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João vai à guerra
O psicanalista Renato Mezan vê falha
nos superegos dos assassinos do menino
de 6 anos
e alerta para
o risco de
esgarçamento
do tecido
social
RENATO MEZAN
COLUNISTA DA FOLHA
U
m garoto de seis
anos arrastado por
vários quilômetros, preso ao cinto
de segurança de
um carro: a crueldade inominável desse ato chocou mesmo
os policiais que o encontraram,
após o abandono do veículo pelos bandidos que o queriam
roubar -um deles menor de
idade, outros tendo completado há pouco 18 anos.
A primeira reação de quem
toma conhecimento de um crime assim bárbaro é exigir que
ele seja castigado, até por
meios cruéis. Os assassinos deveriam experimentar na própria pele a dor que causaram ao
menino e à sua família... Olho
por olho, dente por dente.
Mas, justamente, não somos
bárbaros: a sociedade não pode
reagir na mesma moeda que os
criminosos.
Contudo sentimos necessidade de compreender como é
possível um ato dessa natureza
e se se podem tomar medidas
para evitar sua repetição.
A violência é uma constante
na história da humanidade.
Sob a forma de guerras, massacres, escravização dos vencidos, tortura e outras práticas,
acompanha desde as cavernas
a trajetória da nossa espécie.
Freud e Durkheim
Variam seus modos de expressão: ela pode ser coletiva,
como nos exemplos acima, ou
individual (crimes), física ou
mental, aberta ou sutil, ocasional ou constante, neste caso
configurando um estado de violência que eventualmente chega a desagregar o tecido social
(o sociólogo Émile Durkheim
chamava a isso "anomia", ausência de lei) -mas está sempre no horizonte da vida social.
Freud a explicava como conseqüência da nossa constituição psíquica, "que inclui uma
boa dose de agressividade" ("O
Mal-Estar na Cultura").
Cobiça, ambição, inveja, rivalidade, raiva, desejo de vingança são sentimentos que fazem
parte da natureza humana, e
que desde sempre induziram
atos violentos, cujo objetivo é
assegurar a quem os pratica riqueza, glória, sucesso, reabilitação da sua auto-estima e assim por diante.
"Homo homini lupus", o homem é o lobo do homem, dizia
o filósofo Thomas Hobbes.
Ocorre que a sociedade não
pode tolerar tais atos, e, para os
coibir, criaram-se normas e punições para quem as viola.
O medo do castigo -dor física, privação de liberdade, penas
pecuniárias, morte- é um dissuasor eficaz, mas precisa ser
complementado pela adesão de
cada indivíduo aos valores promovidos por seu grupo -o que,
segundo a psicanálise, é obtido
pela instalação em sua mente
de uma instância denominada
superego.
É a ele que, como agente interno das normas externas, incumbe o controle dos nossos
impulsos, em particular dos
violentos.
Em certas pessoas, porém, o
superego falha em sua missão.
Nelas inexiste, ou é muito
precário, o sentimento de compaixão; seu comportamento revela que não vêem no outro um
semelhante, mas um meio para
satisfazer suas pulsões e fantasias ou, se ameaçar a realização
delas, um obstáculo a ser eliminado. É o caso dos assassinos e,
mais geralmente, dos psicopatas, que sempre colocam seus
objetivos acima de qualquer
outra consideração -e, para os
alcançar, não têm escrúpulo
em causar dano a quem quer
que seja.
É claro que existem motivos
sociais para o crime. Miséria,
fome, desigualdade gritante
podem gerar ódio e desespero,
especialmente se a sociedade
não oferece perspectivas de reduzir por meios dignos tais mazelas; quem as experimenta pode querer privar os mais favorecidos do que possuem, pois a
situação é sentida como um
acinte -por que ele e não eu?
Mas é preciso cuidado para, a
pretexto de "ser de esquerda",
não invocar esses fatores como
se fossem uma verdade absoluta, válida para qualquer caso
-principalmente diante de crimes praticados com uma desumanidade que claramente satisfaz impulsos inconscientes.
