integral. Na maioria das vezes, a inteligência é vista como manifestação de um suposto "orgulho intelectual", algo que constitui uma contradição de termos. Pois a verdadeira inteligência se caracteriza pela capacidade de ver as coisas como elas realmente são, portanto pela objetividade, o que exclui o orgulho, precisamente. Nos dias de hoje, a maior parte dos argumentos convencionais da religião está psicologicamente desgastada -como argutamente apontou o filósofo das religiões alemão Frithjof Schuon (1907-1998)-, com as considerações de ordem superior sendo relegadas a uma sorte de limbo. A esse respeito, o autor anglo-indiano Ananda Coomaraswamy (1887-1947) observou que "a religião é apresentada de uma maneira tão sentimental que não surpreende que o melhor das novas gerações se revolte; a solução é apresentá-la em suas formas intelectualmente desafiadoras". Não há dúvida de que, em nossos dias, uma indiferença e mesmo um calculado desdém pelo sagrado está por assim dizer "no ar", especialmente entre as "classes gritantes". Isso ocorre não apenas porque o homem moderno típico não possui sensibilidade nem intuição da dimensão sagrada das coisas, tampouco a escola moderna transmite o menor ensinamento acerca disso, mas também porque a própria religião tem há muito se valido de formas superficiais e mesmo banais para apresentar seu legado, formas que estão muito distantes do "intelectualmente desafiador" propugnado por Coomaraswamy. Se parece certo que, para falar à generalidade dos homens, as exortações de tipo não-intelectual são as mais apropriadas, ainda há, não obstante, homens e mulheres -talvez mais do poderíamos crer- que se movem antes por considerações de outra ordem e que têm de ser nutridos com alimento intelectualmente "sólido".

Deletéria
Ademais, quando afastada ou privada do elemento espiritual, a intelectualidade acaba por exercer uma influência deletéria sobre o restante da sociedade, como se pode verificar sem dificuldade pela ação de parcela ponderável da intelligentsia Ocidental ao longo do último século, por exemplo no apoio ao comunismo.
Se o binômio "sentimentalismo-fideísmo" parece ser o mais apropriado para mover a vontade de muitos, deve-se não obstante também levar em conta o par "conhecimento-fé", sem o qual a inteligência pode se voltar contra a espiritualidade. Se deixada completamente entregue a si mesma, a inteligência puramente cerebral acaba por se consumir em uma agitação mental sem fim e sem utilidade, como a filosofia e a arte especificamente modernas mostram à exaustão. A fé age então como um elemento estabilizador; ela "acalma" o discernimento.
Nem sempre, contudo, o binômio "conhecimento-fé" tem sido visto em estado de contradição interna. O entendimento de que são necessariamente parceiros tem irrompido aqui e ali, de forma intermitente desde a época do Renascimento, especialmente com a idéia da "filosofia perene", que surgiu justamente nesse momento. O primeiro autor a se valer dessa designação foi, curiosamente, um bibliotecário do Vaticano no século 16, Agostinho Steuco. Sacerdote católico profundamente influenciado pela sabedoria grega e a teologia judaica, Steuco concebia a religião primariamente como conhecimento, não como "serviço social", nem como atividade política ou como um sistema meramente moral e ético.
A tradição cristã, de fato, possui, uma dimensão pouco conhecida e por assim dizer "sutil", que é a espiritualidade "sapiencial" ou "gnóstica". Apesar de o termo "gnose" ainda assustar alguns, a realidade que ele significa não deve ser confundida com a heresia gnosticista dos primeiros séculos. Um "padre da Igreja" como Clemente de Alexandria distinguiu de forma enfática, no seu "Stromata" ("Miscelânea"), a gnose autêntica da espúria. E o próprio são Paulo apóstolo, na "Epístola aos Romanos" (11,33), referiu-se à gnose como "conhecimento de Deus" ("gnôsis tou Theou"). Eckhart, o dominicano alemão da Idade Média, e o poeta místico Ângelo Silésio, autor de "O Peregrino Querubínico", são outros dos principais porta-vozes dessa perspectiva. No Oriente, segue-se um caminho similar.
Em todas as grandes religiões mundiais, como budismo, islamismo, judaísmo e hinduísmo, essa dimensão tem tido destacados porta-vozes ao longo dos séculos. No Ocidente contemporâneo, despontam as figuras do filósofo orientalista francês René Guénon (1887-1951), dos já mencionados Frithjof Schuon e Ananda Coomaraswamy, além do historiador da arte suíço Titus Burckhardt (1908-1984). Distintamente dos filósofos pós-cartesianos e pós-kantianos, eles não pretenderam inventar nem propagar um "sistema" pessoal próprio, mas antes transmitir, em novas formas, idéias e ideais presentes nas diversas fases da história e em diferentes latitudes. Suas obras buscam incorporar ao sagrado a dimensão do conhecimento, oferecendo uma tenaz resistência ao crescente divórcio que verificamos hoje entre inteligência e espiritualidade.
A filosofia perene, assim, não busca transmitir idéias e concepções de uma única cultura ou civilização, mas sim um patrimônio que não conhece fronteiras de povos ou de épocas, saber que, justamente a partir da época de Steuco, passou a ser conhecido como "philosophia perennis". Suas fontes mais profundas são constituídas pelas diversas escrituras do Oriente e do Ocidente, como a Torá e os Evangelhos, o Alcorão, o "Tao-Te-King", os "Vedas", os "Analectos" de Confúcio, bem como pelos escritos de seus grandes mestres, como Shankara, Platão, Pitágoras, Ibn Arabi, mestre Eckhart e Chuang Tsu. Essa perspectiva universalista vem despertando crescente interesse, chegando aos nossos dias como uma grande esperança para o urgente resgate da dimensão intelectiva a que nos referimos no início do artigo.


Mateus Soares de Azevedo é jornalista e ensaísta, autor de "Mística Islâmica" (Ed. Vozes).


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