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A criação da sexualidade feminina
Giovanna Bartucci
especial para a Folha
Sem dúvida, na discussão sobre a
natureza e o lugar da mulher, a
questão da sexualidade feminina
ainda é a mais delicada. Não é à toa
que Carol Groneman, professora de história no John Jay College de Justiça da
Universidade da Cidade de Nova York,
passou dez anos efetuando pesquisas em
áreas nas quais tinha pouca experiência,
como a medicina e o direito, intrigada
com a idéia do que a ninfomania poderia
revelar sobre as atitudes em relação à sexualidade feminina, nos Estados Unidos,
durante os últimos 200 anos.
Se para alguns de seus alunos o significado do termo corresponderia a uma
mulher hipersexuada ou obcecada por
sexo, para outros significaria o mesmo
que vício sexual; outros ainda não saberiam como definir "ninfomania". Também seus colegas se mostraram indecisos quanto ao significado do termo
-"não teria a revolução sexual eliminado-o por completo?". Pois, sim, "Ninfomania" nasce da tentativa de oferecer
respostas para perguntas tais como:
"Quanto é demais? Quanto não é suficiente? Há uma quantidade saudável,
normal e natural de sexo? E quem decide? São esses exatamente os problemas
tratados num estudo sobre a ninfomania", dirá Groneman. E não há por que
não nos adiantarmos: "Ao longo de 200
anos, sua definição instável e incerta (do
termo) sugere apenas o quanto a cultura
molda nossa compreensão do comportamento e desejo sexual feminino, agora
e no passado", conclui a autora.
""Ninfomania" vem da combinação de
duas palavras de origem grega: "mania",
significando loucura ou frenesi, e "ninfo",
significando uma noiva ou, mais geralmente, uma donzela. Na mitologia, as
ninfas eram semidivinas, habitando os
rios, o mar, os bosques ou as colinas. Sua
beleza podia levar os homens à loucura.
Em latim, "nymphae", plural de
"nympha", significa os lábios internos da
vulva, acrescentando outra dimensão ao
significado do termo".
Mas atenção: se, como doença, a ninfomania é um conceito relativamente moderno, suas raízes são
(muito) antigas. Como
nos diz a autora, "o médico grego Galeno, no século 2º, por exemplo, acreditava que a fúria uterina
ocorria particularmente
entre jovens viúvas, cuja
perda da satisfação sexual
podia levá-las à loucura.
Com base na teoria de que os humores
do corpo deviam ser mantidos em equilíbrio, textos médicos gregos antigos presumiam que as mulheres, porque seus
humores eram frescos e úmidos, precisavam do intercurso sexual para abrir,
aquecer e drenar o sangue.
Fúria uterina Isso levava a um desejo insaciável de sêmen por parte das mulheres; o que resultou, diante de sua menor capacidade para controlar esses desejos, na convicção de que as mulheres
eram mais carnais do que os homens"
(será essa a razão pela qual Don Juan é,
afinal, celebrado como um herói, tendo,
ao longo dos anos, se esquivado da castração, o equivalente da clitoridectomia e
ovariotomia recomendadas por alguns
médicos como tratamento para a ninfomania?).
Enfim, há também quem diga que se
Eva, em aliança com Satã,
não tivesse seduzido
Adão, estaríamos todos
ainda vivendo no paraíso
e mantendo relações sexuais "sem luxúria".
Pois, sim, de acordo
com Groneman, terá sido
a partir do século 18 que
mudanças drásticas na
compreensão da sexualidade feminina
começaram a ocorrer. As noções modernas de "fúria uterina" ou ninfomania
passaram a refletir premissas bastante
diferentes sobre o desejo sexual feminino, transformação essa que se deu, em
graus variados, em todo o mundo ocidental. No século 19, o caráter "inato"
das mulheres, antes luxurioso, foi "recriado" como recatado e submisso. Menos apaixonadas e racionais que os homens, as mulheres eram vulneráveis à
ninfomania e outras "doenças sexuais",
especialmente durante a puberdade,
menstruação, parto e menopausa.
Enquanto esse novo "ideal" referia-se à
mulher como uma categoria universal,
na realidade incluindo apenas as mulheres brancas de classe média, as mulheres
"mais primitivas", com "uma natureza
mais próxima do animal, quer fossem
pobres, imigrantes ou (negras), tinham
maior promiscuidade sexual". Nesse
contexto, a ninfomania era uma doença
em desenvolvimento permanente.
