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O carteiro
O crítico literário George Steiner, que diz ter como função "entregar as cartas" dos grandes escritores, avalia as mudanças das formas criativas no último século, defende o valor artístico da TV e afirma que Shakespeare, hoje, seria roteirista e aprovaria uma versão em quadrinhos para "Hamlet"
Raimundo Paccó - 4.out.06/ Folha Imagem
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A instalação "Babel", do artista plástico Cildo Meirelles, em imagem de quando esteve exposta na Estação Pinacoteca, em São Paulo
JUAN CRUZ
George Steiner está
prestes a completar 80 anos e publicou no ano passado
"My Unwritten
Books" (meus livros não escritos, New Directions, 192 págs.,
US$ 23,95, R$ 56), que causou
escândalo, sobretudo no Reino
Unido, de cuja Universidade de
Cambridge ele foi professor
respeitadíssimo.
O escândalo o diverte porque, imagina, deve-se à surpresa sentida por alguns quando
observaram que esse livro do
professor Steiner, um dos
grandes filósofos europeus, cuja idade avançada é desmentida
por sua mente extremamente
desperta, relata experiências
sexuais muito explícitas (e próprias) sem que o pudor o leve a
moderar sua linguagem.
O ensaio que motivou o escândalo diz respeito à linguagem e faz a defesa das línguas
minoritárias, algumas das
quais Steiner imagina que devam ser excelentes para a prática do sexo.
O texto começa em tom contundente: "Como é a vida sexual de um surdo-mudo? Com
que incitações e cadência ele se
masturba? Como o surdo-mudo vive a libido e a consumação?". É claro que a obra não é
apenas isso (nem se limita a esse ensaio): é um olhar inteligente sobre os assuntos aos
quais Steiner alguma vez quis
dedicar um livro (mais precisamente, sete) e que acabaram ficando pelo caminho.
PERGUNTA - Quer dizer que se escandalizaram?
GEORGE STEINER - Sim, muitos.
Nunca antes alguém perguntou
como é a vida sexual de um surdo-mudo. Já o fizeram em relação aos cegos, mas nunca aos
surdos-mudos.
PERGUNTA - É uma pergunta inquietante.
STEINER - Porque as perguntas
importantes com frequência
são inquietantes. Existe um comentário lindamente desagradável de Heidegger sobre o porquê de a ciência ser tão enfadonha. Ele disse que é porque ela
só tem respostas.
PERGUNTA - Havia uma pichação
no Equador que dizia: "Quando finalmente tínhamos as respostas,
nos mudaram as perguntas".
STEINER - É verdade. Mas as
perguntas podem ser inquietantes, e as perguntas relativas
ao erótico o são.
PERGUNTA - Ao ler esse ensaio em
especial, "As Linguagens de Eros",
poderíamos pensar que o sr. não
tem pudor algum, nenhum medo
das possíveis consequências.
STEINER - Foi por isso mesmo
que não escrevi o livro! Escrevi
um ensaio, sete ensaios no lugar de sete livros. Estou prestes
a completar 80 anos e, como
não estou disposto a escrever
sete livros, escrevi ensaios sobre o que teria gostado de escrever e por que não o fiz. A melhor definição da vida foi dada
por Samuel Beckett: "Faça de
novo. Tente outra vez. Erre outra vez. Erre melhor". Eu quis
errar melhor, e é isso o que procuro dizer com este livro.
PERGUNTA - Essa frase de Beckett o
sr. usa em um contexto em que fala
sobre a tristeza e o pessimismo.
STEINER - A tristeza e o pessimismo... Você sabe por que sou
tão pouco popular entre meus
colegas acadêmicos? Há uma
razão muito simples. Ainda jovem, eu já disse que havia uma
diferença abismal entre o criador e o professor, o editor, o crítico. E meus colegas não gostaram de ouvir isso.
O capítulo deste livro que foi
mais difícil de escrever, "Inveja", é precisamente sobre essa
relação com os professores. Foi
um pesadelo escrevê-lo. Suei
em cada sentença. Como a gente se sente ao viver rodeado pelos grandes, sem ser um deles?
Fui o membro mais jovem da
Universidade Princeton. Ali vivi ao lado de Einstein e Oppenheimer, e ali eu soube o que
eram os gigantes. Veja esse pequeno retrato que está ali [um
retrato desenhado de Steiner
em sua juventude; debaixo dele
está escrito, em italiano, "il
postino" -o carteiro]. Eu quero
ser o carteiro, quero que me
chamem "O Carteiro", como
esse personagem maravilhoso
do filme sobre Pablo Neruda.
