São Paulo, domingo, 18 de fevereiro de 2007

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João vai à guerra

O psicanalista Renato Mezan vê falha nos superegos dos assassinos do menino de 6 anos e alerta para o risco de esgarçamento do tecido social

RENATO MEZAN
COLUNISTA DA FOLHA

U m garoto de seis anos arrastado por vários quilômetros, preso ao cinto de segurança de um carro: a crueldade inominável desse ato chocou mesmo os policiais que o encontraram, após o abandono do veículo pelos bandidos que o queriam roubar -um deles menor de idade, outros tendo completado há pouco 18 anos. A primeira reação de quem toma conhecimento de um crime assim bárbaro é exigir que ele seja castigado, até por meios cruéis. Os assassinos deveriam experimentar na própria pele a dor que causaram ao menino e à sua família... Olho por olho, dente por dente. Mas, justamente, não somos bárbaros: a sociedade não pode reagir na mesma moeda que os criminosos.
Contudo sentimos necessidade de compreender como é possível um ato dessa natureza e se se podem tomar medidas para evitar sua repetição. A violência é uma constante na história da humanidade. Sob a forma de guerras, massacres, escravização dos vencidos, tortura e outras práticas, acompanha desde as cavernas a trajetória da nossa espécie.

Freud e Durkheim
Variam seus modos de expressão: ela pode ser coletiva, como nos exemplos acima, ou individual (crimes), física ou mental, aberta ou sutil, ocasional ou constante, neste caso configurando um estado de violência que eventualmente chega a desagregar o tecido social (o sociólogo Émile Durkheim chamava a isso "anomia", ausência de lei) -mas está sempre no horizonte da vida social. Freud a explicava como conseqüência da nossa constituição psíquica, "que inclui uma boa dose de agressividade" ("O Mal-Estar na Cultura"). Cobiça, ambição, inveja, rivalidade, raiva, desejo de vingança são sentimentos que fazem parte da natureza humana, e que desde sempre induziram atos violentos, cujo objetivo é assegurar a quem os pratica riqueza, glória, sucesso, reabilitação da sua auto-estima e assim por diante.
"Homo homini lupus", o homem é o lobo do homem, dizia o filósofo Thomas Hobbes. Ocorre que a sociedade não pode tolerar tais atos, e, para os coibir, criaram-se normas e punições para quem as viola. O medo do castigo -dor física, privação de liberdade, penas pecuniárias, morte- é um dissuasor eficaz, mas precisa ser complementado pela adesão de cada indivíduo aos valores promovidos por seu grupo -o que, segundo a psicanálise, é obtido pela instalação em sua mente de uma instância denominada superego.
É a ele que, como agente interno das normas externas, incumbe o controle dos nossos impulsos, em particular dos violentos. Em certas pessoas, porém, o superego falha em sua missão. Nelas inexiste, ou é muito precário, o sentimento de compaixão; seu comportamento revela que não vêem no outro um semelhante, mas um meio para satisfazer suas pulsões e fantasias ou, se ameaçar a realização delas, um obstáculo a ser eliminado. É o caso dos assassinos e, mais geralmente, dos psicopatas, que sempre colocam seus objetivos acima de qualquer outra consideração -e, para os alcançar, não têm escrúpulo em causar dano a quem quer que seja.
É claro que existem motivos sociais para o crime. Miséria, fome, desigualdade gritante podem gerar ódio e desespero, especialmente se a sociedade não oferece perspectivas de reduzir por meios dignos tais mazelas; quem as experimenta pode querer privar os mais favorecidos do que possuem, pois a situação é sentida como um acinte -por que ele e não eu? Mas é preciso cuidado para, a pretexto de "ser de esquerda", não invocar esses fatores como se fossem uma verdade absoluta, válida para qualquer caso -principalmente diante de crimes praticados com uma desumanidade que claramente satisfaz impulsos inconscientes.
Furtar uma carteira, arrancar a bolsa de uma mulher ou exigir o tênis de marca de um adolescente são coisas bem diferentes do que premeditar um assassinato ou cometê-lo nas circunstâncias da tragédia que vitimou João Hélio.

"Boneco de Judas"
O mais chocante, neste caso, é a frieza do jovem que, ao ser interrogado sobre por que não deteve o carro ao perceber o que estava acontecendo, respondeu que se tratava de um "boneco de Judas". Eis como uma tradição cultural (a malhação do Judas, em outros tempos freqüentemente acompanhada por ataques a judeus no sábado de Aleluia) pode criar uma racionalização da violência (é lícito punir os assassinos de Cristo) e um modelo de impunidade (se são culpados de deicídio, é um ato piedoso agredi-los). Nenhum motivo "social", porém, pode dar conta da crueldade dos assassinos. A vida é dura nas favelas, mas seus habitantes são via de regra pessoas decentes, incapazes de fazer o que eles fizeram: não é porque são desprovidos de muitas das coisas que desejam que saem por aí roubando automóveis ou matando crianças.
O que terá passado pela cabeça dos ladrões, ao perceber o que estava acontecendo do lado de fora do carro? Infelizmente, suspeito que nada. Nas pessoas normais, entre o impulso ou fantasia e o ato se interpõe todo um sistema de mediações: imagens, palavras, representações, expectativas, sentimentos e assim por diante. No indivíduo impulsivo, essas mediações são frágeis ou inexistentes: ele passa quase de imediato do impulso à ação e só depois se dá conta das conseqüências. O psicopata, que se caracteriza pela ausência do sentimento de culpabilidade, sequer se arrepende do que praticou, enquanto a pessoa simplesmente impulsiva pode querer reparar o dano que causou -quando este admite reparação, o que, está longe de ser o caso na tragédia do Rio de Janeiro.
Pode-se ter por inimputável alguém que faz algo desse gênero? Se for menor de idade, a lei brasileira não permite que seja condenado à mesma pena que um adulto. Aqui me parece necessário revisá-la, mesmo que menores de idade, estupradores e assassinos como Champinha (em Embu, em SP) ou como alguns dos jovens que causaram a morte do menino carioca não posssam ser colocados na mesma categoria que um "avião" de traficantes ou que um garoto que assalta por dinheiro. É óbvio que tais atos são intoleráveis; deve existir vigilância e repressão para os evitar, sem prejuízo da tentativa de recuperar, com medidas socioeducativas, o menor que os tiver praticado.

Reformulação da lei
Mas é nítida a fronteira entre delitos contra a propriedade, ou infrações leves, e crimes contra a vida e a integridade de outro ser humano. Sem cair em barbárie semelhante à dos assassinos de João Hélio, sem os querer linchar -numa manifestação de violência que nos colocaria no mesmo nível que eles-, é preciso reavaliar dispositivos legais que, ao garantir penas leves, em nada contribuem para dissuadir menores de praticar atos dos mais cruéis.
A lei deve ser reformulada, tomando-se as devidas cautelas para evitar precipitação e injustiça. Por exemplo, exames psicológicos poderiam ser realizados por dois peritos independentes, e o juiz se serviria desses laudos para tomar sua decisão. O que não pode continuar acontecendo é que crimes hediondos permaneçam, de fato, impunes -ou a banalização da violência acabará por rasgar o tecido já esgarçado da sociedade brasileira. O brado de Aline, irmã do menino assassinado, deve ser ouvido: "Justiça!".


RENATO MEZAN é psicanalista e professor titular da Pontifícia Universidade Católica de SP. Escreve na seção "Autores", do Mais! .


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