Se para a autora a medicina foi o ponto
de partida para o estudo da ninfomania,
"a história estende-se além da medicina,
até o direito, a psicologia e a cultura popular, inclusive a interação entre eles".
"Como a ninfomania vista por meio das
lentes jurídica, médica, psicológica e popular é um (termo) muito ambíguo", Groneman apresenta sua história organizada em capítulos de várias camadas.
O capítulo dedicado à "ninfomania do
corpo" é a expressão de "muitas teorias
médicas diferentes (que) tentavam explicar as causas da ninfomania: nervos esgotados, inflamação no cérebro, lesões
na coluna, cabeças deformadas, além da
genitália irritada e clítoris ampliado". A
senhora R., 20 anos e grande disposição,
viúva recente, atribuía à leitura de romances e ao comparecimento a festas
alegres na juventude a causa de "sua
imaginação ser atiçada ao mais alto
grau". Ou seja, de breves referências sobre uma paciente determinada a exames
em larga escala da doença, os casos discutidos pela autora revelam tentativas de
médicos -e de suas pacientes- para
determinar o significado da ninfomania.
Se ainda no início do século 20 os modelos biológicos não haviam sido descartados, as explicações psicológicas começaram a apontar para a ninfomania como um distúrbio de personalidade. "A
semininfomaníaca, a esposa erotizada,
encorajada pelas noções modernas a esperar a satisfação sexual conjugal, o que
muitas vezes não acontecia; a "nova" jovem das classes trabalhadoras, sexualmente precoce, "hipersexual" e delinquente; e a "Nova Mulher", masculinizada, sexualmente aberrante (...), as reformistas, sufragistas, profissionais instruídas, exigindo seu lugar na arena pública", são as novas interpretações das mulheres e de sua sexualidade.
Assim, passando pelos "estudiosos do
sexo", por casos de "ninfomania nos tribunais" e pela "revolução sexual" -"a
ninfomania desapareceu do manual de
distúrbios da Associação Psiquiátrica
Americana" (DSM)-, a autora chega à
conclusão de que, "por trás das portas fechadas de consultórios médicos e vestiários masculinos, surgiu uma "ninfo feliz",
nas décadas de 60 e 70". A ninfo feliz refletia, então, "as modernas teorias sexuais sobre o potencial multiorgásmico
das mulheres". No entanto, se a "contra-revolução sexual" adquiriu impulso na
década de 80, refletindo ainda as mesmas
preocupações sobre quanto sexo seria
demais, quanto não seria suficiente e
quem decidiria, tratava-se de um movimento conservador em ascensão que
atacava o que era percebido como "um
colapso da moral ao melhor estilo de Sodoma, manifestado pelo sexo pré-conjugal, direitos gays, aborto, pornografia e
educação sexual". Nas palavras de Groneman, "do meio dessas areias movediças culturais, a ninfomaníaca assumiu
outra imagem, a da "viciada em sexo".
Nesse modelo inspirado pelos Alcoólicos Anônimos, o sexo, como o álcool e as
drogas, podia levar a um comportamento viciado" -como em outros vícios,
não há "cura", a pessoa se mantém "em
recuperação" pelo resto da vida.
Finalmente, foi no cinema que diferentes versões da ninfomania foram apresentadas, nos anos pós-revolução sexual:
a "femme fatale", elegante e perigosa, explicitamente bissexual; a heroína sexual
pirada, pronta para se divertir; a jovem
carente sexualmente, à procura de amor;
a negra, assertiva sexualmente, que "precisa ser posta em seu lugar"; a associação
da compulsão, da mentira patológica e
da frigidez com a ninfomania.
Mas, como destaca a autora, "nenhum
deles ofereceu o que se presumiu (...) que
a libertação sexual feminina acarretaria:
uma mulher sexual apaixonada e plenamente realizada". De acordo com Gronemam, a "mulher da década de 90 não
tem medo do desejo sexual em si; apenas
não compreende por que isso continua a
afugentar seus namorados". Aliás, antes
que me esqueça, "satiríase" é o equivalente masculino do termo "ninfomania".
Ninfomania
256 págs., R$ 28,00
de Carol Groneman. Trad. de Alfredo Pinheiro de Lemos. Ed.
Imago (r. Santos Rodrigues,
201-A, CEP 20250-430, RJ, tel.
0/xx/ 21/502-9092).
Giovanna Bartucci é psicanalista, autora de "Borges - A Realidade da Construção" (Imago).
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