São Paulo, domingo, 18 de fevereiro de 2001 |
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+ cinema A expansão da CHINA
Walnice Nogueira Galvão especial para a Folha
Há uns dez anos o cinema chinês, do continente sobretudo,
mas também de Taiwan ou de
Hong Kong, vem arrebatando
prêmio após prêmio nos festivais internacionais. Penhor de reconhecimento, à
bela Gong Li coube recentemente nada
menos que a presidência do júri do festival de Cannes. Os filmes são, cada qual à
sua maneira, interessantíssimos para o
espectador, por mostrar as várias facetas
de uma parcela ponderável da humanidade na terra natal e na diáspora. Vale a
pena, e é um exemplo, aquilatar como
um filme de Taiwan, apesar de mostrar
pessoas indubitavelmente chinesas, pode divergir ligeiramente, ou bastante,
dos que provêm de Hong Kong ou da
República Popular.
É o derrame da velha senhora, com a recomendação médica de que os familiares conversem com ela alguns minutos por dia mesmo sem obter resposta, que arma a ação e abre caminho para as várias personagens. O enredo é discreto e tratado com levíssimo humor: o drama, várias vezes à vista, é desarmado pela frustração da expectativa, que acaba acarretando o riso. Quando realmente explode, no fim, é como que lateral, pois uma família bem-educada não arma escândalos, são os vizinhos que o fazem. Visualmente lindo, o design predominando em interiores e exteriores, o filme se concentra nas tensões entre tradição e modernidade, mas com mão leve e meio de viés. Não dá preferência nem ao antigo nem ao moderno, o que poderia ser ou tolo ou perigoso. É antes um tanto cético: os sobressaltos da novidade são reabsorvidos pela rotina, sem metamorfoses de monta, sina a que não escapam nem o casamento, nem a morte, nem o nascimento, nem a ressurreição de um velho amor. A sublinhar, a presença de um grande ator num grande papel, o do menino Yang-Yang. "O Tigre e o Dragão", de Ang Lee, tendo por atriz principal Michelle Yeoh, popularíssima em toda a Ásia, é chinês até a raiz dos cabelos: uma história de capa e espada, um mero filme de kung fu, como se diz. Mas, ah!, a beleza que se pode extrair disso! Gira em torno de uma espada roubada, de nome "Destino", com quatro séculos de idade e uma crônica heráldica. O enredo, exuberante de peripécias, joga com duas fábulas de amor impossível. Mas o que é original é pôr em cena -e opor umas às outras- mulheres espadachins. São elas exímias nas artes marciais, o que dá ensejo a lances espetaculares: o aço em atrito solta fagulhas, as armas se revezam em sua enorme variedade de formatos, trazendo ao primeiro plano formas estranhas e instigantes que enriquecem graficamente o filme. Tira-se proveito plástico do contraste entre dois tipos de espaço. De um lado, o espaço estilizadíssimo, refinado e hierático dos palácios imperiais da corte em Pequim, com o requinte dos trajes, dos interiores, dos adereços e alfaias. De outro, os espaços do informe, do descontrolado, do caótico: o deserto, a montanha, a ruína, a caverna, a selva. Mas o ponto alto é dado pelo tratamento das lutas. Duas mulheres esgrimam pelos telhados dos pagodes afora, disparando de um para outro como dançarinas em embates aéreos. E o espectador começa a perceber que elas literalmente voam, embora destituídas de asas: escalam muralhas verticais em segundos, se precipitam como uma pluma de alturas vertiginosas para prosseguir o duelo nos pátios internos. São mulheres aguerridas, que enfrentam em combate singular maltas de homens a atacá-las, a todos derrotando. Mulheres que se sacrificaram durante décadas de treino físico e espiritual incessante para atingir a perfeição e se tornarem invulneráveis. Tem até uma bandida que atende pelo extraordinário nome de Jade-a-Hiena. Suspensão da descrença O filme se abebera no manancial inesgotável e imemorial das legendas chinesas que envolvem artes marciais, vida monástica e contemplativa, amores impossíveis e espadachins. Acontecimentos mirabolantes e improváveis se beneficiam da suspensão da descrença trazida pela atmosfera legendária de conto de fadas, onde tudo é possível. A culminação do filme reside no torneio final de esgrima entre a heroína, ladra da espada, e o monge de quem foi roubada; ele é um mestre e acabou se tornando mestre dela também. Primeiro, correm voando para fora de Pequim, perseguindo-se sobre a água, na qual pousam só a ponta do pé, como pássaros, para tomar impulso e prosseguir na carreira desabalada. O confronto se dá na forma de um balé alado no topo das árvores de uma floresta, onde ambos flutuam e esvoaçam, se esgrimindo em minueto. Torna-se arma auxiliar na luta a flexibilidade dos galhos, sobre os quais mal pousam os contendores, que oscilam e vergam -devagar, como em sonhos-, estorvando os golpes do ofício. Ópera chinesa Por todos esses fatores, "O Tigre e o Dragão" se aparenta àquilo a que se dá o nome de "ópera chinesa", por falta de designação mais precisa, uma mistura típica de drama, dança, canto, mímica, acrobacia, artes marciais e malabarismo, integrados à representação de matéria legendária. Por isso depende de uma formação de ator das mais