São Paulo, domingo, 18 de janeiro de 2009

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O carteiro

O crítico literário George Steiner, que diz ter como função "entregar as cartas" dos grandes escritores, avalia as mudanças das formas criativas no último século, defende o valor artístico da TV e afirma que Shakespeare, hoje, seria roteirista e aprovaria uma versão em quadrinhos para "Hamlet"

Raimundo Paccó - 4.out.06/ Folha Imagem
A instalação "Babel", do artista plástico Cildo Meirelles, em imagem de quando esteve exposta na Estação Pinacoteca, em São Paulo

JUAN CRUZ

George Steiner está prestes a completar 80 anos e publicou no ano passado "My Unwritten Books" (meus livros não escritos, New Directions, 192 págs., US$ 23,95, R$ 56), que causou escândalo, sobretudo no Reino Unido, de cuja Universidade de Cambridge ele foi professor respeitadíssimo.
O escândalo o diverte porque, imagina, deve-se à surpresa sentida por alguns quando observaram que esse livro do professor Steiner, um dos grandes filósofos europeus, cuja idade avançada é desmentida por sua mente extremamente desperta, relata experiências sexuais muito explícitas (e próprias) sem que o pudor o leve a moderar sua linguagem.
O ensaio que motivou o escândalo diz respeito à linguagem e faz a defesa das línguas minoritárias, algumas das quais Steiner imagina que devam ser excelentes para a prática do sexo. O texto começa em tom contundente: "Como é a vida sexual de um surdo-mudo? Com que incitações e cadência ele se masturba? Como o surdo-mudo vive a libido e a consumação?". É claro que a obra não é apenas isso (nem se limita a esse ensaio): é um olhar inteligente sobre os assuntos aos quais Steiner alguma vez quis dedicar um livro (mais precisamente, sete) e que acabaram ficando pelo caminho.

 

PERGUNTA - Quer dizer que se escandalizaram?
GEORGE STEINER
- Sim, muitos. Nunca antes alguém perguntou como é a vida sexual de um surdo-mudo. Já o fizeram em relação aos cegos, mas nunca aos surdos-mudos.

PERGUNTA - É uma pergunta inquietante.
STEINER
- Porque as perguntas importantes com frequência são inquietantes. Existe um comentário lindamente desagradável de Heidegger sobre o porquê de a ciência ser tão enfadonha. Ele disse que é porque ela só tem respostas.

PERGUNTA - Havia uma pichação no Equador que dizia: "Quando finalmente tínhamos as respostas, nos mudaram as perguntas".
STEINER
- É verdade. Mas as perguntas podem ser inquietantes, e as perguntas relativas ao erótico o são.

PERGUNTA - Ao ler esse ensaio em especial, "As Linguagens de Eros", poderíamos pensar que o sr. não tem pudor algum, nenhum medo das possíveis consequências.
STEINER
- Foi por isso mesmo que não escrevi o livro! Escrevi um ensaio, sete ensaios no lugar de sete livros. Estou prestes a completar 80 anos e, como não estou disposto a escrever sete livros, escrevi ensaios sobre o que teria gostado de escrever e por que não o fiz. A melhor definição da vida foi dada por Samuel Beckett: "Faça de novo. Tente outra vez. Erre outra vez. Erre melhor". Eu quis errar melhor, e é isso o que procuro dizer com este livro.

PERGUNTA - Essa frase de Beckett o sr. usa em um contexto em que fala sobre a tristeza e o pessimismo.
STEINER
- A tristeza e o pessimismo... Você sabe por que sou tão pouco popular entre meus colegas acadêmicos? Há uma razão muito simples. Ainda jovem, eu já disse que havia uma diferença abismal entre o criador e o professor, o editor, o crítico. E meus colegas não gostaram de ouvir isso.
O capítulo deste livro que foi mais difícil de escrever, "Inveja", é precisamente sobre essa relação com os professores. Foi um pesadelo escrevê-lo. Suei em cada sentença. Como a gente se sente ao viver rodeado pelos grandes, sem ser um deles? Fui o membro mais jovem da Universidade Princeton. Ali vivi ao lado de Einstein e Oppenheimer, e ali eu soube o que eram os gigantes. Veja esse pequeno retrato que está ali [um retrato desenhado de Steiner em sua juventude; debaixo dele está escrito, em italiano, "il postino" -o carteiro]. Eu quero ser o carteiro, quero que me chamem "O Carteiro", como esse personagem maravilhoso do filme sobre Pablo Neruda.
É um trabalho muito bonito ser professor, aquele que entrega as cartas, embora não as escreva. Meus colegas odeiam ouvir isso. A vaidade dos acadêmicos é enorme! Derrida disse que toda a literatura, até mesmo a maior, é mero pretexto. Ao inferno com Derrida! Shakespeare não é um pretexto, Beckett não é um pretexto, Neruda não o é, nem Lorca.