Furtar uma carteira, arrancar a bolsa de uma mulher ou
exigir o tênis de marca de um
adolescente são coisas bem diferentes do que premeditar um
assassinato ou cometê-lo nas
circunstâncias da tragédia que
vitimou João Hélio.
"Boneco de Judas"
O mais chocante, neste caso,
é a frieza do jovem que, ao ser
interrogado sobre por que não
deteve o carro ao perceber o
que estava acontecendo, respondeu que se tratava de um
"boneco de Judas".
Eis como uma tradição cultural (a malhação do Judas, em
outros tempos freqüentemente
acompanhada por ataques a judeus no sábado de Aleluia) pode criar uma racionalização da
violência (é lícito punir os assassinos de Cristo) e um modelo de impunidade (se são culpados de deicídio, é um ato piedoso agredi-los).
Nenhum motivo "social", porém, pode dar conta da crueldade dos assassinos. A vida é dura
nas favelas, mas seus habitantes são via de regra pessoas decentes, incapazes de fazer o que
eles fizeram: não é porque são
desprovidos de muitas das coisas que desejam que saem por
aí roubando automóveis ou
matando crianças.
O que terá passado pela cabeça dos ladrões, ao perceber o
que estava acontecendo do lado
de fora do carro?
Infelizmente, suspeito que
nada. Nas pessoas normais, entre o impulso ou fantasia e o ato
se interpõe todo um sistema de
mediações: imagens, palavras,
representações, expectativas,
sentimentos e assim por diante. No indivíduo impulsivo, essas mediações são frágeis ou
inexistentes: ele passa quase de
imediato do impulso à ação e só
depois se dá conta das conseqüências.
O psicopata, que se caracteriza pela ausência do sentimento
de culpabilidade, sequer se arrepende do que praticou, enquanto a pessoa simplesmente
impulsiva pode querer reparar
o dano que causou -quando este admite reparação, o que, está
longe de ser o caso na tragédia
do Rio de Janeiro.
Pode-se ter por inimputável
alguém que faz algo desse gênero? Se for menor de idade, a lei
brasileira não permite que seja
condenado à mesma pena que
um adulto.
Aqui me parece necessário
revisá-la, mesmo que menores
de idade, estupradores e assassinos como Champinha (em
Embu, em SP) ou como alguns
dos jovens que causaram a
morte do menino carioca não
posssam ser colocados na mesma categoria que um "avião" de
traficantes ou que um garoto
que assalta por dinheiro.
É óbvio que tais atos são intoleráveis; deve existir vigilância
e repressão para os evitar, sem
prejuízo da tentativa de recuperar, com medidas socioeducativas, o menor que os tiver
praticado.
Reformulação da lei
Mas é nítida a fronteira entre
delitos contra a propriedade,
ou infrações leves, e crimes
contra a vida e a integridade de
outro ser humano.
Sem cair em barbárie semelhante à dos assassinos de João
Hélio, sem os querer linchar
-numa manifestação de violência que nos colocaria no
mesmo nível que eles-, é preciso reavaliar dispositivos legais
que, ao garantir penas leves, em
nada contribuem para dissuadir menores de praticar atos
dos mais cruéis.
A lei deve ser reformulada,
tomando-se as devidas cautelas
para evitar precipitação e injustiça. Por exemplo, exames psicológicos poderiam ser realizados por dois peritos independentes, e o juiz se serviria desses laudos para tomar sua decisão. O que não pode continuar
acontecendo é que crimes hediondos permaneçam, de fato,
impunes -ou a banalização da
violência acabará por rasgar o
tecido já esgarçado da sociedade brasileira.
O brado de Aline, irmã do
menino assassinado, deve ser
ouvido: "Justiça!".
RENATO MEZAN é psicanalista e professor titular da Pontifícia Universidade Católica de SP.
Escreve na seção "Autores", do Mais! .
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