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O continente FANTASMA
Reuters - 19.jan.2004
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Vista de mina de cobre em Chuquicamata, no deserto de Atacama |
EM SEU NOVO LIVRO, ARIEL DORFMAN FAZ DO DESERTO DE ATACAMA, NO NORTE
DO CHILE, UMA METÁFORA PARA O PASSADO E O FUTURO DA AMÉRICA LATINA
Camila Viegas
free-lance para a Folha
Professor de literatura na Universidade Duke (Carolina do Norte), o romancista chileno Ariel
Dorfman foi o único latino-americano convidado a participar da série de diários de viagem publicados pela National Geographic. Segundo o convite,
Dorfman poderia visitar qualquer lugar do mundo, mas
escolheu o Norte Grande do Chile -"um território que
decidiu o destino do país que chamo de meu, o território que decidiu de muitas maneiras o meu próprio destino". No Norte Grande, Dorfman encontrou o deserto
mais seco do mundo, as minas de nitrato que criaram as
oligarquias chilenas no século 19, os ancestrais europeus de sua mulher, Angélica, e os restos mortais do
amigo ativista Freddy Taberna, executado num campo
de concentração de Pinochet nos anos 70.
"Desert Memories - Journeys through the Chilean
North" [Memórias do Deserto - Viagens através do
Norte Chileno, ed. National Geographic, 283 págs., US$
21] acaba de sair nos Estados Unidos, mas ainda não
tem previsão de publicação no Brasil. Depois de uma
palestra dada no Banco Interamericano de Desenvolvimento, em Washington, Dorfman falou ao Mais! sobre
seu novo livro, a viagem, política, identidade cultural e
os efeitos da globalização.
O senhor já havia ido antes ao deserto de Atacama, mas,
quando teve oportunidade de viajar para qualquer lugar
do mundo, escolheu voltar para lá. Por quê?
A primeira vez que fui ao Norte Grande do Chile foi
em 1962. Eu estava viajando de carona e correndo
atrás do tempo perdido na adolescência. Passei o verão inteiro atrás das civilizações inca e tiahuanacota,
que constituem a origem da identidade ameríndia,
bem na onda dos anos 60 -identidade que eu tinha
escolhido para mim. Mas não fiquei muito tempo no
deserto -"não há nada lá", pensava. Eu estava a caminho de Lima, Cuzco, Machu Picchu, lago Titicaca,
La Paz, Oruro.
Quarenta anos depois, eu queria saber como o deserto, que decidiu o destino do Chile assim como de
várias maneiras o meu próprio destino, poderia responder a uma outra questão. Como é possível que a
América Latina, com tantos recursos naturais, tantas
glórias e maravilhas, seja também tão pobre?
Não há resposta para essa pergunta, não há solução definitiva, mas freqüentemente tenho a sensação
de que somos fantasmas antes de ter a chance de viver integralmente.
O que o senhor quer dizer com isso?
O tempo não está do nosso lado. O tempo é controlado pelo outros. Nós estamos lendo um roteiro que
foi escrito por outras pessoas. E é por isso que estamos sempre voltando ao passado para tentar encontrar nossa própria identidade. É "el peso de la noche", a que Diego Portales se refere -isso pesa sobre
nós como uma mão morta. Nos Estados Unidos é diferente. As pessoas focam no presente e no futuro
porque seu passado está resolvido para eles. No Norte Grande eu achei que poderia perguntar por que as
coisas são do jeito que são. Eu poderia tentar fazer
com que os mortos falassem. Isso é outra obsessão
latino-americana.
O que o senhor encontrou durante as três semanas que
passou com sua mulher lá, em maio de 2002?
Norte Grande é um lugar extraordinário. Toda a esperança e miséria estão representadas aqui. Eu vi
uma pegada de criança de 13 mil anos. Eu fui ao lugar
em que a supernova foi descoberta. Eu vi as mais antigas múmias do mundo em Arica. Mas, acima de tudo, eu visitei a região em que nitrato foi encontrado,
a região que transformou o país num Estado moderno e tornou possível a revolução industrial na Europa e nos Estados Unidos.
As minas de nitrato forçaram a colonização do deserto.