exigentes, já que impõe o adestramento em todas essas perícias, começando ainda na infância. Uma ilustração do rigor às vezes mortal de uma tal formação, que pode atingir a deformação, é tematizada em "Adeus, Minha Concubina", de Chen Kaige (de 1994, Palma de Ouro em Cannes). A dramaturgia chinesa encantava Brecht, que tratou de aproveitar tais ensinamentos e incorporá-los tanto a suas peças quanto à teoria do teatro épico. Primeiro, devido ao distanciamento propiciado pela matéria lendária e exótica, remota para o espectador. Depois, devido ao antiilusionismo dado pela presença de recursos de contra-regra em cena aberta, incluindo uma pequena banda que não faz parte do enredo. E, por último, pela multiplicidade de meios, ou contaminação de gêneros, de que o criador do teatro épico, como é notório, fez bom uso. O fecho de ouro da temporada cabe a "O Imperador e o Assassino", novo filme do grande Chen Kaige e de sua estrela e musa, Gong Li (sem previsão de estréia no Brasil). Temos ali um compêndio de história, protagonizado pelo primeiro imperador da China e fundador da dinastia Qin (pronuncia-se "tchin", daí derivando o nome da nacionalidade), unificador do país e construtor da Grande Muralha, que reinou no terceiro século a.C. O diretor, já responsável por outra obra-prima, o painel da China moderna que é o supracitado "Adeus, Minha Concubina", mais uma vez não desaponta. Saga shakespeariana Brinda-nos agora com uma magnífica saga shakespeariana, ilustrando como o poder absoluto vai corroendo todo resquício de humanidade e transformando os tiranos em psicopatas sanguinários. O fenômeno já intrigou a muita gente e em outras latitudes, como o historiador romano Suetônio, que, em "Os 12 Césares", relata minuciosamente os desmandos e atrocidades por eles cometidos, um após o outro, à medida que se sucediam no trono, insinuando obscuras pulsões hereditárias. Todavia nem uma vez sequer lhe ocorre que na raiz de tudo repousa o poder incontrastado. Não se discute que a inspiração é shakespeariana, como confessa Chen Kaige: aqueles monstros paranóicos, vendo perseguidores em cada canto, sobressaltados pela própria sombra, esporeados pela ambição e pela impunidade a cometer horrores crescentes, que agravam o temor da retaliação, reforçando e tornando repetitivo o exercício da sanha assassina. Mas é Shakespeare já depurado pelo filtro de Kurosawa, cuja presença é insofismável, advinda de seus suntuosos épicos com enredos históricos, ou mesmo da transplantação que fez de "Macbeth" para o Japão, traduzido para "Trono Manchado de Sangue". Assim Kurosawa foi trazendo para o celulóide a estética do teatro Nô e do Kabuki, o fausto da corte asiática, a pompa, a estilização, o hieratismo, a etiqueta, o decoro. A crônica do imperador Qin Shihuangdi, ou seja, "Primeiro Imperador da Dinastia Qin" (assim renominado ao se tornar imperador, pois antes era chamado, como no filme, Ying Zheng), é rica de incidentes e de feitos, tendo em vista seu papel crucial no nascimento de uma nação. Subjugou os outros seis reinos em 221 a.C., liquidando o período dos reinos combatentes, praticando uma política de terra arrasada, passando a fio de espada literalmente milhões de pessoas, violando tratados e alianças. Nem sequer poupava crianças, as quais, numa cidade que acabara de expugnar, mandou enterrar vivas, após ter prometido poupá-las, e eram muitas. Massacre Em outro episódio, ordenou o massacre de dois principezinhos seus irmãos. Como personagem, é um psicopata no último grau da demência e da perda de balizas morais, regredindo à posição infantil, choramingando e balbuciando, tentando obter o perdão de sua mãe no leito de morte: mas ela lhe cospe na cara. Jamais vacilando, no entanto, quanto ao objetivo de se tornar imperador, numa obsessão a que empresta sua maior eficácia. As intrigas palacianas abundam, de um lado, e de outro, as cenas de batalha, impressionantes pelo vulto, naturalmente em escala chinesa, das massas movimentadas. Uma das mais notáveis pelo esplendor plástico é aquela em que um motim de guardas do palácio, liderado pelo amante da mãe, que intenta um golpe de estado, é debelado pelos esquadrões leais, que os vão encurralando num pátio imenso delimitado por muralhas. Ao ver-se perdido, num gesto digno, o usurpador troca sua rendição pessoal -que o sujeitaria às piores torturas antes da execução- pelo salvo-conduto para seus comandados. O imperador dá a sua palavra e em seguida a viola, mandando chacinar todos ali mesmo, às suas vistas. O fio do enredo é, com todos os seus volteios, um dos muitos atentados contra a vida de Qin Shihuangdi, que ainda reinaria até 210 a.C., tendo ascendido ao trono em 247 a.C., aos 13 anos. O espectador tem diante de si três horas de um gigantesco afresco histórico, uma maravilha de encher os olhos. Walnice Nogueira Galvão é ensaísta e crítica literária, autora, entre outros, de "A Donzela-Guerreira" (Editora do Senac) e "Guimarães Rosa" (Publifolha). Texto Anterior: + autores - Juan José Saer: Linha contra cor Próximo Texto: + livros: Lanche feliz Índice |
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