São Paulo, domingo, 18 de fevereiro de 2001

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Paisagem e Acidente

por Clifford Geertz


Leia trecho de ensaio de Geertz que faz parte do livro "Nova Luz sobre a Antropologia", a ser lançado nesta semana pela editora Jorge Zahar


Todo mundo sabe de que trata a antropologia cultural: da cultura. O problema é que ninguém sabe muito bem o que é cultura. Não apenas é um conceito fundamentalmente contestado, como os de democracia, religião, simplicidade e justiça social, como é também definido de várias maneiras, empregado de formas múltiplas e irremediavelmente impreciso. É fugidio, instável, enciclopédico e normativamente carregado. E há aqueles, especialmente aqueles para quem só o realmente real é realmente real, que o consideram inteiramente vazio ou até perigoso e que gostariam de eliminá-lo do discurso sério das pessoas sérias. Em suma, um conceito improvável sobre o qual tentar construir uma ciência. Quase tão ruim quanto a matéria. Chegando à antropologia com uma formação em humanidades, especialmente literária e filosófica, o conceito de cultura me pareceu imediatamente mais amplo como forma tanto de penetrar nos mistérios desse campo quanto de levar o indivíduo a se perder inteiramente neles. Quando cheguei a Harvard, Kluckhohn e o então decano da disciplina, Alfred Kroeber, que acabara de se aposentar em Berkeley, estavam empenhados em preparar o que esperavam ser uma compilação definitiva e autorizada das várias definições de "cultura" surgidas na literatura desde Arnold e Taylor, das quais haviam encontrado 171, classificáveis em 13 categorias. E eu, supostamente à vontade com conceitos elevados, fui recrutado para ler o que eles haviam feito e sugerir mudanças, esclarecimentos, reconsiderações etc. Não posso dizer que esse exercício tenha levado, a mim ou à disciplina, a uma diminuição significativa da angústia semântica ou a um declínio na taxa de natalidade de novas definições; bem ao contrário, na verdade. Mas me fez mergulhar brutalmente, sem orientação ou aviso, no coração do que mais tarde eu aprenderia a chamar de problemática da minha área. As vicissitudes da "cultura" (a palavra, não a coisa, pois não há coisa), as discussões sobre o seu significado, seu uso e seu valor explicativo estavam de fato apenas começando. Em seus altos e baixos, no seu vaivém de aproximação e afastamento da clareza e da popularidade nas cinco décadas seguintes, pode ser vista a marcha hesitante e arrítmica tanto da antropologia quanto minha. Nos anos 50, a eloquência, o vigor, a amplitude de interesses e o brilho intenso de escritores como Kroeber e Kluckhohn, Ruth Benedict, Robert Redfield, Ralph Linton, Geoffrey Gorer, Franz Boas, Bronislaw Malinowski, Edward Sapir e, da forma mais espetacular, Margaret Mead -que estava em toda parte, na imprensa, nas conferências, nas comissões do Congresso, dirigindo projetos, criando grupos, lançando campanhas, assessorando filantropos, orientando os confusos e perplexos e, por fim, mas não menos importante, indicando aos colegas onde é que erraram- tornaram a idéia antropológica da cultura imediatamente acessível a... bem, à cultura, tão difundida e abrangente que parecia uma explicação para tudo o que o ser humano fizesse, imaginasse, dissesse, fosse ou acreditasse. Todo mundo sabia que os kwakiutles eram megalomaníacos, os dobus, paranóicos, os zunis, equilibrados, os alemães, autoritários, os russos, violentos, os americanos, práticos e otimistas, os samoanos, descansados, os navajos, prudentes, os tepotzlanos, inabalavelmente unidos ou irremediavelmente divididos (havia dois antropólogos que os estudavam, um sendo aluno do outro) e os japoneses, envergonhados -e todo mundo sabia que eram assim por causa de sua cultura (todos tinham uma cultura e nenhum tinha mais de uma). Parecia que estávamos condenados a trabalhar com uma lógica e uma linguagem nas quais conceito, causa, forma e resultado tinham todos o mesmo nome. Assumi então como tarefa -embora ninguém me tenha atribuído isso e eu não saiba até que ponto foi uma decisão consciente- reduzir a idéia de cultura a um tamanho adequado, dar-lhe uma dimensão menos vasta. (Devo admitir que não