É um trabalho muito bonito
ser professor, aquele que entrega as cartas, embora não as escreva. Meus colegas odeiam ouvir isso. A vaidade dos acadêmicos é enorme! Derrida disse
que toda a literatura, até mesmo a maior, é mero pretexto.
Ao inferno com Derrida! Shakespeare não é um pretexto,
Beckett não é um pretexto, Neruda não o é, nem Lorca.
PERGUNTA - O senhor se irrita com
Derrida.
STEINER - O que ele disse sobre
o pretexto é uma piada de mau
gosto. Somos os carteiros, e somos importantes. Os escritores
precisam de nós para chegar a
seu público. É uma função muito importante, mas não é o
mesmo que criar.
PERGUNTA - Em algum momento o
sr. diz, com relação ao romance, que
hoje este pode às vezes parecer um
gênero pré-histórico.
STEINER - Não, eu situaria
Proust, Mann, Joyce entre os
maiores criadores. O que quero
dizer é que talvez os romances
estejam chegando ao fim, porque no mundo de hoje imagens
e histórias infinitas nos chegam
diretamente em nossas casas.
Duvido muito que tenhamos
outro Proust, outro Faulkner.
Os grandes mestres contemporâneos escrevem de maneira
breve.
Veja o caso de Kafka, o quanto ele é fragmentário. Hoje Shakespeare seria um roteirista.
PERGUNTA - E quem seriam os romancistas de hoje?
STEINER - É muito difícil responder essa pergunta. Acho
que Mario Vargas Llosa o é. "A
Festa do Bode" é, sem dúvida
alguma, um dos melhores romances de hoje. Também o é
"Cem Anos de Solidão", de García Márquez. "O Tambor", de
Günter Grass. "Filhos da Meia-Noite", de Rushdie. Philip Roth
talvez seja a pessoa mais inteligente que existe, e sua trilogia
sobre a política norte-americana ["Pastoral Americana", "Casei com um Comunista" e "A
Marca Humana"] é magnífica.
Mas o próprio formato do romance corre perigo. As pessoas
estão procurando formas mais
experimentais. Por que os livros de história, de sociologia e
as biografias são mais bem escritos? A prosa de Lévi-Strauss
é melhor que o livro de qualquer romancista francês. Há
até economistas que escrevem
com mais estilo que os próprios
romancistas.
Aprenderam com o romance
e aplicam o que aprenderam.
Mas veja o que acontece hoje.
Um rapaz escreve um livro; se
tem sorte, o livro é publicado,
passa 16 dias nas livrarias e então imediatamente o tiram do
mercado. Como se vão fazer escritores dessa maneira? Se isso
tivesse acontecido na época de
Joyce, ele jamais teria resistido.
Você sabe que a Unesco tem
uma lista dos livros mais lidos
do mundo? E nela há apenas
um título francês.
PERGUNTA - Deixe-me adivinhar:
"Madame Bovary".
STEINER - Oh, não, o que você
está dizendo? "O Pequeno
Príncipe". E isso é alarmante.
Vendem-se milhões de exemplares todos os anos. Mas as
pessoas não leem "Madame
Bovary".
PERGUNTA - O sr. acha que deveríamos nos preocupar com essas listas?
STEINER - Sem dúvida. Elas indicam que livros foram best-sellers e em que momento. Houve uma época em que os best-sellers eram Balzac e Dickens.
Há uma diferença abismal entre o gênio experimental de escritores como Borges e Beckett
e o grande público. É muito
provável que milhões de pessoas leiam literatura em formato de gibi. Há pouco li uma versão de Hamlet em quadrinhos e
me pareceu brilhante. Reduziram o texto para os momentos
essenciais, e Shakespeare certamente teria dito: "Nada mal.
Meu texto era longo demais".
Rarará.
PERGUNTA - Essa reflexão lembra
alguns aspectos de seu livro, em que
o sr. discute o confronto entre cultura e mídia e o futuro da cultura.
STEINER - A cultura do futuro
não será nossa cultura. A cultura elitista e humanista que conhecemos só pertence a alguns
poucos. Recorde que vou completar 80 anos e que antes de
completar 20 eu comecei a publicar artigos sobre o porquê de
a cultura não fazer frente ao
fascismo e aos nazistas.
