São Paulo, domingo, 18 de janeiro de 2004

Texto Anterior | Índice

Ponto de fuga

Modos de ver

Jorge Coli
especial para a Folha

No Museu Nacional de Belas Artes do Rio de Janeiro há uma sala consagrada à paisagem no Brasil dos tempos coloniais. Ela reúne uma série de quadros holandeses do século 17, cujo autor é Frans Post (1612-1680). A essas pinturas, acrescentou-se uma outra tela, de origem portuguesa. O autor é anônimo e sua obra deve datar de meados dos Setecentos.
Há diferenças definitivas entre os dois universos picturais. Assim, a desproporção na quantidade: de um lado, uma série; de outro, uma única obra. Nisso, a coleção reflete o que de fato ocorreu: a cultura portuguesa, do sul da Europa, clássica e católica, mostra-se, sobretudo, dominada pela erudição, pelo saber dos livros. A paisagem não é o seu forte. Ela não vê o que vê, mas o que está na mente.
Ao contrário, os quadros de Post dão a ver o que o pintor via. É muito impressionante constatar que, nos poucos anos de sua presença no Brasil, os holandeses tenham captado testemunhos visuais mais numerosos e significativos do que os lusos, em séculos de colonização. A tela portuguesa segue as regras clássicas, que impõem o acréscimo de uma narração elevada ao tema neutro das montanhas, árvores ou rios: no caso, trata-se da morte do padre Filipe Bourel perto de Olinda.
Impressiona mais que tudo o caráter "mental" do cenário exótico: as palmeiras são as mesmas que estão presentes na arte do Ocidente desde, pelo menos, o século 15; a arara é um motivo decorativo. A cabana é idêntica às que apareceram, no Renascimento, para ilustrar as teorias de Vitrúvio sobre as origens primitivas da arquitetura.

Norte e sul - É nas ilustrações dos tratados de Vitrúvio que se deve buscar a origem desse fascinante quadro, "Morte do Padre Filipe Bourel", do MNBA. Mesmo os personagens que completam a cena se encontravam já naquelas gravuras.
Quando Post queria pintar um mocambo, transpunha, em imagem, a palhoça que ele vira. Quando o português pintava a cabana do padre Bourel, ia atrás da "priscorum hominum vita", de Vitrúvio, ilustrada pelos italianos. Talvez nem mesmo tenha visitado o Brasil. Seja como for, não importa: o quadro provém, em última e primeira instância, da cultura do artista, e não do lugar observado.
A distinção fundamental entre construir uma imagem pela observação ou construí-la a partir de um conhecimento erudito, entre ver e conceber, entre descrever e narrar, caracteriza a oposição que ocorre na arte européia do século 17: de um lado os holandeses, "realistas"; de outro, os italianos, os mediterrâneos, que faziam da pintura uma "cosa mentale".
Essa tensão foi aprofundada na atual história da arte graças a Svetlana Alpers, que a renova em seu livro "A Arte de Descrever", publicado nos EUA em 1983 e, na edição brasileira, pela Edusp em 1999. É um texto efervescente, inscrevendo a cultura pictural holandesa da época de Rembrandt e de Vermeer nas formas mais diversas de observar o mundo, graças aos instrumentos da ciência ótica, graças à cartografia, graças a uma singular relação mantida entre imagem e escrita, entre a pintura e a filosofia da visão, graças a uma concepção do espaço diferente daquela inventada pela perspectiva italiana.

Projeção - Em "A Arte de Descrever", Svetlana Alpers analisa o emprego de um antigo instrumento que auxiliava os pintores e que os historiadores conhecem muito bem: a câmara escura, ou obscura. Ela permitia projetar sobre uma superfície o reflexo do mundo. É o mesmo princípio da fotografia: apenas, não se conseguia preservar a imagem. Mais recentemente, David Hockney retomou essa questão em seu livro "O Conhecimento Secreto" (Cosac e Naify).

Labor - Os textos de Svetlana Alpers são tão estimulantes, que se inventou, a respeito deles, a apelação de nova história da arte. Alpers responde: "Suspeito de programas e etiquetas como a nova história da arte. Resisto à denominação. Faço meu trabalho e não tenho consciência se o que estou fazendo é parte da nova história da arte. Estudo arte. É uma coisa difícil de ser feita. Tento, simplesmente, fazer isso da melhor maneira que posso".


Jorge Coli é historiador da arte.
E-mail: jorgecoli@uol.com.br



Texto Anterior: + memória: O último legado de Clóvis Moura
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.