São Paulo, domingo, 18 de fevereiro de 2001

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+ brasil 501 d.C.

Luiz Costa Lima

Borges sem surpresas


O argentino nunca pertenceu à estirpe dos poetas intelectuais, embora entre estes se encontrassem autores de sua admiração, como Dante e Hopkins; na verdade, ele nunca teve tal empenho e, mais do que isso, sempre desconfiou das reflexões teóricas sobre a literatura


Seria de esperar que as obras completas de Jorge Luis Borges (1899-1986) estivessem hoje disponíveis em castelhano. Afinal, ele está entre os escritores mais importantes da atualidade. Em sentido inverso, tampouco seria estranho que a extrema novidade de seus primeiros ensaios, poemas e contos provocasse, nas décadas de 1920 e 1930, a ira de seus adversários. É certo que não se ativeram ao nível literário. Lembro um certo J.C. Portantiero que o intitulava "provedor literário de toda uma elite mais ou menos vinculada à vacunocracia". Pior do que isso, só a sua demissão de diretor da Biblioteca Nacional, por seu declarado antiperonismo.
Também é verdade que Borges saberia que sua fama antes dependera de sua divulgação na França do que do reconhecimento interno. Mas, nos últimos anos de vida, quando seu processo da cegueira já se completara, como reagiria a esses ataques? Um primeiro sinal de que não os esquecera encontro em sua tradução pela Pléiade (1993), a qual contém toda uma seção, "En Marge", composta com sua ajuda, que não se encontra em suas obras em castelhano. E, contudo, desde 2000, tampouco as "Oeuvres Complètes" fazem jus a seu título.
Em uma dependência da biblioteca de Harvard, descobriram-se as gravações de seis conferências que o escritor pronunciara, em 1967, ao longo das famosas Norton Lectures. Da edição de "This Craft of Verse" foi encarregado o romeno Calin-Andrei Mihaielescu, professor da Universidade de Western-Toronto (Canadá), que manteve seu estilo oral, "seu fluxo, humor e hesitações ocasionais", corrigindo suas pequenas falhas sintáticas e de citação e localizando suas fontes. O êxito tem sido tanto que, no momento em que escrevo, já circula a tradução brasileira ("Esse Ofício do Verso", trad. de José Marcos Macedo, Companhia das Letras).
Mas, se o leitor esperar revelações e novidades, será porque não havia percebido o exato perfil de Borges: ele nunca pertenceu à estirpe dos poetas intelectuais, embora entre estes se encontrassem autores de sua admiração, como Dante e Hopkins.
Assim, a declaração com que abria o prefácio à edição da Pléiade -"consagrei minha vida à literatura e não estou certo de conhecê-la"- ainda era ambígua, porque podia ser entendida como gesto de falsa modéstia. Na verdade, Borges nunca teve tal empenho. Mais do que isso: sempre desconfiou das reflexões teóricas sobre a literatura. É o que mostram duas passagens de "Esse Ofício": "Todas as vezes que mergulhei em livros de estética, tive a sensação desconfortável de que estivesse lendo as obras de astrônomos que nunca olharam para as estrelas" (...); "penso em todas as teorias poéticas como sendo meras ferramentas para a escrita de um poema". A primeira passagem ainda pode ser tida como manifestação de fino humor. Podemos imaginar o tédio de Borges lendo a "Estética" de Croce, em que diz se haver empenhado, e, descontado o exagero, apreciar o improviso do chiste. Mas considerar as teorias poéticas meras ferramentas para a composição de um poema é reduzir a necessária diversidade dos discursos à supremacia de um discurso único. Um borgiano poderá responder: mas isso não diminui sua qualidade de escritor. E terá toda a razão. Poderá ainda acrescentar: a opinião dos poetas sobre a marcha do mundo é absolutamente ociosa. E também terá razão. Mas o que nos preocupa é o modelo do argumento. Pois ele afirma que, das várias maneiras de utilizar a linguagem, só uma é válida. O fato de que a linguagem exaltada não tenha peso decisório não diminui seu mau exemplo. Ao contrário, fortalece aquele que, em nome da razão tecnológica, considere que a ciência pura serve apenas como meio auxiliar para a criação de novas técnicas; isso para não falar de outros usos da linguagem. Ou que, em nome da preservação de um regime político-econômico, decrete de antemão a nocividade de qualquer outra preocupação (filosófica, religiosa, artística etc).

