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"Made In Africa", de Câmara Cascudo, dá início ao relançamento de várias das obras do etnólogo potiguar
O filósofo do povo brasileiro
Gilberto Vasconcellos
especial para a Folha
Até que enfim!
Luís da Câmara Cascudo reeditado. Maravilha.
Tomara que os seus 150 livros renasçam no prelo, incluindo cartas e artigos, porque ele foi um
exímio fazedor de cartas. Prodígio de escritor. Alto nível. Profícuo. Cada livro melhor do que o outro, demorando em alguns deles 50 anos para escrevê-los, sozinho, batendo à máquina, nenhuma ajuda de secretários
ou auxiliares. Coisa alucinada. Certamente será lido
com enorme interesse quando o mundo estiver lá pelos
anos 3500.
Dispenso-me aqui de comentar a burrice e a perfídia
nas universidades de 1930 até agora, que não o escolheram como o maior e mais autêntico filósofo do povo
brasileiro, cujas idéias deveriam ser materializadas política e institucionalmente, assim como já se tentou alhures converter a obra de Marx e Engels em "força material". O Brasil de ponta a ponta instruído pelo saber do
folclore. Ciência do povo. Folclore no poder. O fim da
absurda separação entre Estado e cultura popular.
Luís da Câmara Cascudo não poderia ter realizado a
monumental obra que escreveu se porventura tivesse
nascido em Boston ou na Suíça. Aos bobocas globalizantes deslumbrados, eis o seu lúcido recado: todo
mundo possui um coração dentro do peito, mas o ritmo
cardíaco não é o mesmo em cada um. Eu posso ainda
me sentir brasileiro, ainda que não entenda o Brasil.
Em Estocolmo, na gélida Suécia, colóquio sobre alimentação, um serelepe garçom falando em inglês sem
embaraço algum. Cascudo, atento, de olho no sujeito.
De repente pergunta em português:
- De que parte do Ceará você é?
- Baturité.
A gaia ciência cascudiana é tecida pela dialética entre
região, nação e mundo. Trialética. Que nem a velocidade inicial de jangada, com "três traves atadas entre si",
vale dizer: a tropical psique ibero-afro-ameraba com o
Brasil surgindo no palco da história mundial.
Nunca quis morar fora de Natal. Manteve a coordenada geográfica fincada no Nordeste. Dos quatro elementos fundamentais -terra, fogo, ar e água-, o homem
brasileiro estaria mais envolvido de corpo e alma com o
ar. Um filho do ar. O que se explica pelo complexo acústico e emocional que Cascudo denominou "vozes do canavial", sendo a cana-de-açúcar entre os dentes o primeiro sabor experimentado nos trópicos. A preocupação dele é sempre com o de-comer: "Jacaré e cobra d'água só não brigam quando há comida para os dois".
É lindo este título: "Made in Africa", feito na África.
Delicioso livro de Cascudo, original no pensamento e
estilo inconfundível, publicado pela primeira vez em
1966, aparece como marco fundamental no conjunto de
sua obra sobre o que é a cultura popular brasileira, formada por influxos trazidos de todos os
quadrantes do mundo. O andar rebolado de nossas mulheres, a "assombrosa
mobilidade glútea", veio com o africano
banto. A índia nos deu o leite de coco.
Cuscuz e cuíca são árabes. Sarapatel é
hindu. Vocábulo africano, brasileiro é
nome de banana, a fruta mais popular,
conhecida como engana-fome. Segundo
Cascudo, não foi a maçã a fruta do paraíso, e sim a banana. Que o leitor retenha esta frase maluca e irrefutável: "A maçã é pomologicamente impossível no paraíso". Seu amigo médico, doutor Silva Mello, trilhando o
mesmo caminho, levantou a hipótese de Adão e Eva serem pretos. A aventura humana começou na África.
O papagaio de papel veio da China, assim como é chinesa a mistura de camarões nas comidas baianas. A capoeira originou-se no sul da África. O beijo nasceu na
Ásia trazido pelos marujos de Cabral em 1500. O índio
não beijava nem fazia serenata. Luís da Câmara Cascudo foi à África ver o sol se pôr no mar, à diferença de seu
Nordeste, Rio Grande do Norte, onde o sol nasce no
mar.