estava de forma nenhuma sozinho nessa ambição. O descontentamento com a confusão e a nebulosidade era endêmico na minha geração.) Parecia urgente, e ainda parece, dar à "cultura" uma noção delimitada, com aplicação precisa, sentido claro e uso específico -como objeto ao menos um tanto definido de uma ciência pelo menos um pouco definida. Isso se revelou difícil. Deixando de lado a questão do que é preciso para ser uma ciência e de a antropologia ter chance de ser considerada ciência algum dia, questão que sempre me pareceu artificial -chamem-na de estudo, se preferirem, de busca ou investigação-, os instrumentos intelectuais necessários a esse esforço simplesmente não estavam disponíveis ou, se estavam, não eram reconhecidos como tais. Que esse esforço tenha sido empreendido, e, de novo, não apenas por mim, mas por uma ampla e diversificada gama de pessoas, isto é, com insatisfações diferentes, e que tenha obtido um certo grau de sucesso, é sinal não apenas de que algumas idéias aceitas de "cultura" -de que ela é um comportamento adquirido, é superorgânica e molda nossas vidas como uma fôrma molda um bolo ou a gravidade molda nossos movimentos, de que evolui como o absoluto de Hegel, orientada por leis inatas, para uma perfeita integridade- haviam começado a perder força e poder de persuasão.


A rebeldia é uma virtude superestimada, é importante dizer algo e não apenas ameaçar dizê-lo; há sempre coisa melhor a fazer com uma herança do que jogá-la no lixo


Versões da mesma idéia
É sinal também de que estava surgindo uma abundância de variedades novas e mais eficazes daquilo que Coleridge chamou de instrumentos especulativos. Viu-se que quase todos eram instrumentos de outras disciplinas, da filosofia, da linguística, da semiótica, da história, da psicologia, da sociologia, das ciências cognitivas e também, até certo ponto, da biologia e da literatura; tais instrumentos capacitaram os antropólogos, com o tempo, a produzir descrições menos panópticas, menos inertes, da cultura e do seu processo. Precisávamos, parece, de algo mais que uma idéia ou 171 versões da mesma idéia.
Foi, de qualquer forma, com esse acúmulo de preocupações prolépticas e meias noções, e com menos de um ano de preparação, no essencial linguística, que parti para Java em 1952, a fim de situar e descrever, e quem sabe até explicar, uma coisa chamada "religião", num distrito rural e distante, 800 quilômetros a sudeste de Jacarta. Contei alhures em minúcia as dificuldades práticas dessa aventura, que foram imensas (por exemplo, quase morri), mas amplamente superadas.
O importante, no que concerne ao desenvolvimento de minha apreensão das questões no meu modo de ver, é que a pesquisa de campo, longe de separar as coisas, misturou-as ainda mais. O que numa sala de aula em Harvard era um dilema metodológico, um enigma a decifrar, passava a ser, numa cidadezinha javanesa de curva de estrada abalada pelo impacto de mudanças convulsivas, uma condição imediata, um mundo no qual se engajar.
Por mais espantosa que fosse, a "vida entre os javaneses" era mais do que um quebra-cabeça, e era preciso mais do que categorias e definições, e bem mais do que a sagacidade de sala de aula e a facilidade com as palavras, para nos situarmos ali.
O que tornou o Projeto Modjokuto -como decidimos chamá-lo, no costumeiro e infrutífero esforço de disfarçar identidades ("Modjokuto" significa "Cidade do Meio", conceito que me despertava suspeita na época e do qual não vim a gostar desde então)- particularmente questionador das formulações aceitas e dos procedimentos-padrão é que ele foi, se não o primeiro, certamente um dos primeiros e mais conscientes esforços dos antropólogos no sentido de compreenderem não um grupo tribal, um povoado insular, uma sociedade desaparecida ou uma relíquia, nem tampouco uma pequena comunidade afastada e fechada de pastores e camponeses, mas toda uma sociedade antiga e heterogênea, urbanizada, letrada e politicamente ativa -em suma, nada menos que uma civilização-, e fazê-lo não num "presente etnográfico" reconstruído e suavizado no qual tudo se poderia encaixar numa atemporalidade simples (nem mais nem menos), mas em toda a sua presença e historicidade esgarçadas.