Milhares de pessoas sonhavam em fazer fortuna e voltar
a seus países de origem. Mas a maioria não voltou. Esse
foi o caso dos antepassados de sua mulher, croata, certo?
Pois é, veio gente de toda parte, Croácia, Atenas, Cochabamba. Há algumas tentativas de preservar essa
memória, criar museus, mas uma das maldições da
América Latina é que as riquezas raramente ficam
em nossas mãos. No caso da corrida do nitrato, um
homem chamado John Thomas North -veja a ironia desse nome: Norte- controlava tudo, do fornecimento de água às rodovias até a distribuição de
produtos importados, e não deixou dinheiro nenhum. Se ao menos aquele dinheiro tivesse sido investido em educação e modernização...
Há quem diga que isso é passado. Mas a história se
repete. Eu almocei num restaurante de Chuquicamata com guardanapos de linho e excelente vinho
branco, e o prédio todo estava para ser soterrado por
toneladas de entulho. A idéia é explorar mais cobre
numa mina próxima, a céu aberto, a maior do planeta. Chuqui estava pra virar uma cidade fantasma e, se
um dia o cobre não for mais necessário, como o que
aconteceu com o nitrato, vamos ter ainda mais cidades fantasmas, mais buracos no chão e nada em troca. Essa é a metáfora central da América Latina
-como a borracha na Amazônia.
Então as pessoas ficam e o dinheiro vai. O que o senhor
acha de teorias que dizem que essa "maldição" é típica
da América Latina? Que há algo na personalidade latino-americana que nos impede, coletivamente, de superar esse padrão de pobreza, frustração, sofrimento e exploração externa?
Alguns dizem que o subdesenvolvimento é um estado de espírito. A preguiça estaria em nossos genes.
Eu prefiro usar a expressão "falha de desenvolvimento". O [professor de Harvard Samuel] Huntington está para publicar um livro em que discute as
conseqüências da emigração latina para os Estados
Unidos, o que os tem tornado bem-sucedidos. Os
hispânicos já representam 11% da população americana. E ele acredita que isso vai criar uma crise de
identidade na América do Norte.
Eu, por outro lado, acho maravilhoso que os Estados Unidos estejam se tornando bilíngües. Ensina a
garotada latina a falar inglês, ensina a garotada anglo-saxônica a falar espanhol. Isso torna as pessoas
mais abertas, capazes de enxergar perspectivas diferentes. Além disso, nós, que viemos do Sul, desenvolvemos uma maneira de ver o mundo com uma
alegria e dignidade muito especiais. Essa visão de
mundo poderia ajudar os americanos a entender a si
próprios e entender também aqueles que cruzaram
suas fronteiras. Nós não iremos embora.
Em sua palestra, o senhor mencionou que os latino-americanos não deveriam ser contra a globalização, mas optar por uma "alter-globalização". O que o senhor quer dizer com isso?
A gente deveria apoiar a globalização controlada por
pessoas que querem fazer a coisa funcionar, sem
ameaças. Nos EUA e em vários outros países a crise
criada pela globalização fomentou o fundamentalismo. Eu posso entender a origem do fundamentalismo: "Minha identidade está sendo atacada, vou buscar minha essência, e todo o resto é inimigo".
Mas o ser humano que se isola definha e morre.
Como espécie nós estamos em constante relação
com o mundo, respirando, comendo, fazendo sexo.
E os americanos precisam se adaptar ao que vem de
fora, coexistir com o que consideram estranho, e não
os ver como ameaça. Eles podem aprender muito
com a mestiçagem latino-americana.
É por isso que proponho nos chamarmos de alter-latinos, os outros. Os não-mexicanos, não-porto-riquenhos, não-cubanos.
Como os brasileiros podem se identificar com "Memórias
do Deserto"?
Aparentemente, nada poderia ser mais distante dos
brasileiros do que um deserto. Mas a forma pela qual
o interior fez o litoral se desenvolver é história comum ao Brasil e ao Chile. A vantagem do deserto é
sua intensidade -ele destrói tudo, mas também
preserva tudo por causa da secura. Não há como se
esconder no deserto, nem mesmo sua sombra o
acompanha. Então você fica diante de seu destino.
Os brasileiros também poderão reconhecer sua história no deserto chileno.
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