São Paulo, domingo, 18 de março de 2001 |
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Bricolagem de tradições
Peter Burke
O que estava acontecendo? Revendo-o de uma distância de quase duas décadas, parece claro que o livro foi levado ao sucesso por uma onda cultural muitas vezes descrita como "pós-modernismo". Foi um destino apropriadamente paradoxal para esse livro de título paradoxal, já que seus autores não eram pós-modernistas. Trevor-Roper, por exemplo, era conservador demais, e Hobsbawm, marxista demais para serem simpáticos a essa nova tendência cultural. É fácil imaginar Trevor-Roper lançando-se em uma apaixonada denúncia do pós-modernismo ou Hobsbawm comentando-o com a sua maneira habitualmente distante e irônica. De qualquer forma, a onda estava chegando. Certamente não é por acaso que tantos livros com a palavra "invenção" no título tratem da história da identidade coletiva, especialmente a identidade étnica. Aos exemplos da Etiópia, Escócia e Argentina citados acima, poder-se-iam acrescentar os da França, Espanha, Irlanda, América e África. O que ainda surpreende é o fato de que -até onde sei- ainda não se publicou um livro com o título de "A Invenção do Brasil". Na verdade, a maré de invenções começou antes da publicação de "A Invenção das Tradições" (lançado no Brasil pela ed. Paz e Terra), de Eric Hobsbawm, em 1983. Na França, por exemplo, "L'Invention du Quotidien" ("A Invenção do Cotidiano", ed. Vozes), de Michel de Certeau, apareceu em 1980, enquanto "L'Invention d'Athènes" ("Invenção de Atenas", ed. 34), da estudiosa clássica Nicole Loraux, foi publicado em 1981. A imaginação no poder O historiador François Furet não escolheu a palavra "invenção" para o livro sobre a Revolução Francesa que publicou em 1978, mas sua reinterpretação da revolução seguiu na mesma direção, enfatizando a importância do discurso revolucionário na criação de uma nova realidade política. Na Itália, um livro intitulado "L'Invenzione del Paraguay", que aborda os missionários jesuítas, foi publicado no mesmo ano da coleção de Hobsbawm, 1983. No entanto o verdadeiro pioneiro, tão à frente da tendência geral que seu livro não foi levado a sério, foi o historiador mexicano Edmundo O'Gorman, que escreveu sobre "La Invención de América" nos anos 40, afirmando que o que importava historicamente não era tanto a descoberta feita por Colombo, mas a identificação das terras descobertas como um quarto continente. O que era tão interessante nesses títulos? O ponto básico, expresso com grande clareza no mais teórico desses livros, o de Michel de Certeau, é a questão da liberdade humana. Reagindo contra o determinismo social das décadas de 50 e 60 e acompanhando os memoráveis protestos em Paris e Praga em 1968, os autores da maioria desses livros deram menor destaque do que se costumava às restrições impostas pelo ambiente físico ou social. O aumento do preço dos cereais, por exemplo, não cabe no relato da Revolução Francesa apresentado por Furet, que havia muito deixara o marxismo de sua juventude. O que os autores desses livros geralmente enfatizam -e às vezes, como Certeau, também comemoram- é a criatividade humana, especialmente a criatividade coletiva, a vontade das pessoas comuns de modificar tanto seus entornos quanto suas identidades, imaginando-os de novas formas. Em Paris, um dos lemas pintados nos muros em 1968 foi "a imaginação no poder". Em 1983, pelo menos nas universidades, começou-se a ouvir pessoas falarem sobre "comunidades imaginárias", frase cunhada por Benedict Anderson em uma história do nacionalismo que foi publicada no mesmo ano que "A Invenção da Tradição" e destinava-se a um sucesso parecido. Agora que a excitação original da nova abordagem amorteceu, talvez seja possível não apenas colocar em perspectiva histórica o que poderíamos chamar de "a invenção da invenção", como venho tentando fazer nos últimos parágrafos, mas também avaliar sua importância e validade. Poder-se-ia começar fazendo uma distinção entre o estudo original de "A Invenção da Tradição" e seus filhos intelectuais. Normalmente não se pensa em Eric Hobsbawm como um romântico, mas, assim como os descobridores da cultura popular na era do romantismo, ele opera com um conceito de tradição "genuína" ou "autêntica" que diferencia das inventadas no final do século 19. Essa distinção levanta um sério problema. No final do século 19, certas tradições, como o Dia da Bastilha, eram evidentemente novas, mas tradições mais antigas também parecem ter sido inventadas em sua época, talvez no século 18 ou 17. O que queremos dizer ao chamá-las de "autênticas"? Em contraste com Hobsbawm, os autores mais recentes de livros de "invenção" fazem pouca ou nenhuma referência à autenticidade, implicando que todas as formas culturais são invenções. No entanto essa solução para o problema gera problemas próprios. Ninguém, mesmo no meio de uma revolução cultural, existe em um vácuo cultural. Gostem disso ou não, as pessoas estão sempre cercadas de tradições e, mesmo quando decidem abolir uma, têm de aceitar outras, pelo menos provisoriamente. A liberdade, a criatividade e a invenção têm limites. Elas são moldadas por contingências culturais, assim como sociais e materiais. Por isso talvez fosse melhor falar em "reconstrução" das tradições, em vez de invenção, já que o que ocorre não é tanto a criação a partir do nada quanto uma tentativa de bricolagem, de dar novos usos a materiais antigos ou fazer novas declarações com palavras antigas. Alguns cosmólogos falam na "criação contínua" do Universo. O mundo cultural também pode ser considerado um processo de criação contínua, ou recriação, como uma espécie de canteiro de obras onde os andaimes nunca são desmontados porque a reconstrução cultural nunca termina. Peter Burke é historiador inglês, autor de "Variedades de História Cultural" (ed. Civilização Brasileira) e "O Renascimento Italiano" (ed. Nova Alexandria), entre outros. Ele escreve mensalmente na seção autores do "Mais!". Tradução Luiz Roberto M. Gonçalves. Texto Anterior: Tzvetan Todorov: Ascensão do homem público Próximo Texto: Robert Kurz: Populismo histérico Índice |
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