Loucura, talvez, mas seguida de uma série de outras que tornaram fútil e obsoleta uma visão da cultura voltada para os (supostamente) reservados hopis, os primitivos aborígenes ou os desgarrados pigmeus. O que quer que fosse a Indonésia, Java, Modjokuto ou, mais tarde, o Marrocos, quando lá estive, não se tratava de "totalidade(s) de padrões de comportamento (...) alojada(s) em (um) grupo", para citar uma das definições lapidares do livro de Kroeber e Kluckhohn.
Os anos passados em Modjokuto, antes e depois, nos sucessivos retornos em que lutei para me manter inteirado das coisas, acabaram não consistindo numa identificação de fragmentos da cultura javanesa considerados "religiosos" em sua separação de outros fragmentos tidos como "seculares" (o que não tinha maior serventia) e na submissão do conjunto a uma análise funcional: a "religião" une a sociedade, sustenta valores, mantém a moral, impõe ordem ao comportamento público, mistifica o poder, racionaliza as desigualdades, justifica injustiças e assim por diante -o paradigma dominante, naquela época e desde então.
Esses anos consistiram em adquirir uma certa familiaridade (nunca se consegue mais do que isso) com os recursos simbólicos por meio dos quais os indivíduos se viam como pessoas, atores, sofredores, conhecedores e juízes -em suma, para introduzir a expressão expositiva de praxe, como participantes de uma forma de vida. Eram esses recursos, portadores de significado e doadores de sentido (festas comunitárias, teatro de sombras, orações das sextas-feiras, acordos de casamentos, comícios políticos, disciplinas místicas, dramas populares, danças de cortejo amoroso, exorcismos, o Ramadã, o plantio do arroz, enterros, lendas folclóricas, leis de herança), que possibilitavam a imaginação e a materializavam, tornando-a pública e discutível e, mais importante, suscetível de crítica, disputa e eventual revisão. O que havia começado como uma investigação do "papel do ritual e da crença na sociedade" (isso tem que ser escrito entre aspas), como uma espécie de mecânica comparada, se transformou, ao adensar a trama e me enredar, no estudo de um exemplo particular da produção do sentido e suas complexidades.
Desnecessário dizer mais, aqui, sobre o conteúdo do estudo ou da experiência. Escrevi uma tese de 700 páginas (minha orientadora, a professora DuBois, ficou espantada), que foi espremida num livro de 400, voltando a contar o resultado. O importante são as lições, e as lições foram as seguintes:
1. A antropologia, pelo menos a que eu professo e pratico, impõe uma vida seriamente dividida. As habilidades necessárias na sala de aula e as exigidas em campo são bem diferentes. O sucesso num ambiente não garante sucesso no outro e vice-versa.
2. O estudo das culturas de outros povos (e também da nossa, mas isso levanta outras questões) implica descrever quem eles pensam que são, o que pensam que estão fazendo e com que finalidade -algo bem menos direto do que sugerem os cânones usuais da etnografia,feita de notas e indagações ou, a rigor, o impressionismo exuberante dos "estudos culturais" da pop art.
3. Para descobrir quem as pessoas pensam que são, o que pensam que estão fazendo e com que finalidade pensam que o estão fazendo, é necessário adquirir uma familiaridade operacional com os conjuntos de significados em meio aos quais elas levam suas vidas. Isso não requer sentir como os outros ou pensar como eles, o que é simplesmente impossível. Nem virar nativo, o que é uma idéia impraticável e inevitavelmente falsa. Requer aprender como viver com eles, sendo de outro lugar e tendo um mundo próprio diferente.
De novo, o resto é pós-escrito. Nos 40 anos seguintes, ou quase, passei mais de 10 em trabalho de campo, desenvolvendo e aprimorando essa abordagem do estudo da cultura, e passei os outros 30 (não lecionei muito, pelo menos depois que entrei para o Instituto de Estudos Avançados da Universidade Princeton) tentando comunicar os seus encantos por escrito.