PERGUNTA - O senhor se irrita com Derrida.
STEINER
- O que ele disse sobre o pretexto é uma piada de mau gosto. Somos os carteiros, e somos importantes. Os escritores precisam de nós para chegar a seu público. É uma função muito importante, mas não é o mesmo que criar.

PERGUNTA - Em algum momento o sr. diz, com relação ao romance, que hoje este pode às vezes parecer um gênero pré-histórico.
STEINER
- Não, eu situaria Proust, Mann, Joyce entre os maiores criadores. O que quero dizer é que talvez os romances estejam chegando ao fim, porque no mundo de hoje imagens e histórias infinitas nos chegam diretamente em nossas casas. Duvido muito que tenhamos outro Proust, outro Faulkner. Os grandes mestres contemporâneos escrevem de maneira breve. Veja o caso de Kafka, o quanto ele é fragmentário. Hoje Shakespeare seria um roteirista.

PERGUNTA - E quem seriam os romancistas de hoje?
STEINER
- É muito difícil responder essa pergunta. Acho que Mario Vargas Llosa o é. "A Festa do Bode" é, sem dúvida alguma, um dos melhores romances de hoje. Também o é "Cem Anos de Solidão", de García Márquez. "O Tambor", de Günter Grass. "Filhos da Meia-Noite", de Rushdie. Philip Roth talvez seja a pessoa mais inteligente que existe, e sua trilogia sobre a política norte-americana ["Pastoral Americana", "Casei com um Comunista" e "A Marca Humana"] é magnífica.
Mas o próprio formato do romance corre perigo. As pessoas estão procurando formas mais experimentais. Por que os livros de história, de sociologia e as biografias são mais bem escritos? A prosa de Lévi-Strauss é melhor que o livro de qualquer romancista francês. Há até economistas que escrevem com mais estilo que os próprios romancistas.
Aprenderam com o romance e aplicam o que aprenderam. Mas veja o que acontece hoje. Um rapaz escreve um livro; se tem sorte, o livro é publicado, passa 16 dias nas livrarias e então imediatamente o tiram do mercado. Como se vão fazer escritores dessa maneira? Se isso tivesse acontecido na época de Joyce, ele jamais teria resistido. Você sabe que a Unesco tem uma lista dos livros mais lidos do mundo? E nela há apenas um título francês.

PERGUNTA - Deixe-me adivinhar: "Madame Bovary".
STEINER
- Oh, não, o que você está dizendo? "O Pequeno Príncipe". E isso é alarmante. Vendem-se milhões de exemplares todos os anos. Mas as pessoas não leem "Madame Bovary".

PERGUNTA - O sr. acha que deveríamos nos preocupar com essas listas?
STEINER
- Sem dúvida. Elas indicam que livros foram best-sellers e em que momento. Houve uma época em que os best-sellers eram Balzac e Dickens. Há uma diferença abismal entre o gênio experimental de escritores como Borges e Beckett e o grande público. É muito provável que milhões de pessoas leiam literatura em formato de gibi. Há pouco li uma versão de Hamlet em quadrinhos e me pareceu brilhante. Reduziram o texto para os momentos essenciais, e Shakespeare certamente teria dito: "Nada mal. Meu texto era longo demais". Rarará.

PERGUNTA - Essa reflexão lembra alguns aspectos de seu livro, em que o sr. discute o confronto entre cultura e mídia e o futuro da cultura.
STEINER
- A cultura do futuro não será nossa cultura. A cultura elitista e humanista que conhecemos só pertence a alguns poucos. Recorde que vou completar 80 anos e que antes de completar 20 eu comecei a publicar artigos sobre o porquê de a cultura não fazer frente ao fascismo e aos nazistas.
O que aconteceu? Aqui temos países com culturas superiores, temos as melhores escolas, o melhor teatro, a melhor música. E estes países nossos se converteram em infernos. E não são apenas os países -há grandes artistas que aderem ao fascismo. Nunca deixei de me fazer essa pergunta, e, embora não tenha a resposta, posso afirmar que a cultura e o humanismo não são inteiramente inocentes nem positivos. Walter Benjamin dizia que toda grande obra se ergue sobre uma montanha de desumanidade. É uma verdade incômoda.