Diálogo de surdos
Seria um diálogo de surdos levantar a Borges o argumento já antes dele exposto por um Max Weber: o mundo humano é formado por escalas diferenciadas de valores religiosos, econômicos, eróticos, artísticos. Onde uma destas prepondere, tende a sufocar as demais ou a permiti-las apenas enquanto não se insurja contra o valor dominante. Não foi por acaso que, antes de alcançar sua autonomia, a arte fundamentalmente servia à religião. Foi considerando esse fenômeno que há anos estudamos o que então chamamos o controle do imaginário. Em Borges, o controlado se torna controlador. Ao assumir essa posição, ele continuava uma luta multissecular, que teve e tem a filosofia e a poesia como mais constantes adversários. O fato de que ele fale do lado perdedor não diminui a gravidade do que diz. Não porque exatamente funcione como o que restaura a idéia do poeta como "mestre da verdade", mas porque indiretamente justifica que haja mestres da verdade. Vejamos melhor como sua posição se explicita nas conferências de 1967. Na conferência sobre "A Metáfora", o autor relembra o que teria sido dito por Emerson: "Os argumentos não convencem ninguém". Ao contrário, acrescenta o conferencista, "quando algo é apenas dito ou, melhor ainda, sugerido, há uma espécie de hospitalidade em nossa imaginação". Ambas as afirmações são em princípio corretas. A questão está em suas consequências. Não ser a razão por si convincente, ao passo que a alusão é bem acolhida por nossa imaginação seriam argumentos irretocáveis se não fôssemos indivíduos que têm de viver em sociedade. Noutros termos, se a pólis não exigisse, para sua própria sobrevivência, que leis se impusessem e que as normas fossem discutidas, independentemente da hospitalidade da imaginação de seus membros. O que significa dizer: o elogio da alusão, legítima do ponto de vista poético, contudo deriva de uma concepção da sociedade de que Borges partilha, ainda que ele próprio não o saiba ou, se o soubesse, considerasse de somenos. Como ele próprio dela não trata, que mais podemos dela saber?

Contra a história
Seu resgate não é complicado. Pois o pensamento de Borges não se esgota na timidez, como ele próprio declara. É antes audacioso, embora passível de condensar em duas proposições: é contra a história e a favor da beleza. A favor da beleza, como já podemos inferir, como valor único. Contra a história, porque ela favorece fatos e feitos, afinal acidentais e insignificantes. Uma coisa e outra estão presentes em suas interessantes considerações sobre a tradução. Seu argumento pode ser assim resumido: a tradução de um verso, embora possa torná-lo melhor que o original, nunca será assim considerado porque, historicamente, há outro que lhe é anterior. Ou seja, a crença na historicidade interfere negativamente na apreciação da beleza.
Contra esse estado de coisas, Borges manifesta a esperança de que possamos esperar por um tempo "em que os homens não sejam mais tão conscientes da história como somos. Um tempo virá em que os homens se importarão muito pouco com os acidentes e circunstâncias da beleza; estarão preocupados com a própria beleza".
A história, em suma, é o que nos impede o acesso pleno à beleza. De um lado, estaria o tumulto da praça pública. Doutro, a alegria para sempre da beleza. Daí, na mesma linha de raciocínio, a especulação sobre a linguagem. A linguagem não advém de acadêmicos e filólogos, "veio dos campos, do mar, dos rios, da noite, do amanhecer". A idéia não tem nada de extraordinário nem de novo. O curioso é o que Borges dela extrai: "Temos na linguagem (e isso me parece óbvio) que as palavras começaram, em certo sentido, como mágica". É como fonte de magia que a palavra, alusiva e não expressiva, é condutora de beleza.
Não será preciso contrapormos a essa poética ingênua e, ao mesmo tempo, absolutista, a de um poeta intelectualizado. Basta pensarmos em passagem de Ossip Mandelstam, cuja vida teria sido prolongada sem a intervenção stalinista (1891-1938). Em breve passagem de "O Rumor do Tempo" (1925, trad. de Paulo Bezerra, Editora 34), o poeta russo vinha à mesma especulação sobre a origem da linguagem: "Ver, ouvir e compreender, todos esses significados outrora se fundiam num feixe semântico. Nas fases mais remotas da linguagem não havia conceitos, mas tão-somente orientações, medos e anseios, só necessidades e temores".
Para exaltar a beleza, Borges necessitava recorrer à magia verbal, guardada na margem oposta à história. Mandelstam, de sua parte, compreendia que a imaginação responde ao mundo, tanto sob a forma de medo como de beleza. Um terceiro contemporâneo, o poeta W.H. Auden (1907-1973), diria de maneira ainda mais inclusiva: "Qualquer que seja seu conteúdo real e seu interesse explícito, todo poema se enraíza no terror da imaginação (imaginative awe)" ("The Dyer's Hand", 1948).

Luiz Costa Lima é ensaísta, crítico e professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro e da Pontifícia Universidade Católica (PUC-RJ), autor de "Vida e Mímesis" (Ed. 34) e "Mímesis - Desafio ao Pensamento" (Civilização Brasileira), entre outros. Escreve mensalmente na seção "Brasil 501 d.C.".


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