De qualquer forma, parece haver alguma coisa na idéia de "Zeitgeist" (espírito de época) ou, pelo menos, na de contágio mental. Pensamos que estamos enveredando bravamente por um caminho sem precedentes e, de repente, olhamos em volta e descobrimos que estão no mesmo rumo toda a sorte de pessoas de quem nunca sequer ouvíramos falar. A reviravolta linguística, a reviravolta hermenêutica, a revolução cognitiva, os abalos secundários dos terremotos Wittgenstein e Heidegger, o construtivismo de Thomas Kuhn e Nelson Goodman, Benjamin, Foucault, Goffman, Lévi-Strauss, Suzanne Langer, Kenneth Burke, os desenvolvimento na gramática, na semântica e na teoria da narrativa e, recentemente, no mapeamento neural e na somatização da emoção, de repente tudo isso tornou aceitável para um acadêmico a preocupação com a produção do sentido.
Esses vários desvios e novidades não se harmonizaram inteiramente, é claro, para dizer o mínimo, nem revelaram igual utilidade. Mas criaram o ambiente e, de novo, forneceram os instrumentos especulativos para tornar bem mais fácil a existência de alguém que via os seres humanos (citando a mim mesmo parafraseando Max Weber) "amarrados a teias de significado que eles mesmos teceram". Apesar de toda a minha determinação de seguir um caminho próprio e da convicção de que o havia feito, subitamente me vi como um estranho.
Depois de Java veio Bali, onde tentei mostrar que o parentesco, o formato da aldeia, o Estado tradicional, os calendários, lei e, da forma mais vil, a briga de galos podiam ser lidos como textos ou, para acalmar os adeptos da literalidade, como "análogos de textos" -eram afirmações materializadas de (para usar outra expressão expositiva) maneiras específicas de estar no mundo. Depois vieram o Marrocos e uma abordagem semelhante dos marabus, do desenho urbano, da identidade social, da monarquia e das trocas complexas no mercado cíclico. Em Chicago -àquela altura eu começara a lecionar e agitar- teve início e começou a se difundir um movimento mais geral, vacilante e nada unificado, nessas direções. Alguns, lá e em outros centros, batizaram esse desenvolvimento, ao mesmo tempo teórico e metodológico, de "antropologia simbólica". Mas eu, encarando tudo isso como um empreendimento essencialmente hermenêutico, um esclarecimento e definição, e não como uma metáfrase ou decodificação, e pouco à vontade com as misteriosas e cabalísticas implicações de "símbolo", preferi "antropologia interpretativa".
De qualquer forma, fosse ela "simbólica" ou "interpretativa" (alguns até preferiam "semiótica"), começou a surgir um estoque de termos, alguns meus, alguns de outras pessoas, outros reutilizados com alteração do sentido anterior, em torno dos quais se poderia construir uma concepção revista do que pelo menos eu ainda chamava de "cultura": "descrição densa", "modelo de/para", "sistema de sinais", "epistemes", "ethos", "paradigma", "critérios", "horizonte", "quadro", "mundo", "jogos de linguagem", "interpretante", "Sinnzusamenhang" (nexo), "tropo", "sjuzet", "experiência próxima", "ilocucionário", "formação discursiva", "desfamiliarização", "competência/desempenho", "fictio", "semelhança familiar", "heteroglossia" e, é claro, "estrutura", nos seus variados e inúmeros sentidos intercambiáveis. A virada para o sentido, como quer que tenha sido denominada e expressa, alterou tanto o assunto investigado quanto o sujeito da investigação.