Cinema e TV são as formas mais criativas de expressão. Estão cheios de lixo, mas toda grande cultura teve muito lixo

PERGUNTA - E o futuro?
STEINER
- O que o futuro nos reserva, se evitarmos a guerra? Evitá-la supõe problemas de superpovoamento. Veja os jovens: eles ficam fartos. Um dia vão acabar com os velhos, não saberão o que fazer com eles.

PERGUNTA - Que panorama!
STEINER
- É muito fácil ficar sentado aqui, nesta sala, e dizer "o racismo é horrível!". Mas me pergunte a mesma coisa se você se mudar para a casa ao lado de uma família jamaicana que tem seis filhos e ouve reggae e rock and roll o dia inteiro. Ou quando meu assessor vier me dizer que, desde que a família jamaicana se mudou para a casa ao lado, o valor do meu imóvel caiu pela metade. Pergunte-me, então! Dentro de todos nós, de nossos filhos, e para manter nosso conforto, nossa sobrevivência, se você riscar um pouco verá aparecer muitas zonas escuras. Não se esqueça.

PERGUNTA - Neste livro, o sr. fala da maldade humana, mas compensa falando do lado solidário das pessoas, da compaixão, da amizade...
STEINER
- Sim, tudo isso está dentro de cada um de nós e depende das circunstâncias. Se fazem mal a nossos filhos, somos capazes de matar a sangue frio.

PERGUNTA - E outro assunto que o preocupa é que esses personagens estão ganhando destaque pelas mãos de estrelas da mídia.
STEINER
- Hegel dizia que toda nova tecnologia é uma nova filosofia. Bill Gates e seus engenheiros transformaram o mundo. O Google transformou a percepção, a memória, como nos comunicamos. A tecnologia é a força mais criativa do momento. Do mesmo modo como o cinema e a televisão são as formas mais criativas de expressão. Sim, estão cheios de lixo, mas toda grande cultura teve muito lixo. Há uma ou duas revoluções que se aproximam e têm a ver com o transplante da memória. Não estamos muito distantes de implantar chips de memória em doentes de Alzheimer. Daríamos a eles um passado artificial. Se isso acontecer, como ficará o eu?

PERGUNTA - E a outra revolução?
STEINER
- Está por chegar, me inspira muito medo, e, francamente, prefiro não estar vivo. Poderemos viver uma média de 120 anos. Dentro em muito pouco, será possível rejuvenescer células. Seremos substituíveis, como o motor de um automóvel. O que acontecerá quando os jovens tiverem que cuidar e alimentar tantas pessoas mais velhas? A próxima guerra civil pode ser essa.

PERGUNTA - Parece tema de um romance de Saramago.
STEINER
- De um romance e de um pesadelo. Os jovens de hoje precisam pagar impostos, residências para idosos, comida, casa. Há cada vez mais idosos. Acredito firmemente no direito à eutanásia. Envelhecer sem dignidade é um horror. Antes, as famílias mais ou menos podiam dar conta de seus idosos. Agora já não podem mais. Talvez a próxima crise seja a de gerações.

PERGUNTA - Ela já não existe?
STEINER
- Não, nós a estamos contendo. Os jovens não saem por aí assassinando os velhos. Em certas culturas esquimós, isso é feito. Quando chega o inverno, os jovens obrigam os velhos a sair de casa ou do iglu, para morrer, para que os jovens possam sobreviver.

PERGUNTA - E existe alguma luz à vista, professor, algo que se consiga enxergar depois do túnel? Há países emergentes, culturas que vão se impondo. A China, por exemplo.
STEINER
- Acho que a próxima força artística, intelectual e científica virá da Índia. Temos muitos alunos chineses, e eles são bons anotadores e dizem sim a tudo. Mas os indianos discutem, fazem perguntas.


Este texto foi originalmente publicado na íntegra no jornal "El País". Tradução de Clara Allain .


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