São Paulo, domingo, 18 de março de 2001 |
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+ música As múltiplas faces do som
Carlos Rennó
No shopping center de variedades que é o vasto mundo do
disco e do "showbiz" -o comércio de encantos da música
popular contemporânea-, o que ele fez
é um feito: depois de um grande disco,
realizou outro grande disco. Pois é. Nem
bem estávamos refeitos dos impactantes
efeitos de "Com Defeito de Fabricação"
(seu CD anterior) e mais uma vez Tom
Zé nos pegou no contrapé: o lançamento
de "Jogos de Armar - Faça Você Mesmo"
(ambos pela gravadora Trama) constitui
uma proeza, mais marcante ainda por
ser inédita: trata-se da primeira obra discográfica realmente, literalmente, aberta
já realizada por alguém no terreno da
música popular produzida até estes dias,
no Brasil e no mundo, pode-se dizer. Alguém tem notícia de um caso dessa natureza? É improvável.
As interpretações, inteligentes, estabelecem isomorfismos entre "motz et son". Além disso, destacam as teatrais-criativas, funcionais, cômico-dramáticas vozes feitas pelo intérprete. "Last but not least", há os ruidosos-musicais, bizarros sons dos "instromzémentos". Quebra-línguas A propósito, compósitos tomzeanos (compondo todo um refrão -o de "Desafio", por exemplo) como "instromzémentos" colaboram para a valorização poética dos textos, instrumentalizados com recursos de várias espécies: aliterações e paronomásias (como os chamados "quebra-línguas" nordestinos, numa aprazível melopéia em "Conto de Fraldas"); "non sense" e trocadilhos (uma dúzia deles na série de "Jimi Renda-Se"); fragmentações vocabulares ("Chamegá"); e uma dezena de novas, cantáveis onomatopéias. No plano temático, o tratamento mordaz, antipatético, sarcástico, de mazelas e tragédias nacionais, prostituição infantil, FMI, "globarbarização", miséria... "Se eu pudesse atrasaria/ Esse relógio dois mil/ Pra rezar na primeira missa/ Pelo futuro do Brasil" ("Perisséia", com Capinan). Aguda contundência. Inquietação. Humor crítico. Estranhezas. Sentido ético (e, contudo, auto-ironicamente, ele batiza tudo de "música do século passado"). "Ele representa um novo pensamento cujas características talvez ainda não conheçamos; é alguma coisa que está prestes a chegar. Ele desenvolve um estilo muito próprio, algo que funde, pode-se dizer, praticamente todas as características que surgiram ultimamente na música, como a superação de certos dualismos, como consonância e dissonância, belo e feio. É um artista que não tem medo, que vai adiante, que apresenta uma arte capaz de transformar as pessoas que a consomem. Para mim, essa é a função principal do artista", disse um Hans-Joachim Koellreuter emocionado (profetizou, é mais exato dizer). Não admira, portanto, a admiração da rapaziada que o descobriu na década passada. Aos 64 anos, poucos permanecem tão novos (dirá talvez Augusto de Campos) como ele se mantém. Ou tão singulares (como provavelmente preferirá, por sua vez, Miguel Wisnik, o outro Zé da cena paulistana de Arrigo e Arnaldo a Tom Zé e Zé Miguel: de A a Z na paulicéia desvairada). De fato, quase ninguém se parece tanto apenas consigo mesmo. Entre tantos gênios que produzem sob a inspiração que cai do céu, partindo sempre do zero, compondo célula por célula, na escuridão completa, totalmente sozinho, ele é um antigênio total. Mas genial. Com suas imperfeições (felizmente). Com suas contribuições e até com seus "arrastões" (como ele, com desconcertante franqueza, chama os seus empréstimos e apropriações). Com seus requintes e suas singelezas. Tiremos nosso chapéu e aceitemos o convite que ele gentilmente nos faz com este recém-lançado CD. Arte e vida sorriem juntas, outra vez. O que o disco contém alenta, emociona, informa, sensibiliza, entretém. Esses "Jogos" causam prazer estético. Este, o maior, pode-se dizer, de seus méritos. P.S.: Se não se trata de "bad boy", "bom rapaz" também está longe de ser. Apocalíptico, sim, com certeza, é. Tom Zé: um eterno rebelde tropicalista, com Schoenberg, contraponto clássico e serialismo de um lado, Zeca Cachangá, Xanduzinha e "cê-cê de marré-deci" de outro. Carlos Rennó é letrista e jornalista, produtor do CD "Cole Porter e George Gershwin - Canções, Versões" (Geléia Geral) e organizador do livro "Gilberto Gil - Todas as Letras" (Cia. das Letras). Texto Anterior: + brasil 501 d.C. - Bento Prado Jr.: Ciência política e revolução Próximo Texto: + livros - Susan Sontag: Mergulho num lago gelado Índice |
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