Não que tudo isso ocorresse sem a habitual cota de medo e aversão. Depois das reviravoltas vieram as guerras: as guerras culturais, as guerras da ciência, as guerras do valor, as guerras da história, as guerras de gênero, as guerras dos antiquados e dos pós. Salvo quando excepcionalmente provocado ou cumulado de pecados que não tenho astúcia para cometer, sou pessoalmente avesso à polêmica; deixo o trabalho pesado para os que Lewis Namier descartou tão elegantemente como pessoas mais interessadas em si mesmas que no próprio trabalho. Mas, quando a temperatura subiu e com ela a retórica, vi-me em meio a debates estrídulos, muitas vezes até como confuso objeto deles ("eu disse isso?"), sobre questões tão empolgantes como saber se o real é verdadeiramente real e se a verdade é realmente verdadeira. Será possível o conhecimento? O bem é uma questão de opinião? A objetividade é uma farsa? O desinteresse é má-fé? Descrição é dominação? Tudo se resume a poder, pilhagem e projetos políticos.
Entre os velhos possuidores de debêntures, gritar que o céu está vindo abaixo porque os relativistas baniram a factualidade e as personalidades avançadas a poluir a paisagem com seus slogans, seu salvacionismo e sua parafernália, além de uma grande quantidade de escritos sem ressonância, estes últimos anos nas ciências humanas foram, para dizer o mínimo, extremamente produtivos. O que quer que esteja acontecendo com a mente norte-americana, decerto ela não está se fechando.
Estará, então, se estilhaçando? Em seus círculos antropológicos parece haver, no momento, um estranho punhado de gente que pensa assim. Por toda a parte se ouvem lamentos e lamúrias sobre a unidade perdida, o pouco respeito pelos mais velhos da tribo, a falta de uma agenda consensual, de uma identidade própria e um objetivo comum, e sobre o que a moda e a controvérsia estão fazendo com o discurso bem-educado.
Quanto a mim, reconhecendo que por vezes sou considerado responsável -a palavra da moda é "cúmplice"- pelo fato de as coisas terem ido longe demais ou não terem ido longe o bastante, só posso dizer que continuo calmo e imperturbável, não propriamente acima dos conflitos, mas à margem deles, cético acerca de suas próprias premissas. Para começo de conversa, unidade, identidade e consenso nunca existiram e a idéia de que existiam é o tipo de crença folclórica a que sobretudo os antropólogos deveriam opor resistência. Quanto a não ir longe demais, a rebeldia é uma virtude superestimada; é importante dizer algo e não apenas ameaçar dizê-lo, e há sempre coisa melhor a fazer com uma herança, mesmo problemática, do que jogá-la no lixo.
Assim, onde estou hoje, quando o milênio se aproxima de foice na mão? Bem, não faço mais trabalho de campo, pelo menos não por períodos longos. Passei meu 60º aniversário de cócoras numa latrina de campanha em "Modjokuto" (bem, não o dia todo, mas vocês entendem o que quero dizer), me perguntando que diabo estava fazendo ali, na minha idade, com os meus intestinos. Eu gostava imensamente do trabalho de campo (certo, não o tempo todo), e essa experiência contribuiu mais para me alimentar a alma, e até para criá-la, do que a academia jamais conseguiu. Mas, se acabou, acabou. Continuo a escrever. Já estou nisso há tanto tempo que não é mais possível parar e, além disso, há coisas que eu ainda não disse.
Quanto à antropologia, quando vejo o que pelo menos alguns dos melhores das novas gerações estão fazendo ou querendo fazer e todas as dificuldades que enfrentam com o ruído ideológico que hoje cerca praticamente toda aventura intelectual nas ciências sociais e humanas, sou -escolhendo cuidadosamente as palavras- bastante otimista. Enquanto em alguma parte houver alguém lutando, como dizia o grito de guerra dos meus tempos inseguros de juventude, nenhuma voz estará perdida. Uma anedota sobre Samuel Beckett expressa bem o meu estado de espírito ao encerrar esta improvável carreira. Contam que Beckett caminhava com um amigo pelo gramado do Trinity College, em Dublin, numa ensolarada e quente manhã de abril. O amigo disse: "Que belo dia, esplêndido, hem?". Beckett prontamente concordou: "De fato, esplêndido, magnífico". "Num dia como este", prosseguiu o amigo, "a gente se sente feliz por ter nascido". Ao que Beckett retrucou: "Bem, eu não iria tão longe".

Trecho extraído do ensaio inicial de "Nova Luz sobre a Antropologia" (Jorge Zahar Editor).
Tradução de Vera Ribeiro.


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