Dois lados do Atlântico
O grande lance gnosiológico é que ele viu os dois lados do Atlântico, viu simultaneamente o Brasil n'África e África no Brasil. Os intelectuais de minha geração são todos virgens em África,
mas putanheiros reincidentes e contumazes em Europa
e Estados Unidos. A África foi satanizada que nem a favela carioca. Colonialismo, Horácio, colonialismo que
vinga até hoje. Os brasileiros somos alheios à fauna e à
flora, ao tempo e ao espaço, desdenhando o "water genius" e sereias de Iemanjá com filhos gêmeos do mato
na pátria das bananeiras. Citando mestre Oscar Ribas
de Luanda, que deu o mote conceitual para Roger Bastide escrever na década de 40 a "Psicanálise do Cafuné",
Luís da Câmara Cascudo se dizia "doutor em preto".
Na África é raro dizer negro, tal qual
em Portugal. Está em Cascudo, "Made in
Africa", a ciência do preto, não ficando a
dever nada a Florestan Fernandes e Gilberto Freyre. No pensamento brasileiro
Luís da Câmara Cascudo está abrindo o
terreiro que nem o compositor Zé Kéti
cantando "Eu Sou o Samba" no Rio de
Janeiro. Ainda continua popular o dito
da África: ninguém pode empatar devoção.
O feitiço é grego, Meleagro, e não "made in" África.
Ebó. Muamba. Despacho. Coisa feita. Catimbó. Canjerê. Candomblé. Assim devemos entender a natureza do
quebranto: feito por mãos africanas, não se deduza negro o feitiço. Seu compadre Mário de Andrade pisou na
bola ao considerar de origem africana no desafio repentista dos vaqueiros e cantadores.
"As sereias angolanas são sempre pretas e as da Bahia
sempre brancas, loiras, olho azul, espantosa reversão
inexplicável para os descendentes de africanos escravos
que pintavam de escuros as imagens dos santos católicos preferidos."
Conhecimento ostensivo
Luís da Câmara Cascudo sabia tudo sobre o negro africano e também sobre o
negro africano tornado brasileiro pelas bagaceiras, pela
boca, pelo paladar e pela comida. Não tinha nenhum
resquício de má consciência no que tange à mão-de-obra negra explorada, mas não chegou ao exagero de
mistificar o negro como a base da cultura popular brasileira. Soube distinguir com argúcia a infra-estrutura
econômica escravista da projeção negra na cultura popular. Seu conhecimento ostensivo e totalizante (comida, superstição, mito, sepultura) chegou à conclusão de
que, na cultura popular brasileira, a proporção, em termos de importância, é cinco para o português, três para
o indígena e um para o negro.
Ao fixar essa relação étnica, Cascudo sabia do que estava falando, pois privou com os melhores africanistas,
sendo amigo na Bahia de Edison Carneiro, que era negro, quiçá o único folclorista marxista brasileiro -aliás
se escondia da polícia nas casas de mãe-de-santo. Conhecedor da umbanda e teórico iluminado do samba,
Edison Carneiro fundou em Salvador, junto com o então jovem Cascudo, uma sociedade de malucos amantes do folclore que não tinha sede nem casa. Luís da Câmara Cascudo estava por dentro de todos os grandes
autores que estudaram a fundo a influência negra na civilização brasileira. Nina Rodrigues, Manuel Quirino,
Arthur Ramos, Gilberto Freyre, Silva Mello, Roger Bastide. Mas atenção: a influência negra na cultura popular,
segundo Cascudo, não é decisiva nem na Bahia, a despeito da massa demográfica de origem africana.
Made in Africa
188 págs., R$ 25,00
de Luís da Câmara Cascudo. Ed.
Global (r. Pirapitingui, 111, CEP
01508-020, SP, tel. 0/xx/ 11/
3277-7999).
Gilberto Felisberto Vasconcellos é professor de ciências sociais da
Universidade Federal de Juiz de Fora (MG) e autor, entre outros, de "O
Príncipe da Moeda" (ed. Espaço e Tempo) e "O Xará de Apipucos" (ed.
Casa Amarela).
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