O que aconteceu? Aqui temos países com culturas superiores, temos as melhores escolas, o melhor teatro, a melhor música. E estes países nossos se
converteram em infernos. E não são apenas os países -há
grandes artistas que aderem ao
fascismo. Nunca deixei de me
fazer essa pergunta, e, embora
não tenha a resposta, posso
afirmar que a cultura e o humanismo não são inteiramente
inocentes nem positivos. Walter Benjamin dizia que toda
grande obra se ergue sobre uma
montanha de desumanidade. É
uma verdade incômoda.
Cinema e TV são as formas mais criativas de expressão. Estão cheios de lixo, mas toda grande cultura teve muito lixo
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PERGUNTA - E o futuro?
STEINER - O que o futuro nos reserva, se evitarmos a guerra?
Evitá-la supõe problemas de
superpovoamento. Veja os jovens: eles ficam fartos. Um dia
vão acabar com os velhos, não
saberão o que fazer com eles.
PERGUNTA - Que panorama!
STEINER - É muito fácil ficar
sentado aqui, nesta sala, e dizer
"o racismo é horrível!". Mas me
pergunte a mesma coisa se você
se mudar para a casa ao lado de
uma família jamaicana que tem
seis filhos e ouve reggae e rock
and roll o dia inteiro. Ou quando meu assessor vier me dizer
que, desde que a família jamaicana se mudou para a casa ao
lado, o valor do meu imóvel
caiu pela metade. Pergunte-me, então! Dentro de todos nós,
de nossos filhos, e para manter
nosso conforto, nossa sobrevivência, se você riscar um pouco
verá aparecer muitas zonas escuras. Não se esqueça.
PERGUNTA - Neste livro, o sr. fala da
maldade humana, mas compensa
falando do lado solidário das pessoas, da compaixão, da amizade...
STEINER - Sim, tudo isso está
dentro de cada um de nós e depende das circunstâncias. Se fazem mal a nossos filhos, somos
capazes de matar a sangue frio.
PERGUNTA - E outro assunto que o
preocupa é que esses personagens
estão ganhando destaque pelas
mãos de estrelas da mídia.
STEINER - Hegel dizia que toda
nova tecnologia é uma nova filosofia. Bill Gates e seus engenheiros transformaram o mundo. O Google transformou a
percepção, a memória, como
nos comunicamos. A tecnologia é a força mais criativa do
momento. Do mesmo modo como o cinema e a televisão são as
formas mais criativas de expressão. Sim, estão cheios de lixo, mas toda grande cultura teve muito lixo.
Há uma ou duas revoluções
que se aproximam e têm a ver
com o transplante da memória.
Não estamos muito distantes
de implantar chips de memória
em doentes de Alzheimer. Daríamos a eles um passado artificial. Se isso acontecer, como ficará o eu?
PERGUNTA - E a outra revolução?
STEINER - Está por chegar, me
inspira muito medo, e, francamente, prefiro não estar vivo.
Poderemos viver uma média de
120 anos. Dentro em muito
pouco, será possível rejuvenescer células. Seremos substituíveis, como o motor de um automóvel. O que acontecerá quando os jovens tiverem que cuidar
e alimentar tantas pessoas mais
velhas? A próxima guerra civil
pode ser essa.
PERGUNTA - Parece tema de um romance de Saramago.
STEINER - De um romance e de
um pesadelo. Os jovens de hoje
precisam pagar impostos, residências para idosos, comida,
casa. Há cada vez mais idosos.
Acredito firmemente no direito
à eutanásia. Envelhecer sem
dignidade é um horror. Antes,
as famílias mais ou menos podiam dar conta de seus idosos.
Agora já não podem mais. Talvez a próxima crise seja a de gerações.
PERGUNTA - Ela já não existe?
STEINER - Não, nós a estamos
contendo. Os jovens não saem
por aí assassinando os velhos.
Em certas culturas esquimós,
isso é feito. Quando chega o inverno, os jovens obrigam os velhos a sair de casa ou do iglu, para morrer, para que os jovens
possam sobreviver.
PERGUNTA - E existe alguma luz à
vista, professor, algo que se consiga
enxergar depois do túnel? Há países
emergentes, culturas que vão se impondo. A China, por exemplo.
STEINER - Acho que a próxima
força artística, intelectual e
científica virá da Índia. Temos
muitos alunos chineses, e eles
são bons anotadores e dizem
sim a tudo. Mas os indianos discutem, fazem perguntas.
Este texto foi originalmente publicado
na íntegra no jornal "El País".
Tradução de Clara Allain .
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